JOÃO PEDRO GEORGE
APÓS UMA FASE inicial de aparente disponibilidade, em que núcleos de retornados se deixaram persuadir por algumas forças de extrema-direita, as suas exigências e reivindicações foram sendo progressivamente canalizadas para formas institucionalizadas de protesto.
A preocupação da esmagadora maioria dos retornados era a reintegração profissional, muito mais do que as indemnizações pelos bens perdidos no Ultramar. Ainda assim, uma minoria apresentou queixas-crime contra os responsáveis pela descolonização, por não terem acautelado os interesses dos cidadãos que viviam nas ex-colónias e porque o governo se tinha limitado a abandonar, “leviana e criminosamente”, aqueles territórios. No final da década de 1970, alguns retornados juntaram-se com o intuito de processar judicialmente os políticos e os militares que conduziram “apressadamente, precipitadamente” a descolonização. Foi assim que, logo em 1977, surgiu o Livro Negro da Descolonização, assinado por Luiz Aguiar (um pseudónimo colectivo, segundo algumas fontes) e publicado na editorial Intervenção. Tratava-se de um grosso volume de capa preta com mais de 700 páginas e extensa documentação, promovido na imprensa de direita (p. ex., A Rua, jornal dirigido por Manuel Maria Múria) com frases como “O livro que servirá de base à acusação em tribunal!” ou “O seu livreiro está autorizado a oferecer-lhe um exemplar do Relatório das Nações Unidas sobre o Drama de Timor (com um estudo de Adriano Moreira) quando adquirir o seu Livro Negro”. Para Luiz Aguiar, que dedica o livro “Aos vivos e mortos, negros e brancos, vítimas da ‘descolonização exemplar’”, os presumíveis culpados do crime previsto no Artigo 141º do Código Penal – “20 a 24 anos de prisão maior para todo o português que intentar […] separar da mãe-pátria qualquer parte do território português” –, nomeadamente Mário Soares, Almeida Santos, Melo Antunes e Spínola, deveriam sentar-se no banco dos réus. Um ano depois, em 1978, a mesma editora e o mesmo autor insistiram na tese do crime de traição à pátria, publicando A chamada Descolonização e Julgamento dos Responsáveis (as duas obras foram escritas para servir de fundamento das queixas que seriam apresentadas em tribunal).
Há várias razões que ajudam a explicar o fracasso dos pedidos de indemnizações, bem como das solicitações ou exposições aos provedores de Justiça e aos sucessivos governos e Presidentes da República (incluindo, recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa). Em primeiro lugar, os retornados tinham uma composição social heterogénea – não eram uma massa coesa, com valores identitários fortes, pelo que a sua receptividade aos discursos políticos seria muito variável, tão-pouco haveria uma coesa união de pontos de vista em torno do que lhes tinha acontecido – e terá sido isso que travou a sua instrumentalização como base de ancoragem dos partidos anti-sistema, muitos dos quais interessados em promover o maniqueísmo directo em que assentava o discurso da facção mais politizada dos retornados. Um dos casos mais salientes dessa tentativa de aproveitamento foi o de Adriano Moreira: pouco depois de ter sido presidente do CDS (1986-1988), integrou a Comissão de Honra, juntamente com Veiga Simão e Silvino Silvério Marques, do I Congresso Nacional dos Espoliados do Ultramar, organizado pelas Associações dos Espoliados de Moçambique e dos Espoliados de Angola e realizado na Aula Magna da Universidade de Lisboa em 26 de Novembro de 1988, e presidiu ao II Congresso, que decorreu em 8 de Dezembro de 1990, antes de regressar (interinamente) à presidência do CDS (1991-1992). Num dos discursos aí proferidos, o ex-ministro do Ultramar durante o Estado Novo de Salazar e responsá
vel pela revogação do Estatuto do Indigenato, depois de se referir ao “tratamento discriminatório de que foram objecto retornados, deslocados e espoliados”, defendeu que devia ser feita justiça com os retornados, “reparando o reparável”. Em segundo lugar, a ênfase na questão das indemnizações criou uma clivagem de classe, pois essa reivindicação interessava sobretudo aos retornados com um capital social e económico superior, e levou à fragmentação das reivindicações dos retornados, privando assim a extrema-direita do apoio maciço da população oriunda das ex-colónias. Ou seja, de uma inicial dinâmica de comunitarização e marginalização passou-se a uma dinâmica de individualização e integração.
