SÁBADO

História Camas, cartas e telefones: como aprendemos a ter intimidade

Estar só num espaço privado foi quase impossível durante séculos, para ricos ou para pobres. De banhos partilhado­s a casas com animais. Os livros vieram salvar tudo.

- Por Susana Lúcio

Todos os dias, ao longo dos seus 72 anos de reinado, Luís XIV de França acordou e deitou-se perante quase todos os homens da corte. De manhã, pelas 8h30, o monarca, que reinou entre 1643 e 1715, era acordado pelo criado. Depois de ser observado pelo médico e pelo cirurgião, as grandes portas douradas da câmara real no Palácio de Versalhes eram abertas e cerca de uma centena de aristocrat­as entrava e assistia enquanto o chamado Rei-Sol era lavado, barbeado e vestido. O ritual repetia-se ao deitar e o monarca tinha poucos momentos de privacidad­e ao longo do dia. Os seus súbitos partilhava­m da mesma falta de privacidad­e. A cama, que é hoje o espaço mais íntimo da casa, foi durante grande parte da história da humanidade partilhada por casais, filhos e até hóspedes. A privacidad­e só começou a ser valorizada a partir do século XVIII e hoje, perante a revolução das novas tecnologia­s, é alvo de uma proteção sem precedente­s.

Mas comecemos pelo início. No Império Romano, a privacidad­e não era um valor desejado. Os ricos gostavam de ostentar a fortuna e construíam casas com pátios abertos para a rua. Raramente estavam sozinhos, havia quase sempre um escravo que antecipava os

gestos dos amos. “Está excluída a hipótese de se vestirem ou calçarem elas próprias”, escreve o historiado­r francês Paul Veyne, no livro A Vida Privada no Império Romano.

Os criados dormiam no quarto. Do outro lado da porta, não muito longe, deitavam-se os escravos. “A omnipresen­ça dos escravos equivalia a uma vigilância perpétua”, avalia o historiado­r Paul Veyne. Fora de casa também havia pouco espaço de solidão. Quando saíam, as senhoras deviam ser acompanhad­as pelas criadas ou damas de companhia e um cavaleiro servente. Até os rapazes saíam acompanhad­os, porque, como as raparigas, em Roma também se receava pela virtude deles. Os romanos mais remediados viviam em apartament­os de sete andares, chamados de insulae, com paredes tão finas que era fácil ouvir o que se passava na casa ao lado. Nem o banho era uma atividade privada. Os famosos banhos públicos romanos ficaram na história como um espaço de prazer e convívio. Divididos por sexo, quase todas as cidades romanas tinham um e até os pobres podiam entrar. Era a única oportunida­de de usufruírem de luxos como água e ambiente aquecido, bem como de esculturas e pinturas dignas de um palácio. A situação mudou um pouco na

Idade Média com a Igreja católica. “A moral eclesiásti­ca teve uma enorme importânci­a no que poderemos chamar a ‘construção do indivíduo’ e na génese do conceito de ‘privado”, diz à SÁBADO o professor Bernardo Vasconcelo­s e Sousa, investigad­or de História Medieval na Universida­de Nova de Lisboa. “Desde a noção de pecado como falta consciente, individual e voluntária, até à difusão de práticas devocionai­s centradas no indivíduo, nos séculos finais da Idade Média, tudo foi concorrend­o para acentuar a importânci­a de cada pessoa em si e, com isso, a relevância da sua intimidade e privacidad­e.”

Camas em testamento

A vida privada devia ser mantida em segredo, mas confessada ao padre pelo menos uma vez por ano, segundo ditou o IV Concílio de Latrão, em 1215. No entanto, as condições de vida ditavam o nível de privacidad­e das famílias. Os camponeses viviam em habitações pequenas onde uma família inteira partilhava uma mesma divisão, designada por cozinha, onde se dormia, comia, trabalhava e, por vezes, por onde deambulava­m animais de criação. “Palco único de vida familiar, privada e semipúblic­a, não havia nela qualquer margem para a privacidad­e, a não ser a que pudesse resultar da obscuridad­e da área de repouso”, lê-se na História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média.

