História Camas, cartas e telefones: como aprendemos a ter intimidade
Estar só num espaço privado foi quase impossível durante séculos, para ricos ou para pobres. De banhos partilhados a casas com animais. Os livros vieram salvar tudo.
Todos os dias, ao longo dos seus 72 anos de reinado, Luís XIV de França acordou e deitou-se perante quase todos os homens da corte. De manhã, pelas 8h30, o monarca, que reinou entre 1643 e 1715, era acordado pelo criado. Depois de ser observado pelo médico e pelo cirurgião, as grandes portas douradas da câmara real no Palácio de Versalhes eram abertas e cerca de uma centena de aristocratas entrava e assistia enquanto o chamado Rei-Sol era lavado, barbeado e vestido. O ritual repetia-se ao deitar e o monarca tinha poucos momentos de privacidade ao longo do dia. Os seus súbitos partilhavam da mesma falta de privacidade. A cama, que é hoje o espaço mais íntimo da casa, foi durante grande parte da história da humanidade partilhada por casais, filhos e até hóspedes. A privacidade só começou a ser valorizada a partir do século XVIII e hoje, perante a revolução das novas tecnologias, é alvo de uma proteção sem precedentes.
Mas comecemos pelo início. No Império Romano, a privacidade não era um valor desejado. Os ricos gostavam de ostentar a fortuna e construíam casas com pátios abertos para a rua. Raramente estavam sozinhos, havia quase sempre um escravo que antecipava os
gestos dos amos. “Está excluída a hipótese de se vestirem ou calçarem elas próprias”, escreve o historiador francês Paul Veyne, no livro A Vida Privada no Império Romano.
Os criados dormiam no quarto. Do outro lado da porta, não muito longe, deitavam-se os escravos. “A omnipresença dos escravos equivalia a uma vigilância perpétua”, avalia o historiador Paul Veyne. Fora de casa também havia pouco espaço de solidão. Quando saíam, as senhoras deviam ser acompanhadas pelas criadas ou damas de companhia e um cavaleiro servente. Até os rapazes saíam acompanhados, porque, como as raparigas, em Roma também se receava pela virtude deles. Os romanos mais remediados viviam em apartamentos de sete andares, chamados de insulae, com paredes tão finas que era fácil ouvir o que se passava na casa ao lado. Nem o banho era uma atividade privada. Os famosos banhos públicos romanos ficaram na história como um espaço de prazer e convívio. Divididos por sexo, quase todas as cidades romanas tinham um e até os pobres podiam entrar. Era a única oportunidade de usufruírem de luxos como água e ambiente aquecido, bem como de esculturas e pinturas dignas de um palácio. A situação mudou um pouco na
Idade Média com a Igreja católica. “A moral eclesiástica teve uma enorme importância no que poderemos chamar a ‘construção do indivíduo’ e na génese do conceito de ‘privado”, diz à SÁBADO o professor Bernardo Vasconcelos e Sousa, investigador de História Medieval na Universidade Nova de Lisboa. “Desde a noção de pecado como falta consciente, individual e voluntária, até à difusão de práticas devocionais centradas no indivíduo, nos séculos finais da Idade Média, tudo foi concorrendo para acentuar a importância de cada pessoa em si e, com isso, a relevância da sua intimidade e privacidade.”
Camas em testamento
A vida privada devia ser mantida em segredo, mas confessada ao padre pelo menos uma vez por ano, segundo ditou o IV Concílio de Latrão, em 1215. No entanto, as condições de vida ditavam o nível de privacidade das famílias. Os camponeses viviam em habitações pequenas onde uma família inteira partilhava uma mesma divisão, designada por cozinha, onde se dormia, comia, trabalhava e, por vezes, por onde deambulavam animais de criação. “Palco único de vida familiar, privada e semipública, não havia nela qualquer margem para a privacidade, a não ser a que pudesse resultar da obscuridade da área de repouso”, lê-se na História da Vida Privada em Portugal, A Idade Média.
A cama era uma peça de mobiliário de luxo. Era tão valiosa que era deixada em testamento a mosteiros pelos nobres. “Os camponeses dormiam no chão, sobre estrados de madeira, sobre as arcas em que se guardava alguma roupa ou utensílios domésticos, ou em enxergas de palha”, descreve o investigador Bernardo Vasconcelos e Sousa.
A situação era idêntica nos hospitais medievais. Vários doentes partilhavam a mesma cama, até durante a epidemia da Peste Negra, a doença contagiosa que dizimou de um terço a metade da população em Portugal no século XIV e que terá matado 100 milhões de pessoas no mundo.
