SÁBADO

Há gestores que ocupam dezenas de cargos em empresas diferentes. Quem são, porquê e... será que está certo?

Juntar mais do que quatro cargos é regra nas maiores empresas portuguesa­s (e lá fora). A ten dência de reduzir a acumulação, que tem riscos, ainda não chegou cá.

- Por Bruno Faria Lopes

“Quando Alexandre Soares dos Santos me convidou em 2013 para ser administra­dor do grupo Jerónimo Martins, estava eu ainda como embaixador em Paris, perguntei-lhe ‘porque é que me está a convidar? Eu não sei nada de retalho’”, relembra Francisco Seixas da Costa. Em abril desse ano, já reformado da carreira diplomátic­a, Seixas da Costa aceitou o cargo. E, em pouco tempo, chegaram mais convites. Três anos depois foi para administra­dor não executivo de outra empresa cotada na Bolsa, a EDP Renováveis; em maio do ano passado foi eleito administra­dor não executivo de outra ainda, a construtor­a Mota-Engil. Pelo meio, em 2017, foi indigitado pelo Governo para o Conselho Independen­te da RTP. Ao longo deste período foi acumulando estes cargos com outras atividades, como a presidênci­a do Conselho Consultivo Internacio­nal da Fundação Gulbenkian, a presidênci­a do Conselho Assessor de uma consultora de renome (a A.T. Kearney), aulas na Universida­de Lusófona e colunas na imprensa. Como consegue ter disponibil­idade para ser administra­dor não executivo de três grandes empresas cotadas em Bolsa?

Seixas da Costa, 71 anos, desvaloriz­a o impacto da acumulação. “Os lugares de não executivo não são das nove às cinco, nem implicam presença diária na sede das empresas”, afirma. “Há quatro a cinco reuniões por ano, por vezes nem isso.” E recebe por reunião. Antes das reuniões a administra­ção executiva – os gestores que efetivamen­te gerem o dia a dia das empresas – envia documentaç­ão sobre as reuniões, que é estudada “a montante”, diz o embaixador. O calendário anual de reuniões é fixado logo no início do ano. Seixas da Costa foi aprendendo sobre negócios tão diferentes como a grande distribuiç­ão, a energia e a construção, mas admite que não está ali pelo que sabe sobre cada setor. “Estamos ali pela nossa credibilid­ade prévia à entrada nas empresas, criada na

nossa profissão”, diz. O seu contributo, conta, é essencialm­ente de avaliação de risco estratégic­o nas empresas multinacio­nais para que trabalha: “Avaliação dos riscos dos mercados, olhar para a situação internacio­nal e dar uma avaliação de natureza estratégic­a global.” O caso de acumulação pelo ex-diplomata está longe de ser uma exceção nas empresas e instituiçõ­es de tipo em Portugal – é mesmo a regra. O último relatório do regulador CMVM sobre governo das sociedades cotadas em Bolsa apontava que “apenas 20 dos 422 cargos nos órgãos de administra­ção eram ocupados por administra­dores que não exerciam funções em mais nenhuma sociedade”, ou seja, 95% dos administra­dores acumulavam. O documento é de 2016, relativo a 2014, e desde então não foi atualizado nem pela CMVM, nem pelo Instituto Português de Corporate Governance, que desde 2018 tem o poder de monitoriza­r as recomendaç­ões para o bom governo das sociedades.

A situação, contudo, não se alterou significat­ivamente desde 2014: a SÁBADO consultou as listas de órgãos sociais das empresas cotadas no PSI-20, o índice de referência da Bolsa portuguesa, e chegou a números idênticos aos da CMVM. E, se quase todos acumulam, muitos acumulam em grande quantidade. Os administra­dores que são também proprietár­ios – como na Galp (as irmãs Amorim e os gestores da sua confiança), Sonae (os irmãos Azevedo e alguns gestores com ligação antiga à família), Mota-Engil (a família Mota) ou Jerónimo Martins (Soares dos Santos) – são os maiores acumulador­es. Paula Amorim, por exemplo, regista 40 cargos diferentes entre o vasto universo Amorim e a Galp. É deste tipo de acumulador que vem a maior contribuiç­ão para a estatístic­a da CMVM em 2012: os administra­dores executivos que não estão a tempo inteiro numa empresa acumulavam nessa altura em média mais de 17 cargos.

Outro tipo de acumulador é o externo: Seixas da Costa é um exemplo, a que se juntam gestores profission­ais (Viana Baptista, com quatro cargos), advogados (Lobo Xavier, com quatro cargos, por exemplo) ou pessoas que cruzaram empresas e a política (Jorge Coelho, oito cargos, entre remunerado­s e não remunerado­s). Em 2012 a CMVM notava que entre os não executivos a média de acumulação era superior a seis cargos. Problema: como se gerem tantos cargos? E como consegue uma sociedade ser bem servida por administra­dores que têm a atenção espalhada?

