JOÃO PEDRO GEORGE
PASSEAR NO RENOVADO Jardim do Campo Grande é uma experiência fantástica, em que o lendário se sobrepõe à realidade. Não me refiro aos barcos a remos, ao restaurante McDonald’s ou ao parque canino, mas sim à inscrição “Jardim Mário Soares – Fundador da Democracia Portuguesa”, espalhada nas placas toponímicas, na estátua e no púlpito de homenagem no centro de um pequeno anfiteatro circular.
Para o gabinete da vereadora Catarina Vaz Pinto, que apresentou a proposta (nº 196/2018); para os membros da Comissão Municipal de Toponímia, que deram parecer favorável àquela legenda; e para a Junta de Freguesia de Alvalade, que manifestou a sua “total concordância”, a democracia portuguesa é filha do sopro criador de Mário Soares. Um homem que, segundo o texto da referida proposta, além de combatente da liberdade, resistente antifascista e democrata militante, era “dotado de uma invulgar intuição política e de uma enorme capacidade de comunicação”, era “amigo pessoal de grandes líderes europeus e mundiais”, possuía “uma memória prodigiosa”, era um “leitor voraz”, “amava a vida, odiava a violência e acreditava sinceramente no progresso da humanidade”.
Não me interpretem mal. Parece-me justo que um indivíduo com tantas e tais qualidades, que está no coração do imaginário político contemporâneo, dê o nome a um jardim (cá por mim, o uso do toponímico Mário Soares poderia estender-se a encostas, miradouros, calçadas, travessas, quem sabe até a um beco ou a umas escadinhas). O que não entendo é a lógica subjacente, ou seja, o princípio de que a democracia tem um fundador em particular. Porque designar Mário Soares como “Fundador” da democracia, mais do que um procedimento de canonização cívica, parece uma operação de controlo sobre a memória de um período que teve múltiplos rostos e dependeu de múltiplos factores, todos eles determinantes para o êxito do actual regime.
Os nomes dos arruamentos não servem apenas para ordenar as cidades ou para orientar as pessoas no emaranhado de caminhos urbanos. Os topónimos estão carregados de sentidos políticos e servem para legitimar, comemorar e naturalizar os projectos ideológicos associados aos poderes dominantes. De certo modo, a toponímia é uma forma de apropriação dos lugares, pelas elites políticas, militares, religiosas e intelectuais, através da inscrição, na geografia ou no espaço público, das narrativas aprovadas oficialmente. Ora, se a escolha dos nomes das ruas, avenidas, parques ou largos não é uma actividade anódina, nada tem de fortuito, que dizer, então, da legenda escolhida para os acompanhar? A concepção fantasiosa de Mário Soares como “Fundador da Democracia”, como se ele tivesse sido o único responsável pelo derrube da ditadura e pela transição e consolidação da democracia, obscurece o papel dos capitães de Abril, como Salgueiro Maia (que quase só tem direito, em Lisboa, a uma modesta rua em Marvila) e Otelo Saraiva de Carvalho (no dia 25 de Abril de 1974, se o movimento revolucionário não triunfasse, Mário Soares continuaria em Paris – e os militares seriam provavelmente mortos, torturados ou condenados a severas penas de prisão); obscurece o papel dos deputados que, na Assembleia Constituinte, redigiram e aprovaram uma nova
Constituição política; obscurece o papel do Grupo dos Nove (Melo Antunes, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Canto e Castro, Costa Neves, Franco Charais, Sousa e Castro, Vítor Alves e Vítor Crespo); obscurece o papel de Ramalho Eanes e Jaime Neves no 25 de Novembro; obscurece a pressão exercida pelos diferentes movimentos sociais, etc. A glorificação de Mário Soares como máxima expressão da democracia, ou como herói voluntarioso que venceu sozinho, graças à sua lucidez, persistência e tenacidade pessoais, todos os obstáculos e adversidades, corresponde à mitologia do indivíduo autónomo e independente lutando contra tudo e contra todos. Com efeito, as sociedades ocidentais, quando contam a sua História, tendem a dar-lhe a forma de um grande combate entre sujeitos invulgares ou de excepção (profetas, santos, conquistadores, grandes militares, exploradores, génios, campeões) e forças ou poderes que procuram reprimir a liberdade de acção dos indivíduos. No caso da formação da nossa modernidade democrática, encontramos a luta contra o perigo da instauração de uma ditadura soviética em Portugal (praticamente impossível, tratando-se de um país da Europa ocidental, no contexto internacional da altura, e com o apoio dos norte-americanos), de que Soares é a suma e o símbolo. Na verdade, a expressão “Fundador da Democracia” – que releva mais da imposição de uma verdade auto-evidente que daquilo que a historiografia propriamente dita regista –, é um espelho em relação ao qual todo o aparelho do Partido Socialista se define. Ao associar aquela inscrição ao nome de Mário Soares, multiplicando-a nas placas toponímicas do antigo Jardim do Campo Grande, o maior do centro de Lisboa (onde de resto também existe uma estátua de pedra de Dom Afonso Henriques, o “fundador da nacionalidade”), o PS coloca-se numa posição de superioridade moral, política e social relativamente a todos os outros partidos e movimentos sociais que suscitaram ou favoreceram a emergência da democracia.
Ao mesmo tempo, contribui para a promoção ou culto do indivíduo como herói da cultura, minimiza o trabalho e os esforços colectivos, e cristaliza a ideia da História como a biografia de egos eminentes. O que representa, é o mínimo que se pode dizer, uma traição a todos os valores e doutrinas de esquerda.
P.S. Na semana passada, na sequência da morte de Freitas do Amaral, o mito do “Fundador da Democracia” conheceu uma actualização: “Freitas do Amaral foi um dos pais fundadores da democracia portuguesa”, um “contributo único, apenas partilhado em importância fundacional com Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Álvaro Cunhal” (Marcelo Rebelo de Sousa); Freitas do Amaral foi “um dos pais da democracia representativa em Portugal” (Paulo Portas, de cujo rol, desconfio, exclui Cunhal); e Freitas do Amaral “é um dos pais fundadores da democracia portuguesa” (Augusto Santos Silva). Afinal, a democracia não teve um, mas três ou quatro fundadores. Todos eles machos. E figuras paternas. ◯