SÁBADO

GERINGONÇA 2.0: O NOVO MODELO PODE DURAR ATÉ...

A direita acusou-o de traição por ter virado à esquerda. Ele diz que sempre esteve no centro e assim se manteve. Só a coluna vertebral e um cancro o pararam. Saiu da universida­de, fechou contas, decidiu vendas de casas e despediu-se dos amigos.

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Para António Costa, a estabilida­de garantiu o sucesso da última legislatur­a e é condição para o da próxima. Aguentará como a primeira? Perguntámo­s a quem sabe

Cinco dias após a morte de Diogo Freitas do Amaral, a 3 de outubro, Mariana França Gouveia abriu a gaveta e encontrou uma carta escrita pelo antigo professor, em janeiro. Tem o papel de linhas de sempre e as letras grossas foram desenhadas cuidadosam­ente com a caneta de feltro azul, também de sempre. Apesar da técnica antiga, Freitas respondia com a celeridade de um email, recorda Vera Eiró, outra professora da Faculdade de Direito da Nova – a escola que cofundou, inspirado pelas visitas a universida­des norte-americanas na sua temporada na ONU.

DISCOS NO PLAZA

► Em setembro de 1995, Domingos Amaral escreveu um texto para o semanário O Independen­te com o título: “O dia em que o meu pai tomou conta do mundo.” O filho, tal como os irmãos e a mãe, esteve lá – e apesar de o pai ter achado o título um exagero, a função que assumia (presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas), foi uma das que mais o envaideceu. A aventura começou com um convite de Durão Barroso, então ministro dos Negócios Estrangeir­os de Cavaco Silva. Mas, só depois de levar António Guterres a almoçar e de lhe pedir o apoio da Internacio­nal Socialista, conseguiu o número de países suficiente­s para garantir a eleição. Nos primeiros meses em Nova Iorque instalou-se numa suíte do Hotel Plaza, em Nova Iorque – e colocou a sua coleção de discos sobre a lareira de mármore cor-de-rosa.

CORTES EM JORNAIS E HOTÉIS

► Foi o primeiro ministro a ser convidado por José Sócrates para o Governo. Nos Negócios Estrangeir­os – pasta que já tivera com Sá Carneiro – estava sempre preocupado com as contas. Reduziu as toneladas de jornais e revistas para dois diários portuguese­s mais o El País e o Financial

ESCREVIA SEMPRE COM A MESMA CANETA DE FELTRO AZUL, ATÉ OS DESPACHOS DO MINISTÉRIO E OS LIVROS

Times. E os hotéis passaram de 5 para 4 estrelas. Ia sempre na TAP em executiva, mas porque havia uma acordo de desconto. Os despachos (e os livros) eram escritos à mão, com a caneta de feltro de sempre, e depois passados pela secretária.

VISITAS

► Os filhos nunca foram ao MNE visitá-lo, diz uma fonte, mas a mulher chegou a ir fazer-lhe companhia. O gabinete não tinha marcas da sua presença: era sóbrio, limpo, arrumado. E manteve-se metódico, como sempre. Um exemplo: quando o filho Domingos lhe entregou o manuscrito de um dos romances, fez uma estimativa de quantas páginas tinha que ler por dia para terminar em 10 a 12 dias.

A COLUNA, DESDE 1976

► Quando tomou posse, o então comentador Marcelo Rebelo de Sousa

QUANDO FOI MINISTRO DECLAROU TER €1,4 MILHÕES INVESTIDOS NO BES. RICARDO SALGADO ESTEVE NO VELÓRIO

disse ter dúvidas sobre a sua frescura para MNE. E não se enganou. Não eram tanto as jornadas de 12h de trabalho, mas as dores de costas, que vinham desde 1976. Na campanha presidenci­al de 1986 recorreu ao massagista que já o seguia – ministrava-lhe duas massagens, uma às 7h da manhã e outra antes de se deitar. Em 2000, quando foi abordado para concorrer contra Jorge Sampaio (seria abordado em todas as Presidenci­ais), uma das razões para recusar foram as dores de coluna. Gomes Cravinho, atual ministro da Defesa, recorda-se de como uma queda em Bruxelas, ainda em 2005, o debilitou. Nessa mesma noite viajou para Luanda “com tremendas dores” e teve de encurtar a visita. “Fez uma segunda viagem noturna [Luanda-Lisboa] para ter o tratamento” em Portugal. O mandato acabaria por ser curto – saiu em julho de 2006 e horas depois foi operado.

ADEUS ÀS AULAS

► Voltou à universida­de onde duas antigas alunas – Vera Eiró e Mariana França Gouveia, a atual diretora da Faculdade de Direito da Nova – o recordam à SÁBADO como “um professor superempen­hado” e “entusiasma­do”. Aposentou-se em 2007, mas continuou a dar aulas até 2018: “Por ter piorado o meu estado de saúde, tive de pôr fim à minha vida de professor universitá­rio”, escreveu nas memórias.

AUTOR BESTSELLER

► Para reforçar a sua candidatur­a presidenci­al em 1986, Freitas do Amaral lançou um livro chamado Uma Solução para Portugal, pela Europa-América. Teve 20 edições e vendeu 35 mil exemplares. Era já o seu 23º livro publicado (e tinha apenas 44 anos). O primeiro fora, em 1965, O Caso do Tamariz: Estudo de jurisprudê­ncia crítica. O seu livro mais vendido – cerca de 75 mil livros – foi a biografia de Afonso Henriques.

PRESSA NO FIM

► O último ano – quando, nas fases mais agudas do tratamento ao cancro dos ossos, não conseguia trabalhar mais de meia hora – tentou apressar vários projetos. Queria ter escrito um livro de peças sobre os bastidores do poder (duas delas foram representa­das na Trindade entre 2002 e 2003). “Mas não sei se vou a tempo”, confessari­a.

FECHO DE ATIVIDADE

► A empresa Diogo Pinto Freitas do Amaral, Unipessoal, Lda. foi encerrada em dezembro de 2018. Tinha sido constituíd­a em 2011 com capital social de €5.000 para consultori­a, direitos de autor, conferênci­as e atividades educativas. A declaração de IRS de Freitas de 2003 indica €460 mil de rendimento­s de trabalho independen­te e €50 mil de dependente, além de €30 mil em pensões e €31 mil em direitos de autor. Valores constantes nas declaraçõe­s seguintes. Em entrevista à SÁBADO em 2008 disse que “um parecer médio pode custar €25 mil, mais IVA”.

A CASA DA QUINTA DA MARINHA

► Antes de a propriedad­e existir como a conhecemos hoje, já os

Q pais iam para lá passar férias nos anos 50. Mais tarde, em 1979, Freitas foi um dos residentes inaugurais do condomínio de luxo de Cascais – com a mulher, com quem estava casado em regime de separação de bens. Foi nesta casa que começou a formar-se a sua campanha presidenci­al de 1986.

USUFRUTO DA CASA DOS FILHOS

► Nas suas declaraçõe­s de património indicou que tinha direito de usufruto com a mulher de um segundo andar da rua da Escola Politécnic­a, em Lisboa, junto ao Príncipe Real. Acrescento­u que a casa estava no nome dos quatro filhos.

TERRENOS E UM HOSTEL

► Nas suas declaraçõe­s ao Tribunal Constituci­onal, indicou ser copropriet­ário de três “terrenos de mato” em Calvos, Guimarães, que somam 11.000 m2. Tinha ainda metade de um prédio no Largo João Franco, Guimarães. Neste edifício do século XVII viveu Freitas do Amaral, bem como o pai e o avô (o coronel Duarte Amaral, que chegou a ser presidente da câmara de Guimarães). Os dois pisos de baixo estão hoje a ser explorados para turismo. É o Hostel FA, que tem uma suíte no rés do chão e duas no primeiro andar. Uma noite (por exemplo, já esta sexta-feira para sábado) custa €50.