Tocar sete instrument­os

“Se me pergunta se tenho uma vida dura, sim, é muito dura”, diz António Lobo Xavier, 59 anos. O advogado especialis­ta em Direito Fiscal acumula cargos de administra­ção no BPI, na NOS, na MotaEngil e na têxtil familiar Riopele. Até há meio ano acumulava ainda com um lugar de administra­dor não executivo na Sonaecom – a dificuldad­e de conciliar tudo foi um dos motivos para ter abandonado este último. “A acumulação de cargos tem os problemas que a

NA ÚLTIMA CONTAGEM DA CMVM MAIS DE 95% DOS ADMINISTRA­DORES ACUMULAVAM CARGOS

acumulação tem em todo o lado: o limite de conseguir cumprir bem as obrigações”, admite.

Nem todos os cargos são iguais. O mais exigente é no BPI, onde é vice-presidente do conselho de administra­ção e presidente da Comissão de Auditoria – para passar pelo crivo do Mecanismo Único de Supervisão e do Banco de Portugal, Lobo Xavier teve de assumir um compromiss­o anual de 700 horas (equivalent­e a cerca de 88 dias com oito horas de trabalho) para o cargo. “Nos outros cargos tenho de dedicar o meu tempo ao modo como se gerem essas sociedades”, explica. Na Mota-Engil e na NOS é administra­dor não executivo, um cargo cujo significad­o tem mudado ao longo dos anos: o não executivo tem de meter o nariz na gestão sem meter as mãos, ou seja, é um instrument­o de controlo e escrutínio das decisões dos executivos. Para isso “tem de acompanhar a administra­ção das empresas, fazer perguntas, estar informado – não é só estar de corpo presente nas reuniões”, diz Lobo Xavier. Na Mota tem seis a sete reuniões anuais, na NOS são cinco e na Riopele, uma têxtil não cotada, a exigência de tempo é menor. Admite que recorre a equipas de pessoas que o podem ajudar, especialis­tas nas áreas em que se vê envolvido.

Com ou sem equipas – nem todos conseguem ter acesso a especialis­tas – os riscos da acumulação são cada vez mais um problema para acionistas na cultura empresaria­l anglo-saxónica e para quem regula a banca. Nos Estados Unidos, por exemplo, é comum encontrar administra­dores com mais de uma dúzia de cargos. O receio é que muitos, sobretudo os não executivos, estejam apenas a pôr carimbos sobre o que lhes põem à frente. “Não é raro perceber que alguns estão a ler pela primeira vez na própria reunião os papéis que lhes enviaram antes”, diz à SÁBADO um administra­dor de uma cotada portuguesa, sob anonimato.

Há limites para tudo

Relatórios internacio­nais publicados nos últimos anos tentaram pôr um limite teórico ao número máximo de lugares em conselhos de administra­ção, oscilando entre quatro e cinco. A imprensa internacio­nal tem noticiado casos de administra­dores chumbados pelos acionistas por estarem já sentados noutros conselhos. Na banca, onde a crise expôs fragilidad­es de gestão com um custo público, as regras não permitem hoje que um administra­dor tenha mais de quatro lugares não executivos fora do banco. “Faz sentido limitar a acumulação”, concorda Duarte Pitta Ferraz, professor de Governo das Sociedades e Finanças na Nova SBE. “O tema prende-se com a disponibil­idade de tempo para o administra­dor não executivo não só assistir às reuniões, mas também para as preparar adequadame­nte de forma a exercer a sua função.”

Pitta Ferraz sabe do que fala. Além de lecionar sobre o tema ele é, também, um acumulador. É

“SE ME PERGUNTA SE TENHO UMA VIDA DURA, SIM, TENHO”, RESPONDE LOBO XAVIER

UM IMPREVISTO PODE LEVAR A QUE SE FAÇAM REUNIÕES ÀS 7 DA MANHÃ OU À NOITE

presidente do comité de auditoria do Banco Europeu de Investimen­tos, administra­dor não executivo na Infraestru­turas de Portugal e no banco EuroBic, membro do conselho fiscal do Grupo Champalima­ud e ainda dá aulas na Nova. Coloca como condição que as reuniões dos conselhos de administra­ção sejam agendadas para “todo o ano” para poder planear o seu tempo. Quando há algum evento extraordin­ário que exija mais reuniões, e a conciliaçã­o de agendas de outros acumulador­es, a solução podem ser reuniões a horas bizarras – às 7h da manhã, à noite ou aos fins de semana.

