Como foi a primeira nacionalização após o 25 de Abril, a da EPAL?
A invasão da sede da Companhia das Águas de Lisboa (hoje EPAL) forçou o governo a assumir o poder na empresa monopolista da água na capital e arredores. Foi há 45 anos.
Durante a tarde daquela sexta-feira, 21 de junho, o alerta correu pelas oficinas e pelos escritórios da Companhia das Águas de Lisboa (CAL): a administração já tinha carregado duas viaturas com documentação e Carlos Queiroz Pereira Mascarenhas Lemos preparava-se para sair da sede numa outra com mais. Eram “pessoais”, terá dito o administrador quando foi abordado. O argumento não colheu: os trabalhadores bloquearam a saída do carro e adiantaram então a tomada do edifício, na Avenida da Liberdade, que haviam decidido concretizar mais tarde. Pelas 17h, o conselho de administração estava fechado na sala de reuniões. “Ignora-se que tipo de papéis queria retirar” uma vez que o carro “se mantinha fechado, esperando a atuação da comissão de inquérito”, lê-se no único recorte de jornal sobre esse dia – possivelmente do Sempre Fixe – que está no centro de documentação da EPAL, em Lisboa. Mas também o Diário de Notícias,
localizado apenas uns quarteirões acima, ali viu entrar o major Campos Andrada e estacionar à porta oito viaturas da Polícia Militar. Um problema na única companhia privada (e a maior) de abastecimento de água de Portugal era motivo para alarme no Copcon, que enviou o major de 37 anos, que no 25 de Abril liderara a ocupação da sede da PIDE. Havia “confusão, porque o conselho de administração não se queria demitir e não aceitava as reivindicações dos trabalhadores”, recorda à SÁBADO o agora coronel, de 82 anos. Entre elas estava a demissão dos seis homens que, com Queiroz Pereira à cabeça, lideravam os destinos da companhia. E a sua nacionalização. O substantivo surgia com todas as letras numa faixa colocada
varandas: “Democratização = Nacionalização.” Era uma das primeiras vezes que se exigia a nacionalização de uma empresa privada. Nesta faixa prometia-se igualmente o “total abastecimento, a livre entrada e saída de trabalhadores reunidos e “saneamentos”. Ao Sempre
Fixe, um delegado dos cobradores da CAL explicaria: “Depois faremos um inquérito para apurar quem foram as pessoas que alinharam com a administração e fizeram o seu jogo.” Américo Pena ficou oito dias na sede: “Vinha a casa tomar banho, fazer a barba, mudar de fato” e regresnas
AMÉRICO PENA FICOU OITO DIAS NA SEDE: “VINHA A CASA TOMAR BANHO E MUDAR DE FATO”
sava, conta. Apesar dos agentes que se mantinham à porta, para entrar bastava apresentar o cartão e dizer que se ia à caixa de previdência da empresa ou aos serviços médicos (havia enfermeiro, médico, radiologista e até um clínico que fazia consultas ao domicílio). Pena pertencia já à comissão de trabalhadores que assumiu desde o início – até num comunicado distribuído à população e longamente citado pelos jornais – a manutenção do fornecimento de água. Pediram a Campos Andrada que fizesse a proteção dos reservatórios de água – onde temiam “a tentativa de sabotagem” dos “reacionários”. E essa missão foi entregue à GNR e à PSP.
Capital contra operários
A agitação dos trabalhadores, recorda Américo Pena, já se sentia em 1973, com a exigência de melhores salários, sobretudo para os funcionários das chamadas profissões menores. Naquele pós-Abril, pediam um salário mínimo de 7 mil escudos. Mas a desconfiança mútua agravava-se, então, de dia para dia. E os trabalhadores da Companhia das Águas de Lisboa (CAL) vociferavam agora livremente o que antes calavam. Acusavam a administração de ser “corrupta” e “com altos dividendos, com manifesto prejuízo para os 1.300 trabalhadores” (referidos no Diário de Notícias), de ter “ligações com o regime anterior” e de “incúria no abastecimento de água a Lisboa” (citado pel’A Capital). A barreira erguida entre o capital e a força operária, para usar dois termos citados pelos jornais da época, era intransponível. A administração decidia louvar ou promover alguém? Era um lacaio seu (e muitos seriam saneados a partir do verão de 1974). E o anteriormente imposto acordo coletivo de trabalho (que impunha uma tabela salarial e que consideravam injusto) era agora considerado “fascista”, “desumano”.
Numa coluna na Águas Livres ,a revista interna da empresa de março-abril de 1974, a administração confessava-se aos trabalhadores incapaz de “prover um abastecimento regular”. Por um lado, o consumo crescia – com a inclusão dos “concelhos limítrofes” na área de influência da Companhia das Águas de Lisboa, que representaria então cerca de um milhão e meio de pessoas –, mas havia “indisciplina no con
A ADMINISTRAÇÃO CONFESSAVA SER INCAPAZ DE “PROVER UM ABASTECIMENTO REGULAR”
NAS ZONAS ALTAS DE SINTRA, A ÁGUA APENAS CHEGAVA EM AUTOTANQUES DOS BOMBEIROS
sumo”. Por outro lado, nenhuma obra era possível sem “autorização governamental”, pelo que “à Empresa não é possível atuar livremente quer nos financiamentos, quer nas receitas”. E ainda era referida outra nota de incapacidade: o contrato de concessão obrigava-a a ceder vez e meia o consumo particular ao Estado e à Câmara Municipal de Lisboa. Tratava-se de uma “dotação excessiva e sem igual em qualquer outra parte do mundo”. Esta reivindicação não era só feita internamente.
A 27 de maio, Manuel Sousa, chefe da secção de contencioso da CAL, explicá-lo-ia n’A Capital: “A companhia farta-se de enviar ofícios ao município, mas a verdade é que os repuxos decorativos continuam em funcionamento e são às dezenas as bocas de rega avariadas.” A água continuava a correr – e em excesso –, mas não para as torneiras dos consumidores comuns. E obras que o solucionassem? À Capital, Manuel Sousa revelou ser impossível prever “o seu início, uma vez que continuam abertos alguns concursos”. Tal como no texto no jornal interno, os responsáveis da CAL apontavam críticas ao controlo da comissão de fiscalização – logo, ao Estado. Nessa data, toda a cidade e arredores passava (então com cerca de 1 milhão e 500 mil pessoas) por uma crise no abastecimento justificada por este porta-voz da empresa com uma “canícula que inesperada e precocemente caiu sobre o nosso país”. Nas zonas altas de Sintra, por exemplo, a água apenas chegava em autotanques dos bombeiros e do exército. Em Camarate e Figo Maduro (ambos no concelho de Loures) a água apenas corria nas torneiras ao nível do rés do chão. Aos vizinhos dos andares de cima, chegava um líquido barrento.
E na manhã de dia 28 correria o boato – difundido na rádio – de que a água iria faltar “na zona abastecida” pela companhia, o que agravou o problema: a população começou a armazenar água, aumentando assim o volume de consumo de um bem então muito escasso. O Ministério do Equipamento Social e Ambiente foi, então, obrigado a fazer um comunicado sui generis: “Devem os consumidores abster-se de dar ouvidos a informações que não tenham caráter oficioso.” E o armazenamento de água devia ser “evitado”.
Outro boato corria por estes dias de “canícula” e falta de água: que os funcionários da CAL estavam em greve. Se bem que não inteiramente verdadeiro, este outro diz-que-disse baseava-se num facto: a agitação dos trabalhadores da companhia era
real e o despique com a administração subia de tom de dia para dia. Disso mesmo foi testemunha Agostinho Mourato Grilo. O então major (hoje coronel) foi apontado como delegado da Junta de Salvação Nacional à CAL. E o que fazia? “Ninguém sabia qual era a função. Era apagar incêndios e tentar resolver aquelas coisas”, recorda, com crítica, à SÁBADO.
O mediador acidental
O próprio modo como foi nomeado, a 6 de maio, é demonstrativo de como aquelas semanas a seguir à Revolução foram dirigidas com algum improviso. Mourato Grilo tinha ido encontrar-se com Jaime Silvério Marques, chefe do Estado-Maior. “Ele estava um bocado transtornado”, recorda. Disse-lhe: “Não tenho tempo para atender, vamos lá abaixo que o general Spínola quer falar comigo.” Lá abaixo era o Palácio de Belém. “Entro numa sala e estava o Vasco Gonçalves, que tinha sido o meu comandante em Angola. Não lhe conhecia orientações políticas, sempre foi boa pessoa, ingénuo”, conta. Ao vê-lo, o seu antigo superior diz-lhe: “Você, Grilo, tem de aturar estas coisas, tem de ir para a CAL, porque há lá uma grande mobilização.” Estava nomeado, sem “função perfeitamente definida”, como explicaria um mês depois num “memorial” de 17 páginas redigidas à máquina e entregue, entre outros, ao governo e ao conselho de administração da CAL. Nesse documento, apresentava a sua demissão, mas descrevia também os encontros com o executivo, as exigências dos trabalhadores (do aumento dos vencimentos, às 40 horas de trabalho ou promoção de alguns grupos) e a estratégia, que segundo o seu relato de então e o que agora fez à SÁBADO, se entende como errante da administração. Dois exemplos: “O senhor Carlos Queiroz Pereira, que era uma pessoa toda elegante, dominando aqueles professores doutores, engenheiros [do conselho de administração]” passou a chamá-lo todos os dias para resolver diferendos, como aquela vez em que o encarregado “Gastão da Graça”entrara em diferendo com os trabalhadores, que incluíra até pedradas. “Iam levantar um processo disciplinar e queriam saber o que eu achava.” Agostinho Mourato Grilo, lendo neste pedido um modo de o “entalar” (isto é, de o colocar do lado da administração) recusou-se: “O delegado da Junta de Salvação Nacional não [existe] para fazer processos disciplinares.” Noutra ocasião, Carlos Queiroz Pereira estava preocupado com uma reunião dos trabalhadores nos Olivais, onde estavam as oficinas da companhia. “Há uma agitação nos Olivais. Senhor major, peço-lhe que vá dominar aquilo.” Outra recusa do oficial: “A empresa é vossa. Eu cheguei aqui ontem. Os senhores estão aqui há 20 ou 30 anos. Há uma agitação e pedem-me para ir dominar a situação?” O administrador acedeu ir ele próprio – mas pediu-lhe que o acompanhasse e também fizesse uma intervenção.
