LUÍS VIDIGAL VOLTOU A ELVAS – E FALOU DA INFÂNCIA, DO SPORTING, DA VIDA EM ITÁLIA E ATÉ DE TURISMO
Foi campeão no Sporting, jogou no Nápoles e esteve quase no Real Madrid. Dirigiu a Academia de Alcochete duas vezes, primeiro com Godinho Lopes e depois com Frederico Varandas. Agora abriu um turismo rural em Elvas.
Aconversa com Luís Vidigal, de 46 anos, começou à mesa, com pernil e bochechas de porco. Depois do almoço, o passeio pela cidade de Elvas iniciou-se junto ao antigo Hotel Alentejo, para onde a sua família foi viver em 1975, fugida da guerra de Angola: “Foi naquele terraço que fiz as primeiras peladinhas com os manos” – teve 12 irmãos. O percurso continuou pelo centro histórico (com muitas paragens para cumprimentos) e seguiu até à zona do castelo, onde em criança jogava à bola com duas pedras a fazer de balizas. Pelo meio ainda encontrou o antigo professor de Matemática, com quem discutiu a crise do Sporting – Silas tinha sido apresentado como treinador nessa manhã. Luís Vidigal em Elvas. Um dia poderá ser candidato à autarquia? “Se for necessário para que a cidade evolua, estarei disponível. Mas isso está longe dos meus pensamentos”
Nasceu em Angola em 1973 e mudou-se para Portugal com a família com 2 anos. Como foram os primeiros tempos em Elvas?
Primeiro fomos para Vidago, e a seguir é que fomos para Elvas, onde ficámos dois anos no Hotel Alentejo. Depois a Cruz Vermelha disponibilizou terrenos e materiais de construção para que os meus pais e os meus irmãos mais velhos, assim como outras pessoas que vieram de Angola, pudessem construir as suas próprias casas. E cresci aí, no Bairro da Boa-Fé, juntamente com os meus 12 irmãos, numa casa onde ainda hoje festejamos os Natais e as passagens de ano com a minha mãe, a D. Deolinda.
Como é que foi a sua infância?
Foi espetacular: 80% do tempo era a jogar à bola, mas também brincávamos à apanhada, às escondidas, íamos à pesca e à caça.
O que é que caçavam?
Íamos apanhar pardais com uma pressão de ar. Depois vendíamos os pardais nos cafés e nas tascas de Elvas, eram um belo petisco e dava para ganhar algum dinheiro. Eu e o Lito acordávamos cedo, e antes de irmos para a escola íamos para umas amoreiras perto de uma fonte e numa hora apanhávamos 10, 15 pardais. O Lito levava os óculos da nossa mãe, de aumento, para ver melhor os pardais entre as folhas. Começou a jogar no Elvas, com 9 anos.
Sim, houve uma evolução meteórica com o meu irmão mais velho, o Beto, que se tornou profissional. Co
“Era franzino e não era muito alto, mas ganhava as bolas todas de cabeça, porque tinha uma impulsão incrível”
meçou no Elvas e subiu com a equipa à I Divisão. Isso foi espetacular, porque deu-nos a oportunidade de ver no Alentejo os grandes clubes, o Sporting, o Benfica, o FC Porto. Eu e os meus irmãos assumimos que era aquilo que queríamos fazer. E conseguimos todos ser profissionais de futebol e jogar na I Liga.
Quantos é que foram jogadores?
Cinco foram profissionais. O Beto, o Lito, que fez grande parte da carreira no Belenenses, a seguir eu, o Toni e o Jorge – começámos no Elvas e seguimos para o Estoril e o Sporting. Houve ainda o Vítor, que esteve nos clubes amadores da zona, e três irmãs que jogaram no campeonato nacional de futebol feminino, no Elvenses.
“Dos 13 irmãos, cinco foram profissionais, o Vítor esteve nos amadores e três irmãs jogaram no Elvenses”
No início era defesa central. Porquê?
Talvez pelas minhas características: responsabilidade, carácter, liderança. Eu era franzino e não era muito alto, mas ganhava as bolas todas de cabeça aos avançados, porque tinha uma impulsão incrível. Isso até foi objeto de estudo na Associação de Futebol de Portalegre. Só nos seniores é que comecei no meio-campo.
Passar de júnior para sénior foi complicado?
