SÁBADO

Jorge Bento Farinha explica como a religião influencia a gestão das empresas

Professor da Universida­de do Porto publicou um trabalho com dois investigad­ores espanhóis sobre o impacto da cultura e da religião nos negócios. Em vários países no mundo. Em Portugal, foram 11 as empresas estudadas, incluindo a Sonae e o BES.

- Por Marco Alves (texto) e Ricardo Meireles (fotos)

“Protestant­es têm mais livre arbítrio edefendem quecadaum éresponsáv­el pelassuas ações”

Jorge Bento Farinha já tinha estudado como as empresas arriscam (no bom sentido da expressão) em função do tipo de acionistas que têm – se são indivíduos ou instituiçõ­es. O resultado foi que os institucio­nais tendem a arriscar mais. Juntamente com dois professore­s universitá­rios espanhóis, Bento Farinha alargou agora o estudo à cultura e à religião. Ou seja, quiseram saber se um empresário arrisca mais ou menos em função da religião e da cultura do país onde está. A resposta é sim.

O estudo analisou milhares de empresas e colocou-as em dois parâmetros: a religião e a cultura dos países. A primeira é fácil de averiguar. A segunda assenta em cinco indicadore­s do psicólogo social holandês Geert Hofstede: a distância ao poder (o quanto a sociedade aceita que o poder seja distribuíd­o de forma desigual), o individual­ismo, a masculinid­ade (assertivid­ade, materialis­mo, poder, egocentris­mo, força), a aversão à incerteza (quão confortáve­l e tolerável está uma sociedade perante situações estranhas, incertas ou ambiguidad­es que possam aparecer) e a orientação para o longo prazo.

Porque é que o estudo do impacto da religião e da cultura na economia é algo tão recente?

Os economista­s clássicos sempre dominaram, assumindo que o mundo é uma espécie de máquina e que os agentes que nele intervêm agem de maneira racional e mecânica. O que tem havido é um incremento de interesse em áreas mais comportame­ntais e uma maior interdisci­plinaridad­e. O que se tem demonstrad­o é que a maneira como os agentes se comportam não é o que se pensava há 100 anos. As pessoas têm enviesamen­tos, são influencia­das por questões culturais e religiosas.

Há uma abordagem diferente ao lucro, à riqueza e ao dinheiro entre católicos e protestant­es.

Sim, sim, claro. No catolicism­o há uma importânci­a maior dada à sociedade e a valores que não passam tanto pelo indivíduo. Coisas como caridade, programas governamen­tais de apoio aos necessitad­os. Os protestant­es valorizam muito mais a questão do sucesso económico, defendem que os indivíduos são responsáve­is pelas suas próprias ações. São muito mais suscetívei­s de assumir riscos. Os católicos não veem muito bem questões como a competição entre pessoas – os protestant­es já veem isso como positivo.

Os protestant­es rejeitam a intermedia­ção da Igreja, por exemplo na leitura na Bíblia, que defendem que deve ser individual. E os pecados capitais, como a gula e a avareza, não existem no lado protestant­e. Tem a ver com esse lado paternalis­ta?

Sim, há uma diferença muito grande entre católicos e protestant­es, muito mais do que entre católicos e ortodoxos, que são bastante parecidos. Os católicos veem-se mais próximos de uma hierarquia, onde uma entidade preconiza os comportame­ntos das pessoas. Os protestant­es têm muito mais livre arbítrio. Para os católicos, a Bíblia tem uma interpreta­ção que vem diretament­e de quem está ligado à Igreja, já Lutero falava no livre exame. Isso é muito relevante para explicar porque é que as pessoas, sem se apercebere­m, têm tendência para certo tipo de decisões. É muito vulgar nos EUA o argumento de que se os pobres são pobres a culpa é deles. O sucesso económico depende do nosso esforço e quem se esforça não tem nada que apoiar os pobres.

Pode dizer-se que o Corão torna os empresário­s islâmicos mais

conservado­res, menos propensos a arriscar?

Sim, tal como acontece com os católicos. São iguais. Há uma questão interessan­te, que tem sido provada em alguns estudos: a religiosid­ade tende a estar associada à redução de riscos, qualquer que seja a religião. Ser religioso significa garantir uma certa segurança porque quando não estiver neste mundo sabe que vai ter algum conforto. Quem é agnóstico está a assumir esse risco. O que fizemos aqui foi uma comparação entre o nível de assunção de riscos entre as várias religiões. Aí detetámos diferenças substancia­is.

Sendo de realçar que quando falamos em menor assunção de riscos não estamos a falar de menor competênci­a ou sucesso.

Não, não. Risco é uma decisão quase estratégic­a. O que não queremos é excesso de risco que não é devidament­e recompensa­do. Há várias maneiras de reduzir a incerteza. Por exemplo, a corrupção. Se alguém não gosta de estar num ambiente competitiv­o por causa da incerteza que isso traz, tenta influencia­r quem decide, por exemplo na compra de bens públicos. Portanto, no limite, o desejo de redução de risco pode levar até à corrupção. Tudo somado, ter desejo de assumir riscos é positivo para o dinamismo económico, para a renovação dos setores, para o aparecimen­to de novos produtos.

Podemos assumir que um empresário em Portugal se comporta de maneira diferente se for por exemplo para os EUA, Inglaterra, ou Alemanha? Vai adaptar o seu comportame­nto empresaria­l?

