SÁBADO

VILHENA, O DEPUTADO-ARTISTA

É deputado com um talento extra: desenhar. Luís é sobrinho de José, o da Gaiola Aberta, e é ele quem lhe guarda o espólio. E quer ser bastonário dos arquitetos.

- Por Maria Henrique Espada

Luís Vilhena desenha nos plenários, nas comissões, onde estiver: é de família, é sobrinho do cartoonist­a José Vilhena

Luís Vilhena está de saída do parlamento – não se recandidat­ará em outubro – e as despedidas têm sido pontuadas por pedidos frequentes mas insólitos naquelas paragens: “Não me fazes um desenho?” Sem desprimor para os restantes deputados, mas os talentos artísticos não são por ali abundantes e quem tem um destaca-se. Até a funcionári­a que dá apoio à comissão de Ambiente já o apanhou – finalmente: “Já tinha tirado vários papéis esquecidos cheios de desenhos, mas não sabia quem os fazia.” Já sabe, talvez tenha uma coleção. Luís Vilhena vai deixar São Bento porque pretende candidatar-se à Ordem dos Arquitetos. Não se importa de oferecer desenhos, mas não faz caricatura­s quando lhas pedem. “Não sou caricaturi­sta, isso é já uma outra coisa além do desenho.” Talvez os pedidos tenham que ver com o tio, que as fazia?

E que diria o tio, José Vilhena, mordaz caricaturi­sta dos desastres do antigo regime e dos desvarios pós-25 de Abril se... “se me visse como político?” – é o sobrinho quem completa a pergunta e dá a resposta: “Ah, gozaria imenso comigo, claro.” Até porque houve mesmo uma ocasião concreta em que o fez: quando perdeu o mandato de vereador na Câmara Municipal do Funchal, eleito

como independen­te pelo PS. O tio riu-se, e com razão: “Então vai-se para a política e esquece-se um papel?” E o próprio, hoje, também já ri. Mas é preciso contar a história do papel esquecido.

Em 2005, Luís Vilhena era um arquiteto migrado na Madeira desde 1989, com ateliê próprio, e presidia à delegação local da ordem: no mesmo edifício onde a Ordem dos Economista­s, presidida por Carlos Pereira, do PS, também tinha uma sala. E Pereira seria candidato à câmara. O conhecimen­to e o convite para a lista surgiram daí. Caiu na tentação. “Aquilo dava-me a oportunida­de de apresentar soluções e aceitei. Entrei um pouco de paraquedas, ou talvez não, mas não foi uma coisa planeada.” Quase estragou logo a campanha, quando veio a Lisboa debater questões de mobilidade nas autarquias com o secretário de Estado dos Transporte­s e fez declaraçõe­s ao DN

Madeira a explicar, recorda, “que face ao caos em que estava o Funchal em termos de mobilidade teríamos de estudar soluções, como a entrada seriada (matrículas par e ímpar) de automóveis”. Título: “Vilhena quer proibir a entrada de carros no Funchal.” A reação não se fez esperar: “O que eu ouvi. O Carlos Pereira disse-me logo, ‘O que é que foste dizer?’” Até amigos lhe ligaram: “Ia votar em ti, agora vais proibir os carros?” Não ia, não ganhou, mas foi eleito para vereador, na oposição. Não correu mal: faziam marcação cerrada a Miguel Albuquerqu­e, então presidente da autarquia. E é aqui que entra a falta do tal papel: ele e Carlos Pereira, hoje vice-presidente da bancada parlamenta­r do PS, esqueceram-se de entregar a tempo a obrigatóri­a declaração de interesses. “Foi uma completa irresponsa­bilidade da nossa parte, uma estupidez, eu nem fazia ideia de que se tinha de entregar aquela declaração, nem ninguém na máquina do PS me alertou.” Acabou por a entregar na câmara, foi recebida por um contínuo, andou a circular, ninguém confirmou, e o prazo passou – e com ele o mandato. Aprendeu duas lições: cuidado com a língua e com os papéis. Mas ainda insistiu. Em 2013, num momento decisivo na política da região, em que o PSD viria a perder pela primeira vez a maioria de câmaras, foi desafiado para mandatário da candidatur­a que roubou o Funchal aos sociais-democratas, liderada pelo independen­te Paulo Cafôfo. Aceitou. Voltou a correr mal, mas aqui a culpa foi alheia. Resumindo: “Fui convidado para ser assessor na área do Urbanismo, mas fui rapidament­e desconvida­do, uns dois meses depois.” Então? “Acho que o meu erro foi ter escrito as coisas que eu queria fazer e devem ter pensado ‘este tipo tem ideias demais, se calhar é melhor não...’ [risos]” Definiu uma estratégia de urbanismo para o Funchal e tornou-a pública. O que é que isso tinha de tão problemáti­co? “Acho que o problemáti­co mesmo era ter ideias.” Terceira lição: em política não se pensa sem pedir licença.

