JOÃO PEDRO GEORGE
NINGUÉM LEVA MAIS a sério o prefácio do que Marcelo Rebelo de Sousa. No prefácio, género literário que atinge uma rara harmonia com o temperamento da nossa época, Marcelo parece ter encontrado a fórmula de expressão mais adequada à sua personalidade afável e cativante.
Tratando-se de textos conjunturais ou de ocasião, para usar e deitar fora, cujo fim é dar um impulso na carreira dos autores dos livros ou favorecer as suas vendas, não deixa de ser curioso que Marcelo tenha escolhido justamente o prefácio para se definir e situar, para proceder a um trabalho de reconstrução interior, mostrando as suas raízes, os seus antecedentes, o que marcou a sua infância e adolescência, os círculos de amizades, os percursos da sua biografia, as facetas públicas em que se projectou. Tudo isso está presente, de uma forma ou doutra, nos prefácios que escreveu.
E se não vejamos. Nascido em Lisboa a 12 de Dezembro de 1948, Marcelo descende de uma família pequeno-burguesa. O pai, Baltazar Rebelo de Sousa, era um político conservador (segundo Adriano Moreira, tornar-se-ia no “mais lúcido e leal marcelista”), e a mãe, Maria das Neves, talvez por ser órfã de pai e de mãe, e ter sido aluna interna do Colégio de Odivelas, era uma “assistente social rebelde”.
Do lado paterno, Marcelo tem “uma longuíssima ligação familiar a Angola”. Para Angola partiu, no começo do século XX, o seu Avô paterno – António Joaquim Rebelo de Sousa, nascido em Cabeceiras de Basto (já a avó paterna, Joaquina Leite da Silva, era de Celorico de Basto) –, que ali viveu e ali criou “a Casa Catonhotonho [expressão local que significa Ir à loja do António], que assinalou a Baixa de Luanda até há menos de trinta anos. Lá nasceram e viveram filhos do seu primeiro casamento. Lá tenho ainda família e muitos, muitos amigos e muitos, muitos antigos alunos”.
Formado numa classe média que oscilava entre o conservadorismo, o catolicismo e a social-democracia, entre o funcionalismo público e o negócio familiar, entre a vida provinciana e a atracção pelas grandes cidades, Marcelo habituou-se, desde a meninice, a fazer de Braga “a capital do seu universo espiritual de cepa celoricense”. Não apenas desfilou nas procissões da Semana Santa e se acolheu, em mais de uma ocasião, “às sombras frondosas do Bom Jesus ou do Sameiro”, como também editou obras académicas na Livraria Cruz (editora e livraria icónica de Braga, fundada em 1888 na Rua Dom Diogo de Sousa, o espaço transformou-se recentemente num bar, que soube preservar a fachada, o tecto e as portas originais) e se tornou adepto do Sporting Clube de Braga.
Em 1955, com a entrada do pai na cena política nacional, enquanto subsecretário de Estado da Educação Nacional, a família ascendeu a um meio social frequentado por indivíduos de vida cheia e aventurosa. Quando tinha sete ou oito anos, Marcelo lembra-se de ouvir, de olhos esbugalhados, as narrativas de alguns desses homens que frequentavam com intimidade o convívio da casa dos pais, como Joaquim Paço d’Arcos ou Júlio Evangelista, de cujo casamento com Maria Helena, filha do herói vianês, o coronel António Gonçalves Pires, uma criatura de “coragem física ilimitada” que combateu na Primeira Grande Guerra, os pais Baltazar e Maria das Neves tinham sido padrinhos. De Júlio Evangelista, lembra Marcelo o seu “estilo jovial, inquieto, quase frenético, de quem queria viver muito e muito depressa. Um furacão, a pôr à prova o ritmo pachorrento, desconfiado, reservado daquele tempo político e social”.
oito anos de idade, Marcelo viu nascer a televisão em Portugal: em 1957, pela mão do padrinho, o engenheiro Camilo de Mendonça, um transmontano extraordinário, grande impulsionador da construção do Complexo Industrial do Cachão, projecto agroindustrial que revolucionaria a agricultura tradicional do nordeste de Portugal, primeiro presidente do conselho de administração da Radiotelevisão Portuguesa SARL, o futuro Presidente da República visitou o estúdio experimental da RTP, montado na Feira Popular, por trás da actual Fundação Gulbenkian. No Verão de 1958, ano das eleições presidenciais marcadas pela candidatura de Humberto Delgado, os pais de Marcelo arrendaram uma moradia na Marginal, em São João do Estoril, propriedade dos pais Fialho Gouveia, o famoso apresentador de televisão e radialista. Durante esses meses de férias – Julho, Agosto e Setembro –, Marcelo foi inquilino e vizinho da família de Fialho Gouveia. Com a mãe deste, Cesaltina Mendes Bastos, professora primária em Alcabideche, teve Marcelo lições de porAos tuguês): “Tarde sim, tarde não, a seguir à praia, na Azarujinha – era atravessar a Marginal sem trânsito –, ao almoço e a sesta. Aí apareciam o José Manuel e, de vez em quando, a Maria Helena [locutora da RTP, com quem Fialho Gouveia casaria]. Contavam histórias de televisão, que o mesmo é dizer, em 1958, histórias de outras galáxias.”
Por essa altura, o pai de Marcelo, ainda subsecretário de Estado da Educação, sentia-se dividido entre o salazarismo de formação e a ruptura entre, por um lado, Salazar e, por outro lado, Craveiro Lopes e Marcello Caetano (de quem se sentia mais próximo). Apesar desse distanciamento dos marcelistas, Baltazar decidiu continuar na pasta da Educação depois de uma visita que fez a Salazar, em finais de Setembro de 1958, no Forte de Santo António. Foi nessa ocasião que Marcelo Rebelo de Sousa conheceu pessoalmente o presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, Oliveira Salazar. Mais tarde, já com 12 anos, os relatos de futebol e de hóquei patins de Artur Agostinho, na Emissora Nacional, foram um tónico para a fantasia do pré-adolescente Macelo: “Habituei-me a imaginar os jogos através das inflexões da sua voz, lance a lance, jogador a jogador.” Depois da escola primária e da primeira metade do liceu, na viragem para a adolescência – “atingi a minha adolescência, e percorri-a em passo estugado” –, Marcelo ingressou na Juventude Escolar Católica (JEC).
O cimento do catolicismo instaurou-se em Marcelo quando assistia, em criança, “calado, mas atento”, aos documentários do cinema ou da televisão, a preto e branco, de Pio XII, Papa muito respeitado pelos seus pais, “que o viam – embora de prismas diversos – como uma garantia da presença de valores e ritos num Mundo que ameaçava entrar em acelerada mudança”. O primeiro grande Papa da vida de Marcelo, porém, foi João Paulo II (o segundo foi João XXIII), porque assumiu profundamente o culto mariano aos olhos do mundo.