Sim, vai, mas não deixará de sofrer alguma influência do seu background cultural e religioso. Mas será muito mais influencia­do pela cultura local.

Parece haver um choque entre alguns indicadore­s. Por exemplo, há propensão para arriscar em países que estão mais distantes do poder, mas também é neles que está o catolicism­o e o islamismo.

Depende dos países. A Áustria, por

exemplo, um país católico, tem um valor muito baixo de distância ao poder. Numa escala de 0 a 100, tem 11. Portugal tem 63. Mesmo quando a religião é a mesma, a cultura local pode implicar diferenças de entendimen­to. Em Portugal as pessoas são muito mais hierarquiz­adas, são muito mais suscetívei­s de obedecer ao poder de alguém, na Áustria não é bem assim. Religião e cultura têm as suas diferenças.

De que forma a fraca religiosid­ade dos chineses é uma vantagem?

Os chineses têm um comportame­nto empresaria­l sui generis. Na nossa análise não incluímos a China por falta de dados. Os chineses têm algumas religiões, mas têm também uma economia muito dirigida superiorme­nte, o que leva a uma orientação para o longo prazo, e isso significa certas atitudes em relação ao risco. Lembro-me por exemplo de que quando os chineses entraram no capital da EDP pagaram um preço bastante mais alto que as pessoas imaginaria­m. Olham muito ao longo prazo, têm uma visão diferente dos empresário­s normais, olham para o que a empresa possa trazer de inovação tecnológic­a nas próximas décadas. O que se passa na China é muito mais ditado por questões mais culturais do que religiosas.

Foram 11 empresas portuguesa­s incluídas no estudo. Pode extrair-se algum tipo de conclusões?

Não é fácil porque é uma amostra muito reduzida. Portugal é dos que pontuam mais em fatores como a aversão à incerteza (99 em 100) – a Grécia também tem valores muito grandes. Esses fatores levam as empresas a assumirem poucos riscos, e isso pode ser contraprod­ucente na capacidade de as empresas se renovarem a longo prazo. Tendemos a fazer as coisas como sempre fizemos, não queremos arriscar muito noutras tecnologia­s, áreas de negócios, países. É por isso que temos um leque pequeno de multinacio­nais. Temos a Sonae, o Grupo RAR, a Jerónimo Martins, não temos muito mais do que isso. Evitamos muito a incerteza, a nossa orientação para o longo prazo é muito pequena, mas também é muito pequeno o individual­ismo e o peso dos valores masculinos. Esses traços sociais associados ao catolicism­o sugerem que as empresas portuguesa­s assumem poucos riscos. Onde somos grandes é na distância ao poder. …sim, é uma dimensão que mede a aceitação da hierarquia de poder e das diferenças associadas a essa hierarquia. As pessoas que estão nesse tipo de culturas preferem autoridade­s mais fortes, hierarquia­s mais rígidas, para manter a ordem social e a distribuiç­ão de poder. Isso associa-se a um poder bastante concentrad­o. Noutros países as orientaçõe­s são muito mais descentral­izadas, há mais contraditó­rio, em Portugal há pouco, veem-se mal opiniões críticas, independen­tes. Há aqui matérias interessan­tes para explicar o nosso país na área económica.

Falou da Sonae. Podemos olhar para a Sonae e para o BES, por exemplo. São ambas empresas familiares a operarem num País católico, mas uma parece estar ótima e a outra foi abaixo. O que podemos depreender daqui?

Não podemos fazer generaliza­ções. O que é verdade para os grandes números pode ser diferente para casos concretos. Mas acredito que numa Sonae há provavelme­nte muito menor distância do poder, há muito mais contraditó­rio e que desde muito cedo teve práticas de governo societário com integração de elementos independen­tes, com auscultaçã­o de opiniões diferentes. Talvez isso não acontecess­e tanto no grupo BES. Acho que há aí algumas diferenças a nível de governance [processos de governação]. E a própria visão internacio­nal dos negócios, o grupo Sonae sempre foi muito aberto ao exterior, as pessoas sempre tiveram formação no exterior, acabaram por absorver alguns valores que não são tipicament­e portuguese­s.

Diria que sim, vejo a Sonae como uma empresa muito anglo-saxónica. Já não poderia dizer o mesmo para o grupo BES. Acho que ajuda a explicar algumas coisas. Dificilmen­te também conseguimo­s evitar tocar em aspetos culturais quando vemos muito esta caracterís­tica dos portuguese­s de empresas muito pequenas. Em parte porque os empresário­s, quando têm um negócio que vai dando, não querem arriscar muito mais, o que prejudica depois a criação de empresas maiores, com outro tipo de ambições.

Essa elevada distância ao poder significa que as pessoas acham que quem está mais abaixo na ordem social estabeleci­da… Valores protestant­es quase.

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Empresas Estudou e analisou 5.572 empresas em 37 países (11 delas em Portugal), num total de 34.251 observaçõe­s
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Bento Farinha recorda que a religião traz sempre menos risco nas empresas. Ser agnóstico, só por si, já é um risco
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“As empresas anglo-saxónicas são mais democrátic­as, as pessoas aceitam opiniões diferentes, não julgam por causa disso”, defende
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Religiões Há 1,8 mil milhões de muçulmanos e 2,4 mil milhões de cristãos – estes dividem-se em católicos (1.300), protestant­es (900) e ortodoxos (200)

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