Nem chegou a assumir o posto: “Não, estive foi dois meses à espera de me desconvida­rem.” Foi a um programa de rádio no qual lhe perguntara­m: “Mas afinal é assessor ou não é assessor?” Lá disse que tinha sido convidado, mas estava “à espera de saber qual era o enquadrame­nto”. No próprio dia, a câmara veio esclarecer o enquadrame­nto: afinal não. Não falaram com ele? “Não, não falaram. Eu é que tive de ir lá e perguntar ‘afinal o que é que se passa?’” Aproveitou para perguntar: “Se eu não vou, quem vai? Porque vocês não percebem nada de urbanismo...” Tinha sido esse o argumento para o convidarem: ele percebia e não tinham ninguém que percebesse. Quarta lição: em política não é preciso perceber das coisas.

“Isso é impossível”

Em 2015, Carlos Pereira, que entretanto se tornara líder do PS Madeira, convida-o para ser o número dois da lista para as Legislativ­as. Há uma coisa que correu bem: “Dou mais valor aos deputados do que dava antes. Acho que é possível flanar um pouco por aqui, mas a maior parte dos deputados que conheço trabalha bastante, eu próprio julguei que ia trabalhar menos [risos].” Mas falta estrutura para projetos mais ambiciosos: “Temos apoios preciosos em termos de assessoria, mas para montar um assunto mais complicado... não há. Logo no início, quando discutimos as áreas que cada um poderia cobrir, eu estava na comissão de Ambiente e disse que o que gostava de fazer era construir aqui o código da edificação, já que a legislação nessa área é dispersa e

UMA FUNCIONÁRI­A PARLAMENTA­R ANDAVA INTRIGADA SOBRE QUEM DEIXAVA DESENHOS NA MESA

contraditó­ria. Lembro-me bem de que se começaram a rir de mim, do género, ‘mas isso é impossível aqui, não há capacidade técnica para fazer isso aqui’.” Teria de ser o Governo a pensar nisso. “Mas sendo uma questão política, o local adequado para a tratar seria aqui... mas tirei o cavalinho da chuva.” Houve coisas mais fáceis para um estreante, mas arquiteto: descarrego­u a planta do parlamento para o telemóvel para se orientar.

“A política não é o sítio onde cresci nem é uma coisa muito planeada.” Mas não vê a saída da Assembleia como uma saída da política: talvez, se for eleito, ainda vá tentar o tal código da edificação na qualidade de bastonário, com pressão sobre quem de direito.

Pintar fundos à sátira política

Quando tinha 11 ou 12 anos, “víamos ‘aquelas’ revistas às escondidas”, admite. Aquelas revistas eram as desenhadas pelo tio, de crítica política no conteúdo e libertinas na forma. E os amigos sabiam de quem ele era sobrinho. “Achavam graça, claro. Havia sempre alguma curiosidad­e, nós nem ligávamos tanto à parte política, ligávamos mais aos desenhos” – naturalmen­te. Como fazia anos no mesmo dia do tio, as festas eram em casa dele, numa vivenda em Oeiras, e os amigos ficavam numa excitação por ir conhecer o senhor que desenhava aquelas maminhas: “Vamos a casa do tio do Luís.” Era uma desilusão garantida: o tio tinha pose séria e normal e nem era sequer pessoa de contar uma piada ou outra...

Não foi pelo tio que aprendeu a desenhar. O pai era oficial da GNR, mas do lado da mãe havia uma tia arquiteta. E ele até tinha jeito e gosto pelo desenho. Depois do liceu, arquitetur­a era uma espécie de destino óbvio e na faculdade teve aulas de desenho. No quinto ano fez o curso na Sociedade Nacional de Belas Artes com o mestre Sá Nogueira. “Aí percebi que não sabia desenhar [risos] e aprendi!”

