SÁBADO

Pedro Marta Santos

- Jornalista Pedro Marta Santos Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

A FAMA É A MAIS PENOSA das caminhadas contra a morte. Em The Drama of Celebrity, lançado em Junho pela Princeton University Press, Sharon Marcus reporta a origem da era moderna das celebridad­es à actriz Sarah Bernhardt (1844-1923), que dormia num caixão quando era pequena e utilizava com sagacidade os meios tecnológic­os da época em benefício da construção do seu mito.

Claro que sempre existiram figuras famosas. Certamente na Assíria, no Antigo Egipto, na Grécia clássica. Após as rainhas de beleza lendária, os soldados de coragem sobre-humana, as heroínas amaldiçoad­as e depois santificad­as (como Joana D’Arc), as bailarinas (Anna Pavlova), os cantores e as musas do show biz (Elvis, James Dean, Marilyn, Madonna), chegámos à era Kardashian. Kim tornou-se célebre graças a um vídeo caseiro onde fazia sexo com o namorado. Rentabiliz­ou-o depressa. Kylie fingiu magoar-se na boca (fez um enchimento labial) e tornou-se a mais jovem bilionária da História. Para ser famoso, pode ou não ter-se algum talento. Para prosperar na fama, é preferível não ter talento nenhum. A fama é, antes de mais, um fenómeno de transferên­cia: o público adora ver uma celebridad­e romper com as regras que ele gostaria de quebrar. Claro que é preciso ter pele de crocodilo para aguentar as investidas.

Bernhardt, mesmo quando foi obrigada a amputar uma perna por causa de um acidente em palco, continuou a actuar à sua maneira (agora sentada). Maradona poderia jogar com o traseiro enfiado numa cadeirinha que o génio manter-se-ia. A cena mais impression­ante de Diego Maradona, o documentár­io de Asif Kapadia (Amy, Senna) agora disponível na HBO, surge quando Diego Armando, o favelado de Villa Fiorito que aos 15 anos sustentava a família toda, chega a San Paolo, o estádio do Nápoles FC, para dar três toques numa bola perante 80 mil espectador­es. É um momento aterrador, porque não há nada que o distinga do instante em que um gladiador consagrado entrava no Coliseu de Roma, 200 quilómetro­s a norte, 2 mil anos antes, sem saber se dali sairia devorado. Maradona teve o destino dos antigos gladiadore­s: entrou coberto de glória, terminou despedaçad­o pelos leões (o seu felino particular era um chacal, Carmine Giuliano, chefe da Camorra e amigo da onça). Se a fama é do domínio do sagrado, o futebol mistura o sagrado com o profano – El Pibe foi o deus da sua própria religião, a igreja maradonian­a. Enquanto as Kardashian são improvávei­s heroínas da sua narrativa pública, Maradona foi vítima da narrativa que outros lhe escreveram. No fim, a celebridad­e não pode voltar a casa. ◯

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