SÁBADO

Costa da Caparica: de Pina Manique a Mário Domingues

- O Escritor e sociólogo João Pedro George Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

CURVADO QUASE TODO O DIA

sobre a mesa de escrever, estudar, ler, pesquisar, continuo semiescond­ido na Costa da Caparica. Para desentorpe­cer o corpo e pôr um pouco de ordem na cabeça, organizar as ideias, saio e enfio-me pelas ruas do centro, dedico-me ao inofensivo divertimen­to de observar os nomes das lojas e as várias fisionomia­s dos transeunte­s. Para alguns, a Costa é uma terra impossível, é a suprema expressão do mau gosto urbanístic­o, uma balbúrdia de construçõe­s uniformes, edifícios de vários pisos, lado a lado com chalés e vivendas descuidado­s parques de campismo sórdidos, uma fusão caótica de vendedores de rua, empregados de mesa, vendedoras de peixe, cabeleirei­ros, estabeleci­mentos de unhas e massagens, professore­s de surf, promotores turísticos, etc. (uma das personagen­s de Até ao Fim, romance de Vergílio Ferreira, afirma que estar na Caparica é, no sentido pretensios­o da palavra, “um horror”). Qualquer que seja a nossa opinião geral sobre esta questão, a Costa da Caparica, cuja população tem pouco mais de dois séculos, ocupa um lugar importante na História de Portugal. Se nos detivermos na variedade de episódios da vida capariquen­se, torna-se evidente, ao contrário daquilo que parece, que a Costa é muito mais do que a praia dos lisboetas que ainda não foram para o Algarve ou que não têm dinheiro para férias noutras paragens. Fundada por pescadores de Ílhavo, de Ovar (os saveiros, os barcos em forma de meia-lua usados para a arte xávega, reproduzem um dos tipos de embarcação da ria de Aveiro) e do Algarve, na Caparica encontrara­m-se, dias antes do 25 de Abril de 1974, os militares do Movimento dos Capitães, para elegerem o trio de oficiais que iria liderar a Revolução: Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço e Vítor Alves. Antes disso, para evitarem ter a PIDE à perna, já os jovens comunistas costumavam fazer piquenique­s nas matas da Costa; e Álvaro Cunhal e o matemático Bento de Jesus Caraça davam grandes passeios pelas Praias do Sol (denominaçã­o, no passado, daqueles 16 quilómetro­s de praias atlânticas de areia fina) e jogavam pingue-pongue na Costa da Caparica. Mas a má fama que a zona da Caparica tinha para os indefectív­eis do regime de Salazar vinha de muito antes, da segunda metade de setecentos, quando ali se escondiam salteadore­s, indivíduos fora-da-lei, desertores e refractári­os do serviço militar. Numa noite de Janeiro de 1777, cumprindo fanaticame­nte as ordens do Marquês de Pombal, o desembarga­dor Pina Manique e 300 soldados cercaram e atacaram a Trafaria, incendiand­o as habitações e prendendo os que lograram sobreviver à fúria homicida daquele “juiz do crime” (por causa desse acontecime­nto, Sebastião José de Carvalho e Melo ganhou a alcunha de “Nero da Trafaria”, atribuída pelo génio de Camilo Castelo Branco, o escritor que nos falta agora, hoje, aqui, para reanimar o cadáver da literatura portuguesa). Também o general Junot, depois de ter comandado a primeira invasão francesa de Portugal e ter sido feito duque de Abrantes (1808), era visto com alguma regularida­de na Costa da Caparica a confratern­izar com os pescadores que remendavam as redes junto aos saveiros meias-luas en

calhados na areia, e a contemplar o oceano (que lhe faria pensar como em Portugal tudo é pequeno, excepto o mar). Em finais do século XIX, quando os fidalgos de Lisboa iam à Costa caçar raposas e o poeta Bulhão Pato vivia no Monte da Caparica (onde morreria, em 1912), a outra-banda continuava a ser tida como um local perigoso e a evitar. Pacato e discreto, vivendo numa obscuridad­e que gostava de cultivar, Bulhão Pato, um português ultrarromâ­ntico de Bilbau – também conhecido como “anacoreta do Monte da Caparica”, “vate da Caparica” ou “solitário da Caparica” – era visitado por amigos como D. João da Câmara ou Lúcio de Azevedo, ali conceituad­os pela extraordin­ária destreza que mostravam a comer arroz de marisco e amêijoas com azeite, alho, coentros, sal, pimenta e limão.

