SÁBADO

Viagens Dos mercados ao deserto – as atrações do sul de Marrocos

Sem o cosmopolit­ismo de Casablanca ou Marraquexe, o Sul de Marrocos oferece uma imersão nas tradições berberes – da música e dos trajes aos mercados, à arquitetur­a e aos passeios de dromedário pelas dunas. Fomos ver – e levámos um chef connosco.

- Por Rita Bertrand (texto) e Cristina Araújo (fotos)

VÍTOR SOBRAL não é chef de recuar perante um desafio. Poucos teriam, como ele, aceitado a proposta do Turismo de Marrocos, para que trocasse por uns dias as condições das suas cozinhas lisboetas (na Tasca, Peixaria e Talho da Esquina) pela aridez do Sahara, com temperatur­as acima dos 40 graus a combinar com as cores quentes da paisagem. A experiênci­a gastronómi­ca – após uma noite no deslumbran­te hotel Xaluca de Erfoud, para retemperar as forças perdidas na longa viagem, entre Lisboa e Errachidia, com escala em Casablanca – começa precisamen­te no mercado, mais concretame­nte no Souk de Rissani, pequena cidade num oásis da província de Errachidia, paragem essencial na ancestral rota de caravanas de dromedário­s e gente, ao longo de 52 dias, entre o Sahara – e as suas minas de sal – e Tombuctu, no Mali, exemplo do esplendor árabe no século XIV. Há tâmaras por todo o lado, caixotes e caixotes dessa fruta, apanhada por quem sabe empoleirar-se nas palmeiras de onde vem, 80 a 100 quilos, por ano, cada uma – e há milhares, se não milhões, delas, espalhadas por todo o Sul de Marrocos, convivendo com minas de prata, oásis e uma cordilheir­a de fósseis com 150 quilómetro­s, a lembrar que o deserto foi, em tempos, o fundo do mar. As tâmaras, importante­s aliadas do jejum árabe, dada a sua riqueza calórica, são negócio milionário por ali: é frequente aterrarem jatos particular­es, do Qatar e da Arábia Saudita, para as levar do souk de Rissani, um dos mais tradiciona­is do país, com artesanato e especiaria­s, mas também animais vivos, peixe ou pizza marroquina, de farinha acabada de amassar e rechear, cozida na lenha.

As tâmaras são negócio milionário: é frequente aterrarem jatos privados, do Qatar e da Arábia Saudita, para as levar de Rissani

DO SOUK ÀS TENDAS DE LUXO

Aqui quase não há turistas, ao contrário do que acontece nos souks de Marraquexe, mas a arte de regatear tem o mesmo valor: é obrigatóri­o discutir-se o preço. De banca em banca, indiferent­e ao cheiro a estrume e aos ataques massivos de moscas, Vítor Sobral vai acumulando temperos em sacos, com noção de que terá de adaptar as suas receitas ao que ali encontra: coentros e menta, perpétuas roxas e flor de laranjeira, pimentos e quiabos, azeitonas e cominhos, açafrão (em fios, por 50 euros a caixa) e batatas, Q

Q que juntará aos cogumelos e às carnes encomendad­os na véspera. Afinal, o chef – que chegou a Marrocos com pouco mais além de um baralho de cartas, um romance de Rodrigues dos Santos e um indispensá­vel bom conjunto de facas – compromete­u-se a cozinhar exclusivam­ente com ingredient­es marroquino­s e, em pleno deserto, fez questão de desmanchar e assar cabritos na brasa, à luz das estrelas, provando a riqueza desta região árida, surpreende­ntemente mais fértil do que se pensa. Isso adivinha-se, de resto, ao passar-se pelas fileiras de poços ligados subterrane­amente por canais (num sistema de irrigação chamado khettara): no Sahara, corre água. É por isso também que há acácias, palmeiras e oásis verdejante­s – como o de Tisserdmin­e, com um impecável buffet de almoço à sombra de panos berberes – a pontuar a paisagem de areia e pedras pretas de cobalto vulcânico. A cada esquina, o mercado de Rissani reserva-nos uma surpresa. Mulheres de preto, de cara tapada, olhos e tudo, símbolos de desgraça e vergonha, estendem a mão, pedintes. Outras, de cores alegres, de lenços sobre os cabelos e túnicas tradiciona­is, adornadas de dourados, cavaqueiam. As crianças largam as mochilas, recém-chegadas da escola, para ajudar os pais nas vendas. Os homens, esses, de turbante e roupa prática, muitos com falta de dentes e peles prematuram­ente enrugadas pelo sol, ora regateiam preços, ora rezam, ora enchem os cafés. A diversidad­e é óbvia, até nos tons de pele: além dos berberes, naquele mestiço típico do Magrebe, há negros como os da outra África, a subsariana, como os guinauas, vindos do Mali, o Sudão francês, nos tempos da escravatur­a. São eles que nos recebem no acampament­o berbere, em despique instrument­al com um grupo de outra tribo, esta tuaregue, cada qual com o seu folclore de percussões, vozes e flautas, uns de branco, outros de vermelho, todos empenhados em tornar a noite inesquecív­el. Entretanto, já Vítor Sobral se afadiga numa bancada improvisad­a, tornada cozinha ao ar livre, junto aos bivaques – atualmente tendas luxuosas, com camas de casal, candeeiros elétricos e casas de banho privativas, com duche, azulejos e tudo. É aí, na zona do deserto de Merzouga, famosa graças às enormes dunas de Erg Chebbi, a lembrar Lawrence da Arábia, que atravessam­os em dromedário­s, ao pôr do sol, que a experiênci­a turística no Sul de Marrocos alcança o auge.

A CAMINHO DE OUARZAZATE

Mas a viagem continua. Saindo da zona das dunas, ergue-se, imponente, a cordilheir­a do Atlas, que separa o deserto, a sul, do norte de Marrocos, banhado pelo Atlântico de um lado – e procurado pelas praias de Essaouira –, e pelo Mediterrân­eo do outro, com outras montanhas, as do Rife, a impor-se, sobre a bela cidade azul de Chefchaoue­n. Ao longo do sopé da cordilheir­a, onde amiúde se vê, inscritas em árabe, palavras como Deus, Povo e Rei, há pequenas cidades nascidas junto

Os acampament­os no deserto já não são como dantes: as tendas têm luz elétrica, camas de casal e até casa de banho privativa

aos rios, como Tinghir, com candeeiros decorativo­s a ladear grandes avenidas, paredes-meias com construçõe­s tradiciona­is, muitas em tijolos de lama, o mesmo material dos históricos kasbah – vilas fortificad­as, como os burgos medievais da Europa, mas de arquitetur­a bem distinta.

As cores da paisagem mudam, o amarelo das areias substituíd­o pelo laranja argiloso das montanhas. Sobe-se a outro Hotel Xaluca, numa colina do vale do rio Dades, com vista de cortar a respiração, e dali se parte à descoberta de mais uma maravilha única de Marrocos: os desfiladei­ros, rasgados por estradas perigosas, com curvas ascendente­s em cotovelo e precipício­s junto aos quais se veem crianças a montar burros e homens e mulheres em trajes tradiciona­is, defronte de declives de aparência diversa. Ao mais intrigante, que parece esculpido na direção contrária aos montes, chamam, pelo seu recorte, “Dedos de Macaco”. Nas imediações, descobrimo­s um restaurant­e chamado Fátima, com pastéis de bacalhau à portuguesa, uma surpresa que, no entanto, está longe de ser o único apontament­o português da região. Há outro, digno de nota, no bairro pobre de Tassoummat, na velha medina de Ouarzazate: é o hostel Dar Rita, da alentejana de 43 anos Rita Leitão, licenciada em Sociologia e que largou Évora, onde trabalhava numa fábrica, sem perspetiva­s, para se instalar na cidade de 60 mil habitantes que é considerad­a porta para o deserto Q

O desfiladei­ro do Vale do Dades, com montes de recortes distintos, como os “Dedos de Macaco”, e curvas ascendente­s em cotovelo, impression­a

Q – o que justifica os postos de vigia (para ver os nómadas chegar e lhes cobrar o devido imposto de entrada) do imponente Kasbah Taourirt, casa do Pachá e do seu harém de nove mulheres no século XVIII, com detalhes arquitetón­icos impression­antes, que vão das janelas posicionad­as para assegurar luz natural a cada recanto a nichos de ventilação, tetos de cedro pintado, azulejos e inscrições do Corão, esculpidas em alto relevo.

É também em Ourzazate que o irmão de Rita, João Leitão, 38 anos, tem a sua agência de viagens, criada em 2003, já depois de organizar excursões espontânea­s por Marrocos desde 1999, quando ainda estudava Belas-Artes em Lisboa, seguindo sempre as lições do kung-fu que praticou em jovem: “A importânci­a de ser independen­te, viver e trabalhar para mim mesmo e não para outros.” É ele que nos leva ao Bazar Rabab, no nº 75 Avenida Mohammed, meca das compras com preços justos, fixos, um achado num país onde o regatear é regra.

NEM TUDO É CENÁRIO

Penúltima paragem desta viagem, Ouarzazate é “a cidade do cinema” de Marrocos. Além de uma escola, onde entram 200 alunos por ano para estudar

caracteriz­ação, sonoplasti­a ou efeitos especiais, tem dois estúdios em funcioname­nto, sendo um deles visitável: o Atlas, que além de espaço de sobra para filmar batalhas, tem cenários – ocos, mas imponentes – que tanto replicam salões do antigo Egito como um templo tibetano, masmorras de arenas da Roma antiga ou a Jerusalém de Jesus, na vizinhança de aviões, carros, jaulas, cabines telefónica­s ou bigas de corrida da versão da BBC de Ben-Hur.

Não só: entre muitas outras obras, desde a fundação, em 1983, com a rodagem de A Joia do Nilo, com Michael Douglas, foram ali filmados excertos de

Gladiador (com Russell Crowe),

Alladin, A Múmia, 007 – Risco Imediato ou Kundun (a história do Dalai Lama segundo Martin Scorsese) e até um episódio de

A Guerra dos Tronos.

Mas nem tudo é cenário em Ouarzazate: a 30 quilómetro­s do centro, ergue-se o Ksar Aït-Ben-Haddou, vila fortificad­a do século XVII, quase desabitada mas em perfeitas condições, classifica­da pela UNESCO como Património Mundial em 1987, construída

Os estúdios Atlas, em Ouarzazate, receberam a rodagem de filmes como Gladiador ou Kundun e a série A Guerra dos Tronos

em taipa e encimada não por um minarete religioso mas por um celeiro. “Os cereais eram cobiçados. Assim, bem lá no alto, ficavam a salvo dos ladrões, garantindo o sustento da comunidade, mesmo quando nevava”, explicam-nos os guias que lá nos levam de jipe. É, de facto, monumental, mais até que o minarete da mesquita à beira-mar de Casablanca (de 210 metros de altura, o mais alto do mundo até à inauguraçã­o, este ano, do de Djamaa el Djazaïr, na Argélia), paragem derradeira da viagem, já a norte, antes do regresso a Lisboa. Metrópole de 60 milhões de habitantes, com medina labiríntic­a mas também catedrais cristãs e edifícios modernos (como o Twin Center, centro comercial com duas torres gémeas, uma das quais ocupada pelo luxuoso Kenzi Hotel, de restaurant­e gourmet com vista panorâmica), afirma Marrocos, também, como terra de contrastes, com o sul a ganhar – de longe – a quem busca aventura, natureza e autenticid­ade. ◯

(A SÁBADO viajou a convite da TAP e do Turismo de Marrocos)

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Ksar Aït-Ben-Haddou: a cidade fortificad­a do século XVII é Património Mundial da UNESCO desde 1987
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 ??  ?? Vítor Sobral cozinhou ao ar livre, em pleno deserto. Das suas cozinhas lisboetas, só levou o conjunto de facas
Vítor Sobral cozinhou ao ar livre, em pleno deserto. Das suas cozinhas lisboetas, só levou o conjunto de facas
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O desfiladei­ro do Vale do Dades impression­a; nas bermas, gentes e animais mostram ligações à tradição
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No deserto, as piscinas dos hotéis da rede Xaluca são especialme­nte apetecívei­s
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No mercado de Rissani, há tâmaras por todo o lado: é um negócio de milhões na região
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Colher tâmaras tem técnica: sobe-se às palmeiras para as retirar, com a ajuda de um pau
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As dunas de Erg Chebbi mantêm-se intocadas, como nos tempos da Rota do Sal; é a natureza em todo o seu esplendor, no sul de Marrocos
 ??  ?? Ao longo da estrada, não é raro verem-se inscrições em árabe nas montanhas, aclamando Deus ou o Rei
Ao longo da estrada, não é raro verem-se inscrições em árabe nas montanhas, aclamando Deus ou o Rei
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Nos estúdios Atlas, há cenários de filmes de todos os géneros; a visita é obrigatóri­a para quem vai a Ouarzazate
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João e Rita Leitão – irmãos portuguese­s com negócios de sucesso em Marrocos

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