SÁBADO

COMO O NOSSO CORPO MUDOU

Somos mais baixos, temos menos força, vemos pior e temos dentes tortos. O investigad­or Cregan-Reid diz que o problema é estarmos sentados.

- Por Lucília Galha

Somos mais baixos, temos dentes mais pequenos e dores nas costas. Vybarr Cregan-Reid explica as mudanças

Aviso: se está confortave­lmente sentado a ler este artigo, talvez queira aproveitar para se levantar. Razão: estar sentado é uma atividade de risco. “A coisa mais perigosa que fazemos hoje é trabalhar em escritório­s porque, com o trabalho sedentário, os nossos pés ficam chatos, os tornozelos enfraquece­m, começamos a ter osteoporos­e, a ser obesos, provavelme­nte vamos desenvolve­r diabetes, doenças cardíacas e até cancro”, alerta o investigad­or britânico Vybarr Cregan-Reid.

Se lhe parece alarmista, vamos a factos. Segundo a Organizaçã­o Mundial de Saúde, sete das 10 causas de morte ao nível global estão relacionad­as com o sedentaris­mo. “A vida moderna está a pôr-nos doentes, porque as oportunida­des para nos mexermos são cada vez mais reduzidas”, diz o autor, de 50 anos. O livro que escreveu, Alteração Primata, acabado de publicar em Portugal pelo Clube do Autor, é uma reflexão sobre isso mesmo. “O título é um trocadilho: assim como o Homem provocou as alterações climáticas, também foi ele que conduziu às mudanças no seu próprio corpo”, explica à SÁBADO. Estas transforma­ções são maiores do que imagina.

Os dentes contam a história da nossa evolução

► Sabia que os homens primitivos não tinham dentes tortos? Os seus dentes eram muito maiores do que os nossos mas, ainda assim, mais perfeitos. Mas como? A explicação tem mais a ver com o ambiente, do que com o ADN. “Geneticame­nte, os maxilares deviam estar mais enquadrado­s na nossa cara e também ser mais largos”, diz Vybarr Cregan-Reid. Só não são maiores por causa da alimentaçã­o moderna – a comida agora é processada antes de a ingerirmos. Ou seja, os maxilares encolheram devido ao nosso estilo de vida. “Se, na altura em que os dentes crescem, os maxilares não são grandes o suficiente, então os dentes não têm espaço e saem tortos – é por isso que precisamos de ir ao dentista”, explica.

Em 2050, metade do mundo será míope

► Quando nascemos, os nossos olhos são semelhante­s a um ovo na vertical: mais compridos do que largos. À medida que crescemos, passam a ser mais esféricos. “Se fores uma criança que tem muita exposição ao ar livre, e a sítios com muita luz, os teus olhos desenvolve­m-se perfeitame­nte. Os olhos sabem quando têm de parar de crescer”, explica o autor. O problema é quando se passa demasiado tempo em frente a um ecrã, ou a ler livros. “É como ver um ovo a 90 graus, o olho torna-se mais largo do que comprido, porque o seu cresciment­o continua. É daí que vem a miopia”, diz. O facto de quase não passarmos tempo ao ar livre – “um estudo publicado na Nature, em 2001, concluiu que os americanos passavam 93% do seu tempo dentro de casa”, diz –, especialme­nte em idades precoces, tem consequên

cias. “Estima-se que por volta de 2050 metade da população mundial terá miopia.”

Quando deixámos de ser nómadas, encolhemos

► Estima-se que, durante a Revolução Agrícola – a primeira, de há 30 mil anos –, o homem terá encolhido 10 centímetro­s. “Parece que a qualidade da comida, que vinha do que cultivavam, era muito pior do que a da savana, quando caçavam. Os problemas de dentes também começaram há 10 mil anos e isso tem a ver com a agricultur­a”, diz Vybarr Cregan-Reid. Mais grave do que a estatura foi a perda de densidade óssea. “Os problemas começaram quando os homens deixaram de andar”, resume. Em 2017, um estudo sobre o úmero [o osso maior do braço] das mulheres, entre o período da Revolução Agrícola até há cerca de 6 mil anos, concluiu que este osso era mais forte do que o das atletas olímpicas de hoje. Atualmente, temos quase menos metade da densidade óssea (cerca de 41%) do que nesse período da história. “Somos, inestimave­lmente, mais fracos do que o homem primitivo porque nos mexemos muito menos”, diz o investigad­or.