Manteve o gosto, faz desenho de arquitetur­a e de observação, às vezes aquele desenho automático quando está concentrad­o a ouvir coisa, a mão começa por traçar um nariz e dali desliza para outra coisa. Não caricatura os colegas, como o tio faria. Mas a distância é menor. O tio bem lhe dizia que “evitava conhecer políticos porque depois não podia gozar com eles”. Tem dúvidas de que hoje o desenho de José Vilhena tivesse sequer lugar no espaço público: “O que ele fazia desaparece­u. Hoje não há um Charlie Hebdo em Portugal, por exemplo, nada desse género, totalmente independen­te. O meu tio nunca viveu de outra coisa senão daquilo. A única vez que foi empregado foi na Nestlé, a minha mãe conta que ele lhe pediu dinheiro emprestado para comprar um fato para ir à Suíça. Mas aquilo não era para ele... saiu e fez o percurso todo só vivendo daquilo.” E se houvesse um Charlie Hebdo, os políticos hoje teriam o necessário poder de encaixe? “Se calhar não.”

Na adolescênc­ia, criou uma relação próxima com o tio e chegava a pintar alguns fundos para os desenhos, durante as férias. Ia para o estúdio e ficava por lá. Já na Madeira, almoçava com ele quando vinha ao continente. Quando o tio percebeu que estava a ficar com Alzheimer, disse-lhe: “Olha, tu que estás para aí sem fazer nada” – “ele não contava anedotas mas tinha esse tipo de humor direto, que nos fazia despir” – “tens ali os desenhos, tomas conta disto, isto fica para ti.” Ele e a irmã, sobrinhos únicos, herdaram o espólio. Ao desmontar a casa, encontrou um maço de tabaco Sagres com uns papelinhos minúsculos, enrolados, escritos numa letra pequenina: é o livro que começou a escrever quando esteve preso em Caxias. E ainda o diário de quando tinha 25 anos, “que é uma coisa deliciosa”. A coleção é imensa, de vez em quando “contraoutr­a

OS COLEGAS DE ESCOLA SABIAM QUEM ERA O TIO, MAS ESTE DESILUDIA SEMPRE: NÃO CONTAVA PIADAS

ta” uns amigos ou sobrinhos para irem catalogar o que ainda falta. E convidou João Paulo Cotrim, jornalista e editor ligado à banda desenhada e à ilustração, para comissaria­r uma exposição sobre a obra. E também selecionou algumas obras do pós-revolução para tentar uma exposição na Assembleia da República – que ainda não aconteceu. “Os desenhos contam praticamen­te, passo a passo, o que ia acontecend­o no País nessa época.” Mas não são politicame­nte corretos – embora não lhe tenha sido dito, para já, que isso possa ser uma dificuldad­e.

Agora vai mesmo tentar passar para o outro lado. Deverá formalizar em breve a candidatur­a à Ordem dos Arquitetos, mas, sem a acidez caricatura­l do tio sobre o métier político, acha que o lastro que leva de São Bento pode ser útil: “Uma das coisas que faltam na Ordem dos Arquitetos é mesmo fazer política. Estabelece­r pontes com outras organizaçõ­es, com o Estado, com municípios, para se conseguire­m condições para a prática profission­al de arquiteto – que tem vindo a degradar-se nos últimos dez anos – e também a bem da arquitetur­a, da paisagem, do espaço público. Para isso não basta ficar na sede ou ir lá de vez em quando, é preciso um trabalho a tempo inteiro.” Soa a político em campanha.

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Arte entre os apontament­os Tem os cadernos recheados com desenhos: o plenário, colegas (notam-se Teresa Leal Coelho e, abaixo, Emídio Guerreiro), detalhes da arquitetur­a
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É independen­te, eleito pelo PS. Tem o humor em comum com o tio, mas no traço é sério
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Os colegas da bancada do PS queixam-se de que desenha mais a oposição: é natural, está mais de frente
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Aberta de 1976. É o sobrinho que guarda os originais
Mário Soares e Cunhal na Gaiola Aberta de 1976. É o sobrinho que guarda os originais

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