O Elvas estava na II Divisão e nos primeiros jogos, apesar de estar nos convocados e de entrar, não era titular. Entretanto mudámos de treinador, saiu o Isidro Beato, que tinha vindo do Estoril, e entrou o Carlos Cardoso – já tinha treinado o Elvas na I Divisão, era experiente e deu-nos estabilidade. E conquistei a titularidade. Ele percebeu o potencial que tínhamos, eu e o meu irmão Toni. Tanto que dali a dois anos fomos para o Estoril.
Apesar de ter ido com o seu irmão, foi uma grande mudança?
Foi. No primeiro mês, como tínhamos umas noções básicas de culinária, só comíamos esparguete ou arroz com croquetes e filetes. Aquilo não podia continuar, e então passamos a ir comer ao restaurante de um vizinho, o sr. António, que nos fazia uma refeição por um valor pequeno e comíamos com qualidade: peixe, carne, legumes, tudo. Nesse ano, no início da época perdemos o nosso pai, foram tempos muito difíceis. Se eu e o Toni não estivéssemos juntos, a ajudar-nos um ao outro, não sei se
“Tínhamos umas noções básicas de culinária e só comíamos esparguete ou arroz com croquetes e filetes”
chegado onde chegámos: foram dias e noites de muito choro e saudade, longe da família.
Esteve no Sporting cinco épocas, e em 2000 foi campeão, acabando o jejum de 18 anos. Como foi a festa?
Terá sido, porventura, a maior de sempre. Inesquecível não só para os sportinguistas, mas mesmo para os portugueses. Abarcou o País inteiro. O jogo realizou-se no Porto, no campo do Salgueiros, e houve gente a festejar em todos os lugares por onde passámos. As pessoas estavam na beira da autoestrada com bandeiras a acenar. A seguir foi para o Nápoles.
Havia vários clubes interessados, o Arsenal, o Sunderland, o Inter de Milão, mas a melhor oferta para o Sporting foi a do Nápoles. Aceitei e não me arrependo de nada, é uma cidade fantástica, onde sempre fui muito respeitado e fiz relações para a vida – fui lá padrinho de dois casamentos.
Sente-se a pressão dos adeptos?
Sim, aquilo é duro, e é verdade que alguns colegas meus foram agredidos, como o capitão de equipa da altura, o Baldini, seguiram-no e atacaram-no à porta de casa. Isso passa muito pela atitude dos jogadores, os adeptos não toleram quem não dá tudo em campo, quem não sua a camisola, mas claro que isso não justifica esses comportamentos, que condeno.
Nunca teve problemas?
Nunca. Só para perceberem o respeito que têm por mim, e isto num clube onde jogaram Maradona, Higuaín, Cavani, Lavezzi, há três anos fui convidado para ir ver o Nápoles-Benfica, na Champions, e ao chegar ao aeroporto, de repente começo a ouvir os cânticos de quando eu lá jogava, em 2004: “Vidigal, Vidigal, o que nos interessa o Ronaldo se temos o Vidigal.” Isto porque na altura o brasileiro Ronaldo Fenómeno jogava no Inter. O pessoal do Benfica ficou espantado.
No Nápoles, esteve para ir para o Real Madrid?
Sim. Estou em casa com a minha mulher, numa tarde de verão, em 2003, e toca o telefone: era um amigo meu, que a seguir me passa ao Carlos Queiroz. Ele diz-me: “Preciso de ti aqui, o Makélélé recebeu uma proposta do Chelsea e quer ir embora. Nesta equipa ninguém defende e 1 A decoração do Monte da Graça foi feita pelo ex-futebolista. Em breve vai ter spa, piscina interior e receber eventos, como casamentos ou festas de empresas quero-te cá, para dar equilíbrio.” Mas o Makélélé só chegou a acordo mesmo em cima do fecho do mercado inglês, e entretanto o mercado em Espanha tinha fechado, por isso não fui para o Real e o Queiroz ficou sem mim e sem o Makélélé.
Saiu do Nápoles em 2004, com o clube falido. Como foi essa situação?
Foi um período difícil, o clube estava a cair, seguiu para a 3ª divisão, eu terminava o contrato e acabei por sair. Fui para o Livorno, convidado pelo treinador, que já tinha estado comigo em Nápoles [Franco Colomba]. Fizemos uma grande época, conseguimos ir às competições europeias e o Lucarelli foi o melhor marteríamos cador da Liga italiana, com 24 golos. A seguir fui para a Udinese. Grande equipa, com jogadores muito experientes: Sensini, Candela, Iaquinta, De Sanctis. Conseguimos apurar-nos para a Champions, afastamos o Sporting na pré-eliminatória.
