As estátuas da família Assad regressam: são um sinal da vitória
Num país em colapso, liderado por uma família que prefere abrir as portas do inferno a desistir do poder, os símbolos estão de volta nas praças e ruas.
No início da insurreição na Síria, em março de 2011, a população de Deraa, no Sul do país, derrubou uma estátua do falecido Hafez al-Assad. O regime era atacado num dos seus símbolos máximos: o fundador da dinastia política no poder. Ditador durante 30 anos, Hafez era o pai do presidente Bashar al-Assad, que então parecia uma figura débil perante a vaga de protestos que se espalhavam como cogumelos, com apoio de dirigentes religiosos. A contestação vinha da maioria sunita, o que era extremamente perigoso para a família presidencial, que é alauita, um grupo minoritário na Síria, do ramo xiita do islão. Estes símbolos são importantes e a queda da estátua podia ter sido o fim do regime, mas o Presidente respondeu de forma cruel, com atiradores furtivos e carros de combate contra os manifestantes desarmados. Após 30 anos da tirania de Hafez e 11 sob o regime do filho, a população pedia uma simples abertura política, mas seguiram-se prisões em massa por todas as regiões da Síria que tinham ousado desafiar a família Assad. Entretanto, Deraa tornou-se um dos centros da rebelião, foi incessantemente atacada e recuperada pelo governo apenas em meados do ano passado.
O mosaico étnico e religioso da Síria foi terreno fértil para barbaridades que incluíram execução de prisioneiros, bombardeamentos indiscriminados e uso de armas químicas contra civis
OITO ANOS DEPOIS DA QUEDA DA PRIMEIRA ESTÁTUA, BASHAR MANDOU PÔR OUTRA NO CENTRO DE DERAA
Oito anos depois da queda da primeira estátua, no mesmo dia de março dessa ocasião simbólica, Bashar mandou pôr no centro da cidade (ou do que resta dela) um novo monumento a celebrar o pai. A mensagem foi clara: o poder não esquece e não perdoa, não haverá concessões para os vencidos. Apesar de ter estado por diversas vezes à beira do colapso, a casa de Assad está agora mais perto de conseguir liquidar os derradeiros bastiões da resistência. O ditador sírio já recuperou dois terços do território e, beneficiando da ajuda da Rússia e do Irão, aumentou a pressão militar sobre as milícias de oposição que ainda controlam parte da região de Idlib, no Norte.
Uma inauguração com tiros
Houve protestos em Deraa no próprio dia da inauguração da estátua. Testemunhas mencionam uma manifestação espontânea perto do local, numa zona meio arruinada, mas as autoridades fecharam as ruas e a multidão dispersou em pânico quando se ouviram tiros nas proximidades. O facto é que o Governo prossegue a sua política de terra queimada e controla a cidade desde julho do ano passado, após duros combates que incluíram ataques da aviação russa e a ajuda no terreno de milícias iranianas. Muitos residentes partiram para a zona ainda controlada pelos rebeldes, mais a norte, mas uma parte da população permaneceu, não evitando as retaliações da polícia política ou a mobilização forçada para o exército sírio. Deraa é sobretudo habitada pelo medo. Os serviços básicos não foram restaurados e há frequentes cortes de energia. Além disso, os iranianos instalaram-se junto à fronteira com a Jordânia e perto dos Montes Golã controlados por Israel. A presença iraniana é um elemento fundamental do conflito. Bashar não tem autoridade sobre estes seus aliados, que os israelitas consideram uma ameaça iminente. Mais a norte, a situação na fronteira turca é igualmente perigosa, pois o Governo ataca milícias rebeldes cujo único ponto de fuga é o território turco. No caso dos grupos mais radicais, com filiação à Al-Qaeda, a passagem de refugiados é vista pela Turquia com grande ansiedade.
Somados 50 anos de tirania, Bashar provou estar à altura da crueldade do pai. Hafez era um oficial da aviação que foi conquistando o poder até se desembaraçar de todos os seus rivais, em 1970, num golpe militar. Líder do partido Baath (nacionalismo árabe) Hafez criou um regime socialista apoiado pela União Soviética, com ambições regionais. Além dos xiitas, o seu apoio vinha de outras minorias, como cristãos ou drusos, que temiam o eventual triunfo da maioria sunita. Com ajuda do exército e da poderosa polícia secreta, Hafez criou um culto da personalidade que se prolongou além da sua morte, em 2000.
As suas estátuas não serviam apenas para enfeitar cidades, visavam glorificar o ditador, mas na segunda versão pretendem humilhar os vencidos. Deir Ezzor e Homs foram dois outros alvos desta política do sucessor. Reconquistada em 2014, de Homs restam ruínas e uma pequena parte da população original. Em agosto do ano passado, o bastião dos opositores teve a honra duvidosa de celebrar os melhoramentos numa estátua de Hafez al-Assad que, neste caso, é uma particular injúria, pois Homs foi vítima de uma das maiores atrocidades da carreira do fundador da dinastia, o massacre de 1982: em resposta a uma rebelião popular liderada pelo movimento da Irmandade Muçulmana, a cidade foi cercada e bombardeada sem piedade, com uso de blindados e helicópteros de ataque. Houve mais de 10 mil vítimas, isto numa localidade que na época tinha 250 mil habitantes.
Conflito regional
Atualmente, a crise na Síria já não é apenas uma guerra civil, mas um conflito regional. O apoio russo e iraniano ao regime de Bashar desagrada aos Estados Unidos e às principais
A MENSAGEM É CLARA: O PODER NÃO ESQUECE E NÃO PERDOA, NÃO HAVERÁ CONCESSÕES PARA OS VENCIDOS
potências do Médio Oriente. A destruição do Estado Islâmico era do interesse de todos os intervenientes externos, mas, afastada essa ameaça, a violência pode extravasar fronteiras de outras formas. Israelitas e americanos querem limitar a influência do Irão e há informações sobre discussões discretas com a Rússia, no sentido de ser reduzida a capacidade de interferência iraniana. Por seu turno, a Turquia quer limitar o poder do enclave curdo que se formou no leste da Síria, enquanto Israel tem bombardeado alvos governamentais que considera ligados à influência do Irão. Como demonstra o caso das estátuas, o triunfo final do regime de Bashar só é possível com a submissão absoluta dos rebeldes sunitas, o que significa o esmagamento dos aliados da América e a vitória do aliado da Rússia. Do ponto de vista de Israel ou da Arábia Saudita, este seria um resultado negativo. A economia síria está em escombros e a violência já causou mais de 500 mil mortos, o que significa que em oito anos de guerra morreram por dia na Síria, de forma violenta, mais de 170 pessoas. Antes do conflito, a Síria tinha 22 milhões de habitantes. Mais de 12 milhões tiveram de fugir de onde viviam, incluindo deslocados internos que necessitam de ajuda humanitária, e mais de seis milhões de refugiados, que se encontram sobretudo na Turquia, Líbano, Jordânia e Alemanha. No enclave que resta de rebeldes sunitas, na província de Idlib, calcula-se que estejam encurralados três milhões de homens, mulheres e crianças. Nos últimos três meses, acentuaram-se os bombardeamento russos e do regime sírio sobre esta bolsa de resistência, causando pelo menos 1.500 mortos e pondo em movimento 300 mil refugiados. Muitas famílias recorrem a traficantes para passar para a Turquia e dezenas de fugitivos foram mortos na fuga. Os refugiados sírios são um problema crescente para os países vizinhos. No Líbano, onde crescem os incidentes de rejeição, os sírios são já um quarto da população. No fim desta tragédia, talvez não reste ninguém na Síria para admirar as estátuas da família Assad.
HOMS, RECONQUISTADA AOS REBELDES, VIU A ESTÁTUA DE HAFEZ AL-ASSAD SER ALVO DE MELHORAMENTOS