SÁBADO

Ângela Marques

ELA PERGUNTOU-ME: “VAI VOTAR?” SORRINDO, DISSE-LHE QUE SIM. “ENTÃO VOTE BEM!”, RIU-SE ELA

- ÂNGELA MARQUES

Era o dia seguinte às eleições e nada tinha mudado naquela copa onde nos reuníamos para comparar marmitas. Ao almoço, uma boa dose da diversão dos mais velhos resultava de um exercício de especulaçã­o: quantos anos teriam ainda os mais novos para comer panados com batatas fritas sem lhes ser oferecido um voucher para uma tatuagem de veias entupidas no centro de saúde mais próximo? Para desviar a conversa e o mau-olhado, um deles atirou as eleições para cima da mesa.

Com a ligeireza da salada que tinha à frente, perguntei-lhe em que partido tinha votado. Respondend­o que o voto é secreto, ele corou mais que o frango que a mãe lhe tinha mandado. “Não digo. O voto é secreto por alguma razão.” Rimo-nos todos menos ele. Enquanto lhe tentávamos explicar que a Comissão Nacional de Eleições não estava escondida no frigorífic­o da empresa à espera que ele se descaísse, eu e um dos mais velhos percebemos: toda a gente ria mas ninguém se descosia.

Então começámos: de cada vez que alguém se juntava à mesa, voltávamos à carga. No fim do almoço, e até por estarmos em lados diferentes da barricada política, deixei que o meu amigo identifica­sse o padrão: à direita, que na estrada até tem prioridade, ali impusera-se um travão. Rimo-nos os dois, um mais do que o outro. Estávamos em 2015. Ontem, pela manhã, cruzei-me com uma vizinha no elevador. Com a ligeireza dos 80 anos mais gaiteiros do prédio, perguntou-me: “Vai votar?” Sorrindo, disse-lhe que sim. “Então vote bem!”, riu-se ela. Por dois segundos, tive vontade de lhe perguntar se vinha ali uma sugestão, mas também tive medo e despedi-me com um “claro, não se preocupe”. À noite, lembrei-me de um e outro episódios. Pensei que de facto levamos muito à letra esta história de o voto ser secreto. “Vota bem” é o mais longe que vamos – e, vejamos, isso não nos leva a lado algum. Gostamos de achar que um voto é só um voto e que, por isso, um deputado pode ser só um deputado. Só que para o bem e para o mal, não é. Assim, não estará na hora de nos deixarmos de segredinho­s? Talvez evitássemo­s algumas surpresas. ◯

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