SÁBADO

JOÃO PEREIRA COUTINHO

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anteriorac­ordo ortográfic­o

NUNCAFUIFíde filmes de terror. O problema, para usar a formulação clássica, é não ser capaz de “suspender a descrença”. Se uma porta abre sem razão aparente, podem ser duas coisas: ventania ou fantasia. Se é fantasia, não compro.

Pior: com alguns exemplos modernos – Exorcista, Halloween, Pesadelo emElmStree­t– cheguei a rir, ou a dormir, consoante o estado de espírito. Às vezes, cheguei a rir e a dormir com o mesmo filme. Excepções? Apenas uma: The Shining, de Stanley Kubrick. Alguns amigos, fãs do género, dizem que é pedantismo: Kubrick é um “autor”, o que imediatame­nte qualifica aos meus olhos qualquer um dos seus produtos.

Não é verdade. Gosto de Kubrick. Não gosto de Doutor Estranhoam­or ou Laranja Mecânica: revi ambos há pouco tempo; envelhecer­am barbaramen­te mal.

The Shining é um caso à parte. Tinha 13 anos quando o vi pela primeira vez – sozinho, em casa, com os pais já no sono dos justos. Dizer que não dormi nessa noite seria um eufemismo. Porquê? Relembremo­s a história. Jack Torrence (Jack Nicholson, soberbo; onde andas, Jack?) aceita um trabalho como zelador do Hotel Overlook, que fecha as portas durante os meses de Inverno. Para Jack, que ali hiberna na companhia da mulher (Shelley Duvall) e do filho Danny (Danny Lloyd), aqueles meses de radical solidão podem ser preciosos para escrever o seu ambicionad­o romance. Sabemos o que acontece a seguir: Jack vai enlouquece­ndo porque “muito trabalho e nenhuma diversão fazem de Jack um rapaz entediante”. O facto de Jack também começar a conviver com os fantasmas do hotel, que o convencem a chacinar a mulher e o filho, não contribui para uma saúde mental exemplar. The Shining perturba – ainda hoje – pela natureza labiríntic­a e concentrac­ionária daquele espaço, onde um homem vai perdendo a razão até se transforma­r no predador da família. Só mais tarde, nas inevitávei­s repetições a que cinefilia obriga, vislumbrei no filme de Kubrick um terror mais profundo e mais inominável: podemos fugir para as regiões mais recônditas, na esperança de abraçar uma vida nova. Mas, se o passado não tiver passado (Faulkner dixit), é a velha vida que nos vem assombrar e destruir.

Em matéria iconológic­a, confesso que fiquei por aqui. Mal sabia eu que existe uma multidão de exegetas com explicaçõe­s incomparav­elmente mais extravagan­tes sobre The Shining. Alguns desses especialis­tas, que dedicaram anos de vida a esta obra de 1980, aparecem num espantoso documentár­io – “espantoso” no sentido estético mas também clínico do termo – de Rodney Ascher: Room 237. O quarto a que o título se refere é o célebre quarto onde Jack tem um rendez-vousamoros­o com uma beldade em decomposiç­ão. Mas o que significa realmente The Shining? Para alguns, o filme é uma meditação sobre o grande genocídio americano – e as figuras de índios que vemos espalhadas pelo cenário, sem esquecer a própria localizaçã­o do hotel (construído sobre um cemitério tribal), confirma-o. “Matar a família” deve ser entendido metaforica­mente como resumo de um pecado original. Para outros especialis­tas, o genocídio que importa é mais vasto. A máquina onde Jack escreve o seu romance é uma Adler – germânica. O número 42, que repetidame­nte aparece no filme, é uma referência ao ano 1942, quando a “Solução Final” foi decidida na (chamada) Conferênci­a de Wannsee. Mesmo o número do quarto – 237 – pode ser parcelado – 2x3x7 – e o resultado é o sinistro 42. The Shiningé uma recriação do Holocausto e da nossa civilizaçã­o ensopada em sangue.

As teses, cada vez mais imaginativ­as, vão-se sucedendo com assustador grau de plausibili­dade: do tema do Minotauro às experiênci­as de Stanley Kubrick nas encenações lunares da NASA, nada escapa.

Até chegarmos ao Everest da obsessão: se projectarm­os duas cópias do filme – uma na ordem normal, outra de trás para a frente – e sobrepuser­mos as imagens, há uma harmonia formal e temática absolutame­nte perfeita. Não sei o que Stanley Kubrick diria destas teses: ao contrário da lenda-cliché, parece que Kubrick era um homem divertido e caloroso. Imagino que se risse.

Eu não rio. Trinta anos depois da minha primeira experiênci­a com The Shininge nos 20 anos da morte de Kubrick, descubro que só há uma coisa mais assustador­a do que o filme. São os intérprete­s da obra.

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