Já no paço medieval, como o do Palácio de Sintra, os Reis usufruíam de alguma privacidade na câmara de dormir. Assim que acordavam, entrava o camareiro-mor que ajudava o monarca a vestir-se. Foi nesta época que surgiram os mosteiros, onde os monges faziam reclusão para se concentrarem na relação com Deus e viverem isolados da vida pública, onde o risco de pecarem seria maior. No século XV, o Rei e os senhores de famílias abastadas procuram esta experiência nos oratórios, compartimentos autónomos construídos junto às câmaras de dormir, com um pequeno altar que servia para orar, mas também para ler e refletir. A Igreja dominava a vida diária e também o que se passava no leito conjugal. A castidade era o ideal e exigia-se aos casais uma contenção sexual, quebrada apenas para a procriação. “Havia um tempo para abraçar e um tempo para se abster de abraçar”, explica a historiadora Ana Rodrigues Oliveira, do Instituto de Estudos Medievais, da Universidade Nova de Lisboa. “O tempo para abraçar e amar era extremamente limitado por uma panóplia de proibições sexuais que levavam à abstinência sexual em múltiplas situações, desde as condições fisiológicas da mulher às proibições ligadas aos momentos e tempos sagrados.”
Os escritórios de homens
Os banhos públicos desapareceram no decurso da Idade Média, mas não foram substituídos por latrinas e banhos privados. Nas cidades construíram-se latrinas públicas, locais perigosos, onde se escondiam malfeitores. O banho foi considerado prejudicial à saúde e associado a doenças como a Peste Negra e a sífilis. Com o tempo foi substituído pela troca de roupa branca interior que, acreditava-se, absorvia a sujidade e as impurezas da pele.
O espaço privado não aumentou para as classes camponesas com o passar dos séculos. No século XVI, a cama continuava a ser coletiva e o mais precioso objeto que podia ter o enxoval de uma noiva. “Em algumas zonas da Europa o padre dirigia-se a
casa dos esposos para benzer o tálamo [leito] nupcial e propiciar fecundidade”, escreve a historiadora italiana Raffaela Sarti no livro Casa e Família, Habitar, Comer e Vestir na Europa Central.
As camas – as mais simples consistiam em colchões sobre tábuas apoiadas em cavaletes – são grandes e recebem pai, mãe e vários filhos. Era comum as famílias partilharem a única cama com hóspedes ou vizinhos. Até nas estalagens não se comprava privacidade. Os quartos albergavam mais que uma cama e nestas deitavam-se, muitas vezes, estranhos. A ausência de privacidade proporcionava situações perigosas, como aquela de que se gabou o vidraceiro francês Jacques-Louis Ménétra no seu diário Journal de Ma Vie. O artesão, que viveu no século XVIII, conta como numa estalagem se enfiou na cama de uma jovem companheira de quarto, quando a mãe desta deixou o quarto. “O dia começava a despontar, o objeto era adorável, a proveito.”
As camas não abundavam e não era de estranhar. No século XVIII, “uma cama completa com colcha, lençóis e cobertores custava tanto como uma vaca”, segundo Raffaela Sarti. Valia mais do que 40% dos bens e “para uma família de rendeiros podia levar entre três a seis anos a adquirir”.
Mas há quem tivesse dinheiro até para uma cama que servia apenas para exibir, as chamadas camas de ostentação. Em França, no século XVII a cama real era exibida à corte e era de lá que o soberano recebia os ministros e governava o reino.
Foi nos palácios renascentistas e nas casas senhoriais que surgiram os primeiros escritórios onde se guardavam livros, documentos e cartas. Eram exclusivos dos homens – foram “a primeira expressão de uma nova necessidade de privacidade e conforto pessoal destinado a desenvolver-se nos séculos seguintes”, lê-se no livro Casa e Família, Habitar, Comer e Vestir na Europa Central. Havia ainda várias salas, câmaras, ligadas entre si que serviam para mostrar a vastidão da casa, mas também para afastar os visitantes das câmaras mais privadas da família. Era assim também na casa real portuguesa desde o fim do século XV até ao século XVIII. Mas matérias que consideramos das mais íntimas hoje em dia – como a atividade sexual dos reis – eram pouco privadas na altura. É que o Rei e a Rainha dormiam em aposentos separados e quando se juntavam para a intimidade conjugal era do conhecimento dos oficiais que trabalhavam nas zonas reservadas do palácio. “Os encontros que manteve [D. Afonso VI] com D. Maria Francisca tendo em vista consumar o casamento foram constantemente escrutinados, ao ponto de o Rei se aborrecer com a situação”, lê-se no livro História
da Vida Privada em Portugal, A Idade Moderna.
A privacidade só começou a ser valorizada no século XIX e pela burguesia que vivia a intimidade familiar como um prazer da vida. Foi quando se criou o hábito da leitura individual do jornal e o serão, o período ao fim da noite em que se estava com a família em casa. Nestas casas surgiram os quartos para os criados e escadas de serviço exclusivas para estes e outras para os senhores. “Também havia a sala de jantar, para a família, e a sala de visitas, que procurava resguardar a intimidade da família dos criados e das visitas,” explica a historiadora Irene Vaquinhas, coordenadora do livro História da Vida Privada em Portugal, A Época Contemporânea.
Mas havia no interior do País uma tentativa de partilhar momentos privados com o povo. “O conde de Mafra conta que no Alentejo, no século XIX, havia criados cuja única função nas festas era limpar os vidros embaciado para que quem estivesse de fora pudesse ver o que se passava”, revela a historiadora. “Era a lógica do tempo.”
A revolução chegou por correio
O direito à privacidade transpareceu na Constituição Portuguesa de 1822, onde se salvaguardou “os direitos e deveres individuais dos portugueses”, incluindo os de “liberdade, segurança e propriedade”, e se garantiu o princípio da inviolabilidade da correspondência e do domicílio: “a casa de todos os portugueses é para ele um asilo”, onde “nenhum oficial público poderá entrar (…) sem ordem escrita da competente autoridade”. Mas entre o povo, a privacidade em casa só se concretizou no século XX. Nas aldeias, as casas mantiveram-se pequenas, com uma ou duas divisões. “No século XIX e XX havia muitas famílias em Portugal que dormiam na mesma cama. Não é uma realidade tão longínqua assim”, garante Irene Vaquinhas.
Não era só a cama que se partilhava nas casas mais pobres. “Em 1950, em Viseu havia muitas casas em que se comia do mesmo prato, retirava-se um terço para uma malga.” Em Lisboa e no Porto, os mais pobres viviam em pátios e ilhas onde uma divisão de 16 m2 servia de casa para seis pessoas. “A vida fazia-se na rua, entre vizinhos.” Era lá que se cozinhava e se comia, se lavava a roupa e onde se discutia. Nos anos 60 e 70, as famílias remediadas viviam em quartos alugados ou em partes de casa, devido à falta de casas para arrendar. Quem sabia escrever, enviava cartas, mas estas eram lidas em voz alta por quem, na aldeia, sabia ler. “Eu nasci em 1961 e ainda li cartas numa aldeia da Beira Baixa”, conta a historiadora e jornalista Helena Matos. “Era uma comunicação muito codificada, perguntava-se pela família, pela saúde, pelo milho, se as crianças tinham passado de ano.” O telefone também ajudou a tornar mais íntimas as conversas. No entanto, em 1933 existiam apenas 33.124 telefones no País. “As famílias que tinham telefone partilhavam o aparelho e os vizinhos recebiam lá chamadas.” Outras inovações tecnológicas – a rádio e a televisão – levaram os portugueses para dentro de casa. Mas nas aldeias e nos bairros populares, os aparelhos eram partilhados. “Nos anos 70, só uma pessoa é que tinha televisão e colocava-a à janela para que os vizinhos pudessem ver”, diz Irene Vaquinhas.
A privacidade acentuou-se na segunda metade do século XX. “Passámos dos espetáculos públicos para o gira-discos, a telefonia, o transístor e os headphones. A individualização foi muito rápida”, conta a historiadora. Hoje em dia, os condomínios privados são os mais desejados pelas famílias e os apartamentos oferecem suítes e casas de banho sociais, para as visitas. As crianças, sobretudo os adolescentes, têm quartos privados. “É uma necessidade muito recente. Nos anos 70 muitos jovens dormiam na sala em sofás-cama e em móveis com camas incorporadas”, explica Helena Matos. Mas ao mesmo tempo, a privacidade conquistada é cada vez mais exposta nas redes sociais. Publicam-se fotos do que se come, do que se veste, onde se está e que ficam acessíveis ao mundo inteiro. “A privacidade está a modificar-se. É difícil dizer o que é privado neste momento”, conclui Irene Vaquinhas.