Com a ajuda dos anos, verificou-se uma mudança de atitude em relação aos retornados, de exploradores e fascistas começaram a ser encarados como indivíduos com uma enorme capacidade de superação das adversidades e de adaptação face às mudanças copernicianas de vida, e um espírito de iniciativa eléctrico, por sua conta e risco. De um momento para o outro, a história dos retornados passou a ser uma história de sucesso, de empreendedorismo, de abertura ao mundo, de cosmopolitismo, isto é, a imagem negativa inverteu-se e tornou-se positiva. Compreender como é que essa viragem se fez, como é que se passou do oito ao oitenta, é um dos desafios estimulantes que se colocam à actual investigação histórica sobre o pós-colonialismo. A explicação para isso, a meu ver, reside na produção cultural: as elites antigas tinham sido decapitadas com o 25 de Abril e havia que formar novas elites. E se é certo que a maioria dos retornados se tornou invisível na burocracia do Estado e nos negócios, não o é menos que muitos outros ocuparam posições de relevo na produção cultural e simbólica do País, aproveitando da melhor maneira as oportunidades que aquele período de convulsão ofereceu aos que dispunham de maior capital social (redes de relações e de conhecimentos).
Com efeito, na criação simbólica (a responsável pela construção de interpretações e teorizações sobre a realidade) encontramos muita gente que veio das ex-colónias. Não só na comunicação social – casos, já referidos, de Emídio Rangel, Diana Andringa (via MRPP), David Borges, Jorge Perestrello, Carlos Pinto Coelho, António Macedo ou Ribeiro Cristóvão (seria curioso, por exemplo, analisar a génese da RDP África e da RTP África) –, mas também na política, onde se destacam os nomes de Almeida Santos, Vítor Ramalho, Paulo Teixeira Pinto, João de Deus Pinheiro, Paula Teixeira da Cruz, Alexandre Relvas, Pedro Passos Coelho ou Miguel Relvas; na Justiça, como Nascimento Rodrigues; nas Universidades, como Rui Pena Pires (sociólogo, e um dos grandes responsáveis pela recomposição da imagem dos retornados), João de Pina Cabral (antropólogo) ou Jorge Palmeirim (biólogo); nas artes e nas letras, como Lídia Jorge (escritora), Augustus (estilista), António Feio (actor), Margarida Cardoso (cineasta); ou nas empresas, como António Cardoso e Cunha, Jorge Armindo, Joe Berardo, Luiz Montez, Jorge Batista e José Dionísio (fundadores da multinacional portuguesa Primavera Software, formados na Universidade do Minho), etc.
As histórias de vida destas personalidades têm sido instrumentalizadas, em muitos casos, para fins de legitimação da história dos retornados como um estrondoso sucesso de integração. Por trás desta narrativa, porém, esconde-se o mesmíssimo lusotropicalismo que a propaganda do Estado Novo tão eficazmente conseguiu propagar do Minho a Timor. De facto, o imaginário dos portugueses como um povo especial, singularmente virado para fora, que possui um sentido invulgar da aventura geográfica e capacidades universais de plasticidade e adaptação aos outros povos e culturas (o hibridismo, a miscigenação, o mulato e blá-blá-blá), sobreviveu e permanece actuante ainda hoje, com diferentes reencarnações, começando na própria ideia de Lusofonia. Antes do 25 de Abril, essa ideologia era vendida, de forma particularmente expressiva, para consumo do estrangeiro, para criar a imagem de que a colonização portuguesa era diferente da inglesa, francesa ou espanhola, numa palavra, que era tolerante e não racista, pois os brancos e os negros do Império português viviam em harmonia e igualdade de circunstâncias. Com os retornados, essa representação colorida da realidade passou a ser vendida para dentro. Mas a história dos retornados é muito mais acidentada e complicada do que isso. (continua e conclusão).