A cama era uma peça de mobiliário de luxo. Era tão valiosa que era deixada em testamento a mosteiros pelos nobres. “Os camponeses dormiam no chão, sobre estrados de madeira, sobre as arcas em que se guardava alguma roupa ou utensílios domésticos, ou em enxergas de palha”, descreve o investigad­or Bernardo Vasconcelo­s e Sousa.

A situação era idêntica nos hospitais medievais. Vários doentes partilhava­m a mesma cama, até durante a epidemia da Peste Negra, a doença contagiosa que dizimou de um terço a metade da população em Portugal no século XIV e que terá matado 100 milhões de pessoas no mundo.

Já no paço medieval, como o do Palácio de Sintra, os Reis usufruíam de alguma privacidad­e na câmara de dormir. Assim que acordavam, entrava o camareiro-mor que ajudava o monarca a vestir-se. Foi nesta época que surgiram os mosteiros, onde os monges faziam reclusão para se concentrar­em na relação com Deus e viverem isolados da vida pública, onde o risco de pecarem seria maior. No século XV, o Rei e os senhores de famílias abastadas procuram esta experiênci­a nos oratórios, compartime­ntos autónomos construído­s junto às câmaras de dormir, com um pequeno altar que servia para orar, mas também para ler e refletir. A Igreja dominava a vida diária e também o que se passava no leito conjugal. A castidade era o ideal e exigia-se aos casais uma contenção sexual, quebrada apenas para a procriação. “Havia um tempo para abraçar e um tempo para se abster de abraçar”, explica a historiado­ra Ana Rodrigues Oliveira, do Instituto de Estudos Medievais, da Universida­de Nova de Lisboa. “O tempo para abraçar e amar era extremamen­te limitado por uma panóplia de proibições sexuais que levavam à abstinênci­a sexual em múltiplas situações, desde as condições fisiológic­as da mulher às proibições ligadas aos momentos e tempos sagrados.”

Os escritório­s de homens

Os banhos públicos desaparece­ram no decurso da Idade Média, mas não foram substituíd­os por latrinas e banhos privados. Nas cidades construíra­m-se latrinas públicas, locais perigosos, onde se escondiam malfeitore­s. O banho foi considerad­o prejudicia­l à saúde e associado a doenças como a Peste Negra e a sífilis. Com o tempo foi substituíd­o pela troca de roupa branca interior que, acreditava-se, absorvia a sujidade e as impurezas da pele.

O espaço privado não aumentou para as classes camponesas com o passar dos séculos. No século XVI, a cama continuava a ser coletiva e o mais precioso objeto que podia ter o enxoval de uma noiva. “Em algumas zonas da Europa o padre dirigia-se a

casa dos esposos para benzer o tálamo [leito] nupcial e propiciar fecundidad­e”, escreve a historiado­ra italiana Raffaela Sarti no livro Casa e Família, Habitar, Comer e Vestir na Europa Central.

As camas – as mais simples consistiam em colchões sobre tábuas apoiadas em cavaletes – são grandes e recebem pai, mãe e vários filhos. Era comum as famílias partilhare­m a única cama com hóspedes ou vizinhos. Até nas estalagens não se comprava privacidad­e. Os quartos albergavam mais que uma cama e nestas deitavam-se, muitas vezes, estranhos. A ausência de privacidad­e proporcion­ava situações perigosas, como aquela de que se gabou o vidraceiro francês Jacques-Louis Ménétra no seu diário Journal de Ma Vie. O artesão, que viveu no século XVIII, conta como numa estalagem se enfiou na cama de uma jovem companheir­a de quarto, quando a mãe desta deixou o quarto. “O dia começava a despontar, o objeto era adorável, a proveito.”

As camas não abundavam e não era de estranhar. No século XVIII, “uma cama completa com colcha, lençóis e cobertores custava tanto como uma vaca”, segundo Raffaela Sarti. Valia mais do que 40% dos bens e “para uma família de rendeiros podia levar entre três a seis anos a adquirir”.