Esteve no Sporting a dirigir a formação com Godinho Lopes (2011-13) e Frederico Varandas (2018-19). Ainda espera voltar ao Sporting?
Nunca vou dizer que não ao Sporting. Mas neste momento necessito de descansar, preciso de me afastar e de estar com a minha família.
Tem uma empresa de agenciamento de jogadores?
Quem anda no futebol, querendo ou
“Tive colegas que foram agredidos [em Nápoles]. Os adeptos não toleram quem não sua a camisola”
não, acaba por se tornar um agente. Os clubes contactam-nos, os amigos que entretanto se tornaram treinadores ligam a pedir informações… É provável que nos próximos tempos vá montar uma estrutura que possa acompanhar e ajudar alguns atletas, particularmente os mais novos.
Já tem miúdos assegurados?
Já tenho alguns observados e contactados, talvez uns 10. São miúdos bons, de 10, 15, 17 anos. Tenho olheiros e também vou aos locais para ver, já houve miúdos referenciados em Lisboa, Porto, Algarve, Açores, Madeira.
Este verão abriu um turismo rural em Elvas, o Monte da Graça. Como é que decidiu lançar-se nesta área?
Isto começou há mais de 20 anos, quando ainda estava no Sporting. Fui alertado por um amigo para este local e foi amor à primeira vista, até porque fica perto do Bairro da Boa-Fé, onde cresci, e é um espaço escondido, que me dá privacidade. Fizemos obras e foi casa de férias durante muitos anos, para mim e para familiares e amigos, mas pensei sempre em desenvolver aqui algo diferente, para que isto não estivesse fechado praticamente o ano inteiro.
Quando surgiu a ideia do turismo?
Há três anos, numa ida de Lisboa para o Algarve de férias com a família, resolvemos fazer um desvio e passar aqui para visitar a minha mãe e os meus irmãos que estão cá. Só que não me lembrava que tinha emprestado o espaço a uma igreja para fazerem um encontro de jovens. Então fui procurar na Net um sítio para ficar em Elvas, mas só havia disponibilidade para dali a mais de um mês. Fiquei surpreendido e comecei a pensar o que poderia sair daqui se enveredássemos por esse caminho. Feitas as obras, hoje temos aqui um espaço muito agradável, com uma nota de 9.7 no Booking. Abriu a 1 de agosto e tem estado sempre cheio.
Está casado há 19 anos. Teve sorte a encontrar a mulher da sua vida?
Não foi sorte. Eu sou crente, e fui pedindo a Deus que colocasse na minha vida uma mulher que me pudesse acompanhar e que me pudesse completar. E a verdade é que encontrei uma mulher extraordinária.
Como é que a conheceu?
É uma história incrível: íamos jogar ao Norte e estava no autocarro do Sporting, à saída da porta 10-A. Estava com o Marco Aurélio, o Simão Sabrosa e o Tiago, e de repente o Marco Aurélio chama-me à janela: “Nego, Nego, vem ver esta morena bonita que vai ali a passar.” Ela ia com uma amiga e nem reparou em nós. E o Marco Aurélio sai-se com esta: “Vais casar com ela.” Eu comecei-me a rir e respondi: “Deixa-te de tretas.”
Mas casou mesmo.
Duas semanas mais tarde, vou a sair do estádio e vejo-a a vir na minha direção. Pensei: “Eu conheço esta cara”. Ela abordou-me, explicou que estava na universidade, no curso de jornalismo, que queria falar com algumas figuras do Sporting e perguntou-me se tinha tempo para uma entrevista. Eu fiquei embasbacado e pensei: “É melhor dizer que não posso agora e peço-lhe o número de telefone.” E fui para casa a pensar: “Então aquele maluco disse-me que eu ia casar com a rapariga e agora ela aparece-me aqui assim.” Liguei-lhe, fomos tomar um café, ela fez-me as perguntas, combinámos outro café quando ela tivesse o trabalho pronto, começou a criar-se ali uma amizade e 19 anos depois continuamos juntos e com três filhos. ◯
“O Marco Aurélio chama-me à janela: ‘Nego, Nego, vem ver esta morena bonita que vai ali a passar’”