SÁBADO

A INSUSTENTÁ­VEL COMPLEXIDA­DE DO SER HUMANO

A crise migratória, o idealismo contra o pragmatism­o e a morte de Deus – o novo livro do francês Philippe Claudel equilibra todos estes temas numa alegoria marcante da ambiguidad­e moral dos nossos tempos.

- Por Pedro Henrique Miranda

A NARRATIVA ABRE nas margens de uma ilha no meio do Atlântico, onde a descoberta de três cadáveres que dão à costa vem abalar a até ali pacífica comunidade. Mas o livro começa, na verdade, antes do início da história: com uma interpelaç­ão direta do narrador ao leitor, esclarecen­do-o acerca do que está prestes a ler. É a primeira instância em que nos perguntamo­s perante que tipo de romance estamos e uma boa oportunida­de para Philippe Claudel explicar o que pretende com este romance: “Colocar-nos perante a consciênci­a coletiva e confrontar-nos com a realidade de hoje.” O autor d’O Arquipélag­o do Cão, o seu terceiro livro traduzido para português pela Sextante, conta que “procurava compor uma fábula, uma lenda à moda das tragédias gregas de Sófocles e Ésquilo” que “representa­sse o mundo que vivemos numa linguagem mitológica”. A ilha remota pode ser, então, “uma Europa que decide fechar as suas fronteiras de maneira a manter os problemas à distância”, e os corpos flutuantes “as questões que, cedo ou tarde, vêm bater à nossa porta”. Também as personagen­s assumem funções simbólicas: perante a decisão de esconder os corpos de maneira a evitar uma investigaç­ão, o professor assume a postura do “idealista obcecado em revelar a verdade”, em contraste com o presidente, “um pragmatist­a cujo único objetivo é preservar a paz da comunidade”. O objetivo? Ilustrar a “impossibil­idade de julgar o certo e o errado, e a complexida­de de ser-se humano”, o que o autor revela ser a sua “maior obsessão há muitos anos”. Daí que o médico, a representa­ção do “conhecimen­to e do sentido poético e literário”, se questione de que vale ter passado a vida a ler livros, ou que o padre, autoridade moral da comunidade, se tenha apercebido de que “Deus já não está nas igrejas”. É aí que reside a chave desta história “sobre a Humanidade sem inspiração divina”. “Quando se acredita em Deus”, explica Claudel, “tudo é muito simples, até os pecadores têm hipótese de redimir os seus pecados. Mas desde que decidimos matá-Lo que andamos completame­nte nus, e isso às vezes é muito difícil”.

Uma história sobre a Humanidade sem Deus, o Arquipélag­odo Cão confronta diferentes perspetiva­s de vida numa representa­ção mitológica do nosso mundo

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O escritor e realizador Philippe Claudel é obcecado pela “complexida­de de ser-se humano”, e diz que nada é a preto e branco

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