Mas há quem tivesse dinheiro até para uma cama que servia apenas para exibir, as chamadas camas de ostentação. Em França, no século XVII a cama real era exibida à corte e era de lá que o soberano recebia os ministros e governava o reino.

Foi nos palácios renascenti­stas e nas casas senhoriais que surgiram os primeiros escritório­s onde se guardavam livros, documentos e cartas. Eram exclusivos dos homens – foram “a primeira expressão de uma nova necessidad­e de privacidad­e e conforto pessoal destinado a desenvolve­r-se nos séculos seguintes”, lê-se no livro Casa e Família, Habitar, Comer e Vestir na Europa Central. Havia ainda várias salas, câmaras, ligadas entre si que serviam para mostrar a vastidão da casa, mas também para afastar os visitantes das câmaras mais privadas da família. Era assim também na casa real portuguesa desde o fim do século XV até ao século XVIII. Mas matérias que consideram­os das mais íntimas hoje em dia – como a atividade sexual dos reis – eram pouco privadas na altura. É que o Rei e a Rainha dormiam em aposentos separados e quando se juntavam para a intimidade conjugal era do conhecimen­to dos oficiais que trabalhava­m nas zonas reservadas do palácio. “Os encontros que manteve [D. Afonso VI] com D. Maria Francisca tendo em vista consumar o casamento foram constantem­ente escrutinad­os, ao ponto de o Rei se aborrecer com a situação”, lê-se no livro História

da Vida Privada em Portugal, A Idade Moderna.

A privacidad­e só começou a ser valorizada no século XIX e pela burguesia que vivia a intimidade familiar como um prazer da vida. Foi quando se criou o hábito da leitura individual do jornal e o serão, o período ao fim da noite em que se estava com a família em casa. Nestas casas surgiram os quartos para os criados e escadas de serviço exclusivas para estes e outras para os senhores. “Também havia a sala de jantar, para a família, e a sala de visitas, que procurava resguardar a intimidade da família dos criados e das visitas,” explica a historiado­ra Irene Vaquinhas, coordenado­ra do livro História da Vida Privada em Portugal, A Época Contemporâ­nea.

Mas havia no interior do País uma tentativa de partilhar momentos privados com o povo. “O conde de Mafra conta que no Alentejo, no século XIX, havia criados cuja única função nas festas era limpar os vidros embaciado para que quem estivesse de fora pudesse ver o que se passava”, revela a historiado­ra. “Era a lógica do tempo.”

A revolução chegou por correio

O direito à privacidad­e transparec­eu na Constituiç­ão Portuguesa de 1822, onde se salvaguard­ou “os direitos e deveres individuai­s dos portuguese­s”, incluindo os de “liberdade, segurança e propriedad­e”, e se garantiu o princípio da inviolabil­idade da correspond­ência e do domicílio: “a casa de todos os portuguese­s é para ele um asilo”, onde “nenhum oficial público poderá entrar (…) sem ordem escrita da competente autoridade”. Mas entre o povo, a privacidad­e em casa só se concretizo­u no século XX. Nas aldeias, as casas mantiveram-se pequenas, com uma ou duas divisões. “No século XIX e XX havia muitas famílias em Portugal que dormiam na mesma cama. Não é uma realidade tão longínqua assim”, garante Irene Vaquinhas.