€1,4 MILHÕES NO BES PRIVATE

► Freitas do Amaral indicou ter cerca de €1,4 milhões em participaç­ões financeira­s no BES Private. Estávamos a cerca de 10 anos do escândalo que fez ruir o banco e não há notícia de que a família Freitas do Amaral tenha sido prejudicad­a. Ricardo Salgado e a mulher fizeram questão de estar presentes no velório. E a mulher de Freitas é Salgado pelo lado materno.

QUINTA POSTA À VENDA

► Chama-se Quinta da Aveleira (Pencelo, 4 km de Guimarães) e está à venda na Remax por €499 mil. Foi posta no mercado há um ano por um preço a rondar 1 milhão de euros. A casa era do lado paterno dos Freitas do Amaral desde 1960, mas quando o patriarca morreu (em 1979) a mãe, Maria, tomou conta da propriedad­e e da sua exploração agrícola. São 11 hectares, três deles para cultivo (essencialm­ente vinha) e 600 m2 de construção. A casa de obras de interiores. Inclui vários anexos e permite a construção de uma segunda casa. Tornou-se um refúgio de férias e quadras festivas – foi aqui o casamento da filha mais velha, Filipa Amaral. Freitas refugiava-se aqui também para trabalhar e escrever.

HÁ TRÊS CASAS DA FAMÍLIA QUE ESTÃO À VENDA, SÃO ALOJAMENTO LOCAL OU ESTÃO NO AIRBNB

PALACETE NO AIRBNB

► O lado materno de Maria José Freitas do Amaral tinha desde 1857 a

Villa Roma (há um lado da família de apelido Roma e é por isso que usa o pseudónimo Maria Roma), uma casa oitocentis­ta que fica literalmen­te mesmo em frente à Quinta da Regaleira, em Sintra. Parte da adolescênc­ia e juventude passou-a lá, até se casar com Freitas do Amaral em 1965. A Villa Roma está hoje disponível no Airbnb e quem a explora é uma empresa detida pelos oito irmãos em partes iguais de €500 de capital social. Alberga até quatro pessoas: duas num quarto e as restantes em sofás-cama. Para este fim de semana custa €100 a noite.

OSTRACISMO

► Num dos almoços habituais, já em 2018, com Ribeiro e Castro – gostava dos restaurant­es do Guincho – explicou-lhe porque “tinha feito uma viragem à esquerda”. E tudo começara com a visita a bairros de lata na campanha das presidenci­ais em 1986. “Contou-me que isso o marcou e lhe ficou a martelar na cabeça.” A direita nunca lhe perdoou e por isso sentia-se ostracizad­o. Já a esquerda acolheu-o: tornou-se até amigo de Francisco Louçã. João Gomes Cravinho, que o visitou há duas semanas no hospital, nunca o sentiu sozinho. “Nunca abdicou dos seus princípios. Não tinha uma perspetiva tribal.” Falaram de política e Freitas confessou-lhe a intenção de votar PS. Morreu três dias antes das eleições. A canção de despedida nos Jerónimos foi o clássico de Sinatra My Way (à minha maneira). ◯

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 ??  ?? ► Fotografad­o para a SÁBADO em 2006, em Praga, quando era ministro dos Negócios Estrangeir­os
► Fotografad­o para a SÁBADO em 2006, em Praga, quando era ministro dos Negócios Estrangeir­os
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 ??  ?? ► Na mesma reportagem para a SÁBADO, em 2006, com a mulher no avião
► Na mesma reportagem para a SÁBADO, em 2006, com a mulher no avião
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▲ Numa feira do livro no Príncipe Real, em Lisboa, em 2007

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