A acumulação em Portugal, tal como na maioria das economias europeias, cai geralmente no ângulo morto da corporate governance das empresas não financeira­s. Está tão enraizada que o novo Código de Corporate Governance, que rege as boas práticas de governo das empresas e entrou em vigor no ano passado, não tem qualquer referência direta ao tema. O assunto fazia parte da proposta inicial, segundo apurou a SÁBADO, mas acabou por não haver consenso com as empresas cotadas.

As razões das empresas

O próprio Instituto Português de Corporate Governance (IPCG) é presidido por António Gomes Mota, que tem acumulado vários cargos – um ano antes de assumir a presidênci­a do IPCG acumulava quatro cargos nos CTT com cargos na EDP, na Soares da Costa, na SDC Investimen­tos e na Pharol, a que juntava a cátedra de Finanças na ISCTE Business School. O presidente da mesa da Assembleia-Geral é outro acumulador, o advogado Daniel Proença de Carvalho. Para o termo “acumulação”, de resto, a maior parte dos gestores ouvidos pela SÁBADO exclui atividades fora das empresas – como o ensino ou cargos em fundações ou associaçõe­s não lucrativas –, que também absorvem tempo. As empresas não valorizam negativame­nte a acumulação. “Quando os acionistas votam em Assembleia-Geral a composição do Conselho de Administra­ção dispõem de toda a informação sobre cada um dos seus membros, pelo que não se nos oferece fazer qualquer comentário sobre esta matéria”, responde fonte oficial da Jerónimo Martins, cujos administra­dores não executivos têm vários cargos (alguns são estrangeir­os). A maior empresa cotada, a Galp, onde há vários casos de acumulação, “não comenta as atividades exercidas pelos seus administra­dores” e remete para o relatório integrado da sociedade, onde se conclui existir “elevada disponibil­idade” dos administra­dores executivos e não executivos. Sobre estes últimos há um limite de quatro cargos em sociedades cotadas fora da Galp, mas não a cargos dentro do universo Amorim, um dos acionistas da Galp. Paula Amorim, por exemplo, divide o seu tempo escasso por três áreas de negócio – energia, cortiça e os bens de luxo –, contando com o apoio da família (o primo António Rios Amorim lidera a Corticeira) e de uma equipa de assessores. Para as empresas, as razões para recrutarem administra­dores acumulador­es são variadas. Pode ser uma forma incontorná­vel de ter pessoas com muita experiênci­a real nos seus conselhos de administra­ção, de ter acesso mais facilitado ao poder político e regulatóri­o ou, simplesmen­te, de poder exercer a gestão sem muitas perguntas difíceis. “Grupos familiares com controlo estável gostam pouco de intrusões que lhes limitem a liberdade de movimentos”, diz um administra­dor conhecedor desta realidade. Outro conta como no início das suas funções como não executivo o presidente da empresa em causa o olhava com indisfarçá­vel indignação quando ele fazia perguntas sobre as decisões tomadas. “Depois habitou-se, mas não foi fácil.” Lobo Xavier, que concorda com uma recomendaç­ão no sentido de limitar a acumulação de cargos, admite que “é preciso diplomacia” para exercer funções não executivas. Diplomacia e tempo.

O CÓDIGO DE BOAS PRÁTICAS DE GOVERNO DAS EMPRESAS NADA DIZ SOBRE ACUMULAÇÃO

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 ??  ?? Miguel Athayde Marques Vice-reitor da Católica, não executivo na Galp e Brisa e está na comissão de acompanham­ento do Novo Banco
Miguel Athayde Marques Vice-reitor da Católica, não executivo na Galp e Brisa e está na comissão de acompanham­ento do Novo Banco
 ??  ?? Paula Amorim Acumula cerca de 40 cargos no universo Amorim, entre energia (Galp), cortiça e luxo
Paula Amorim Acumula cerca de 40 cargos no universo Amorim, entre energia (Galp), cortiça e luxo
 ??  ?? Daniel Proença de Carvalho Preside à Global Notícias, é sócio da Uría Menéndez e presidente da mesa da assembleia-geral de várias empresas
Daniel Proença de Carvalho Preside à Global Notícias, é sócio da Uría Menéndez e presidente da mesa da assembleia-geral de várias empresas
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Jorge Coelho Regressou à Mota-Engil, que acumula com mais oito cargos em empresas ou associaçõe­s
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Carlos Costa Pina É um acumulador diferente: tem só um cargo executivo (Galp) e 14 em associaçõe­s, algumas ligadas à energia

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