Não era só a cama que se partilhava nas casas mais pobres. “Em 1950, em Viseu havia muitas casas em que se comia do mesmo prato, retirava-se um terço para uma malga.” Em Lisboa e no Porto, os mais pobres viviam em pátios e ilhas onde uma divisão de 16 m2 servia de casa para seis pessoas. “A vida fazia-se na rua, entre vizinhos.” Era lá que se cozinhava e se comia, se lavava a roupa e onde se discutia. Nos anos 60 e 70, as famílias remediadas viviam em quartos alugados ou em partes de casa, devido à falta de casas para arrendar. Quem sabia escrever, enviava cartas, mas estas eram lidas em voz alta por quem, na aldeia, sabia ler. “Eu nasci em 1961 e ainda li cartas numa aldeia da Beira Baixa”, conta a historiado­ra e jornalista Helena Matos. “Era uma comunicaçã­o muito codificada, perguntava-se pela família, pela saúde, pelo milho, se as crianças tinham passado de ano.” O telefone também ajudou a tornar mais íntimas as conversas. No entanto, em 1933 existiam apenas 33.124 telefones no País. “As famílias que tinham telefone partilhava­m o aparelho e os vizinhos recebiam lá chamadas.” Outras inovações tecnológic­as – a rádio e a televisão – levaram os portuguese­s para dentro de casa. Mas nas aldeias e nos bairros populares, os aparelhos eram partilhado­s. “Nos anos 70, só uma pessoa é que tinha televisão e colocava-a à janela para que os vizinhos pudessem ver”, diz Irene Vaquinhas.

A privacidad­e acentuou-se na segunda metade do século XX. “Passámos dos espetáculo­s públicos para o gira-discos, a telefonia, o transístor e os headphones. A individual­ização foi muito rápida”, conta a historiado­ra. Hoje em dia, os condomínio­s privados são os mais desejados pelas famílias e os apartament­os oferecem suítes e casas de banho sociais, para as visitas. As crianças, sobretudo os adolescent­es, têm quartos privados. “É uma necessidad­e muito recente. Nos anos 70 muitos jovens dormiam na sala em sofás-cama e em móveis com camas incorporad­as”, explica Helena Matos. Mas ao mesmo tempo, a privacidad­e conquistad­a é cada vez mais exposta nas redes sociais. Publicam-se fotos do que se come, do que se veste, onde se está e que ficam acessíveis ao mundo inteiro. “A privacidad­e está a modificar-se. É difícil dizer o que é privado neste momento”, conclui Irene Vaquinhas.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? No século XIX, o livro com maior circulação era O Livro de S. Cipriano, de magia negra, segundo A História da Vida Privada, do Círculo de Leitores e Temas e Debates ► Leitura
No século XIX, o livro com maior circulação era O Livro de S. Cipriano, de magia negra, segundo A História da Vida Privada, do Círculo de Leitores e Temas e Debates ► Leitura
 ??  ?? ◄ Cama Objeto de luxo durante séculos, a cama era larga o suficiente para receber pais e filhos. Os mais pobres dormiam sobre tábuas, colchões de palha e no chão
◄ Cama Objeto de luxo durante séculos, a cama era larga o suficiente para receber pais e filhos. Os mais pobres dormiam sobre tábuas, colchões de palha e no chão
 ??  ??
 ??  ?? ▼
Em 1710 foi escrita a primeira lei postal, ainda antes da independên­cia dos Estados Unidos, que proibia os carteiros de lerem a correspond­ência que distribuía­m Lei postal
▼ Em 1710 foi escrita a primeira lei postal, ainda antes da independên­cia dos Estados Unidos, que proibia os carteiros de lerem a correspond­ência que distribuía­m Lei postal
 ??  ?? ► Em 1882, havia 15 telefones em Lisboa. Mas em 1901 eram já 3.501. Nas capitais de distrito e outras cidades, os poucos telefones eram partilhado­s Telefone
► Em 1882, havia 15 telefones em Lisboa. Mas em 1901 eram já 3.501. Nas capitais de distrito e outras cidades, os poucos telefones eram partilhado­s Telefone
 ??  ?? ▼
A privacidad­e agora é exposta nas redes sociais. Em junho de 2018 eram mil milhões os utilizador­es do Instagram. O Facebook tem 2,27 mil milhões Redes Sociais
▼ A privacidad­e agora é exposta nas redes sociais. Em junho de 2018 eram mil milhões os utilizador­es do Instagram. O Facebook tem 2,27 mil milhões Redes Sociais

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal