SÁBADO

A rebeldia é a melhor arma

- Subdirecto­r Carlos Rodrigues Lima

NOS VERSOS DE JOSÉ MÁRIO BRANCO, A CANTIGA ERA UMA

“arma de pontaria”, “fabricada com cuidado” e com um mecanismo “bem perfeito e oleado”. Num tempo em que as cantigas não passam de meia dúzia de palavras mal amanhadas, acompanhad­as por sons do computador, a arma enferrujou, já não tem o mesmo efeito letal. Sobra-nos a rebeldia e o humor como armas extremamen­te eficazes contra aquilo que, um dia, Marcelo Rebelo de Sousa (o comentador) definiu como o “nacional-porreirism­o” ao que se acrescenta um estado de atual “nacionalin­diferença”.

Dois discursos em cerimónias comemorati­vas do 10 de junho colocaram João Miguel Tavares na rota das microindig­nações. Primeiro, vejase a ousadia do homem, porque pediu aos políticos, “sejam eles de esquerda ou de direita”, que “nos deem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objetivo claro à comunidade que lideram”. João Miguel Tavares sabe que fez um mero desafio protocolar. Em Portugal, a condição de cidadão resume-se, como o próprio recordou, a pagar impostos e a salvar bancos. Mas o ato de rebeldia institucio­nal de João Miguel Tavares deve ser enaltecido. Outro – um daqueles presidente­s da comissão organizado­ra do 10 de junho do costume –aproveitar­ia a cerimónia para remexer o baú de memórias da “Nação valente e imortal”, convocaria a parte boa do repertório camoniano e de outros poetas, apelaria ao passado como lição de futuro. O problema é que, desde há muito tempo, existem dois países: o Portugal da alma, dos líricos, das grandes conquistas, e o País real, como foi descrito por João Miguel Tavares: “O sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se desvanecen­do, porque cada família, cada pai, cada adolescent­e, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa.” Dias mais tarde, em Cabo Verde, João Miguel Tavares voltaria a chocar aquela parte do País pouco disponível para choques. Até, segundo as crónicas, incomodou dois presidente­s: o nosso, e Jorge Carlos Fonseca. Tudo porque, uma vez mais, resolveu dar um choque de realidade: “Portugal tem de conseguir abrir-lhes as portas do elevador social em vez de continuar a oferecer escadas para lavar.” Sim, é verdade: apesar de todos os programas de cooperação e boa vontade política, Portugal não tem mais nada para oferecer aos homens dos PALOP do que construção civil ou o título de “senhora lá de casa” às mulheres.

Num mundo cada vez mais politicame­nte correto, onde causar incómodo é visto como uma patologia psicológic­a, as duas intervençõ­es de João Miguel Tavares foram um bálsamo de liberdade e de realidade, procurando através da rebeldia pôr na agenda e no debate o que durante anos se tem varrido para debaixo do tapete.

No fundo, o mesmo que o comediante John Stewart fez no congresso norte-americano, ao confrontar os representa­ntes do povo com a sua própria vergonha e desleixo em deixar arrastar o processo de dotação orçamental do fundo dos socorrista­s do 11 de Setembro. O problema acabou por ser resolvido, não porque houvesse vontade política, mas porque Stewart usou a melhor arma da atualidade: a rebeldia, o confronto inteligent­e e mordaz. É disto que o poder balofo e instalado tem medo.

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