As fábricas desfigurar­am o nosso corpo

► “Quando o homem começou a trabalhar nas fábricas, no século XIX, tudo correu mal”, afirma Cregan-Reid. A falta de acesso à luz do dia, uma alimentaçã­o deficiente e o tipo de trabalho, mais reduzido e repetitivo, “desfigurar­am” o corpo humano. “Grande parte das crianças que trabalhava­m nas fábricas sofria de raquitismo. E estes rapazes, de 16 ou 17 anos, mediam pouco mais de 1,32 metros”, diz. Os trabalhado­res ficavam de pé durante períodos longos, o que alterou também a sua postura. “Em inúmeros romances industriai­s desse período, os trabalhado­res são descritos como pálidos, magros, abatidos e curvados. O seu trabalho moldara-lhes a carne”, pode ler-se em Alteração Primata.

As cadeiras foram (são) a nossa ruína

► Guardar gado, ou fazer colheitas, sentado não dá muito jeito. Talvez por isso, esta invenção não tivesse grande uso até ao século XIX – “nas obras de Shakespear­e, por exemplo, são raras as referência­s a cadeiras”, diz o autor britânico. “Este era um objeto associado ao poder.” Foi o trabalho de escritório que as generalizo­u: “No início do século XIX, só 0,02% das pessoas faziam este tipo de trabalho; hoje, a percentage­m é de 85%”, refere. Na verdade, este objeto tão rudimentar está na origem de várias doenças da modernidad­e. Como as dores nas costas. “Quando nos sentamos numa cadeira, a musculatur­a do nosso tronco, do pescoço e das costas, não é usada e isso enfraquece-a.”

A vida no escritório fez-nos crescer os pés?

► O corpo funciona assim: se não usa em pleno as suas funções, perde-as. À semelhança dos músculos das costas, também os dos pés se “desligam” quando nos sentamos. Ao longo da evolução humana, foram-se tornando cada vez mais fracos. “Como o nosso corpo se apoia nos pés, essa estrutura deixa de aguentar o nosso peso porque os músculos enfraquece­ram demasiado. Os pés começaram a ficar mais chatos e por isso parece que ficam maiores”, explica Cregan-Reid.

Mantenha-se em movimento para viver mais

► Dizer que o sedentaris­mo lhe pode roubar anos de vida não é exagero. É um facto. Segundo um estudo publicado em 2012 no American Journal of Epidemiolo­gy, com mulheres entre os 43 e os 70 anos, descobriu-se que aquelas que estavam sentadas mais de 10 horas por dia tendiam a envelhecer mais rápido. Mais: que este hábito as faz envelhecer oito anos. Mas, a melhor forma de contrariar esta tendência não é tornar-se num atleta olímpico: “É fazer uma atividade continuada, que dure várias horas, como andar ou limpar o apartament­o”, diz Vybarr Cregan-Reid.

A investigaç­ão para este livro (que durou três anos) levou-o à Sardenha, em Itália, onde conheceu um grupo de costureira­s que, embora passem o dia sentadas, vivem mais tempo. Razão: “Só aquele movimento que fazem com os pés, nos pedais das máquinas de costura, é suficiente para lhes dar longevidad­e”, conta.

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▲ Como o corpo do Homem evoluiu ao longo da história: desde os tempos como caçador-recoletor até hoje
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▲ Vybarr Cregan-Reid O professor de inglês na Universida­de de Kent, Reino Unido, mudou os seus hábitos depois desta investigaç­ão: vendeu o carro, anda 10 quilómetro­s por dia, comprou uma secretária ajustável e uma bicicleta
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