Um dos diferendos que teve de gerir foi a proposta de os trabalhadores aceitarem três administradores nomeados pelo governo para continuarem ao lado dos seis já no cargo.
Um movimento sem partidos?
A 30 de maio, o pessoal da CAL desceu a Avenida da Liberdade em direção ao Terreiro do Paço, onde estavam os ministérios. O cami
MOURATO GRILO FOI A BELÉM POR ACASO E SAIU NOMEADO POR VASCO GONÇALVES PARA AS ÁGUAS DE LISBOA
nho foi feito em silêncio, com exceção para “uns infiltras que a meio da Rua Augusta se meteram a fazer barulho”, relata Américo Pena. Foram corridos e as únicas palavras dessa manifestação eram as que se agitavam nos cartazes. No gabinete do secretário de Estado das Obras Públicas, Mourato Grilo alertou para “a possível evolução indisciplinada da companhia, caso não começassem a surgir algumas respostas”. Vinte e dois dias depois deu-se a ocupação, que Américo Pena, então inscrito no sindicato dos metalúrgicos, garante não ter tido qualquer influência partidária (assumindo que apenas um dos “11 ou 13 membros da comissão de trabalhadores” é que era militante comunista) ou sindical:
“– Ao Partido Comunista fazia confusão, porque a gente fazia coisas mais à esquerda do que o Partido Comunista.
– O quê?
– As ocupações, sem dar conhecimento, não havia nenhuma organização, nenhuma célula que dissesse ‘vamos fazer isto ou aquilo’.” Mourato Grilo não partilha da mesma opinião: “É evidente que havia um partido mais organizado, o PCP. Pensar que não havia incidências e empurrões... É claro que devia haver.”
O major Mourato Grilo já não assistiu, na condição de delegado da junta, a essa ocupação. Nem à decisão, a 26 de junho, de antecipação do fim da concessão da CAL tomada por um conselho de ministros com múltiplas preocupações. Neste período eram incontáveis os protestos e greves (dos CTT, dos lanifícios ou da Marinha Mercante, que ameaçou cortar o abastecimento ao País).
Ainda durante o governo de Marcelo Caetano, em 1973, ficara decidido o fim da concessão para outubro de 1974. É por isso que Vítor Paranhos Pereira, administrador da Sonagi, a empresa que os Queiroz Pereira constituíram mais tarde e que ficou com os ativos imobiliários da CAL, diz à SÁBADO o que sempre ouviu na empresa desde que ali entrou (já muito depois desse conturbado ano 1974): a decisão do executivo antecipou apenas o fim já previsto para daí a poucos meses.
A pressão dos trabalhadores
Já a historiadora Raquel Varela acompanha a certeza de Américo Pena – e aquela faixa colocada na varanda da sede naquela tarde de 21 de junho de 1974 – de que esta foi uma nacionalização: “Não podemos ser tão ilógicos da história. Podia ser feita uma nova concessão e não uma nacionalização”, diz à SÁBADO a historiadora que em dois artigos académicos considerou esta a primeira nacionalização depois da Revolução. Depois de um verão com uma administração nomeada pelo governo, a 30 de outubro surgiria a nova empresa pública, que assumiria o nome de Empresa das Águas de Lisboa, ou EPAL, como hoje é conhecida.
Continua Raquel Varela: “É nacionalizada com a pressão dos trabalhadores. Está claramente inserido no movimento social” que nesse verão levou à nacionalização do Banco de Angola e do Banco Nacional Ultramarino e em 1975 – sobretudo após o 11 de março – das empresas de “petróleos, eletricidade, gás, tabacos, cervejas, siderurgia, cimentos, transportes marítimos, celuloses, construção e reparação naval, transportes coletivos”, na maioria de grupos económicos robustecidos durante o Estado Novo. Fechou-se um ciclo.
“PODIA SER FEITA UMA NOVA CONCESSÃO E NÃO UMA NACIONALIZAÇÃO”, DIZ RAQUEL VARELA