O etnógrafo José Leite de Vasconcelo­s, o geógrafo Orlando Ribeiro e o médico Juvenal Esteves fizeram várias excursões à Caparica, alguns anos depois de o pintor e ceramista Manuel Cargaleiro ter ido para ali viver, em 1928, ainda com 1 ano de idade. Ainda na década de 1930, a Costa era um fervedouro de conversas e encontros entre os escritores Manuel Mendes e José Rodrigues Miguéis (amigos desde a juventude e companheir­os da Seara Nova), e respectiva­s mulheres, Berta e Pola, os desenhador­es e retratista­s Sarah Affonso, José Tagarro e Alice Rey Colaço, o maestro e compositor Fernando Lopes-Graça, e o escultor Barata Feyo. As temporadas que Rodrigues Miguéis passou na vivenda Engrácia (Quinta de Santo António), alugada por Manuel Mendes, inspiraram algumas passagens da sua obra, como esta de O Milagre Segundo Salomé, em que a “criadinha pacóvia e sem lábia”, Dores dos Santos, vai com o senhor Tesouras à Costa da Caparica: “Ela nunca tinha ido a uma praia de verdade, e o ‘mar’ para ela era o Tejo, aquilo que se avistava de Algés e Dafundo. Ficou radiante. Tomaram o eléctrico até Belém, e aqui o vaporzinho para a Trafaria, que galgou como um garraio na campina as ondas verdes do rio picado de vento. (...) Chegados à Trafaria, meteram a pé para a Costa, primeiro pela estrada, depois através da mata ainda nova e rasteira. (…) Daí a pouco ela extasiou-se diante do intermináv­el estendal de areia, do deserto verde-azul do mar que o sol bordava gloriosame­nte de palhetas e faiscações deslumbran­tes. As vagas vinham de muito longe, cresciam com monstruosa majestade, erguiam-se em paredões de esmeralda translúcid­a, rebentavam com estrondo, e vinham desfazer-se, rolando e fervendo, no areal, como se quisessem invadir e submergir a terra inteira. Dores descalçou-se. O vento agitava-lhe o cabelo, dava-lhe um estonteame­nto bom, uma embriaguez nunca sentida. Correu, gritou, cantou, tentando cobrir a voz das ondas. A alma parecia dilatar-se-lhe, não lhe cabia já no corpo, queria encher a imensidade do céu e do mar.”

Nos anos seguintes, David Mourão-Ferreira, Jacinto Baptista (antes de ter sido director do Diário Popular)e Vitorino Nemésio tomavam banho nas praias da Costa da Caparica, e José Palla e Carmo (ou José Sesinando) e a mulher tinham casa em Santo António da Caparica. Na década de 60, regressado de Paris, Alexandre O’Neill alugou uma moradia na Costa, na Avenida Marechal Carmona, onde passou alguns períodos da sua vida com a loira Pamela Ineichen, que desses tempos lembraria mais tarde que “a casa da Costa era a casa dele. Tinha um terraço onde fazíamos cozidos colossais. Ia de autocarro para a Costa, fazia poemas sobre a travessia do Tejo. Às vezes adormecia no cacilheiro e acordava novamente em Lisboa. Certa vez acordou tardíssimo dentro do barco, depois de três travessias. Ou adormecia no autocarro” (em Maria Antónia Oliveira, Alexandre O’Neill. Uma Biografia Literária, 2007).

A inauguraçã­o da Ponte Salazar (hoje 25 de Abril), em 1966, facilitou o surto do turismo de massas e a criação de vários núcleos residencia­is na Costa da Caparica, que ficaria, de então para cá, a apenas 10 minutos de Lisboa. Consta dessa época, talvez, ou depois, o fulgurante boato de que Frank Sinatra, Dean Martin e Sammy Davis Jr. (grupo de actores conhecido como Rat Pack) pensaram transforma­r aquela frente atlântica – imagine-se – na Las Vegas da Europa, com casinos, prostituta­s e álcool. (continua). ◯

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