Viagens Dos mercados ao deserto – as atrações do sul de Marrocos
Sem o cosmopolitismo de Casablanca ou Marraquexe, o Sul de Marrocos oferece uma imersão nas tradições berberes – da música e dos trajes aos mercados, à arquitetura e aos passeios de dromedário pelas dunas. Fomos ver – e levámos um chef connosco.
VÍTOR SOBRAL não é chef de recuar perante um desafio. Poucos teriam, como ele, aceitado a proposta do Turismo de Marrocos, para que trocasse por uns dias as condições das suas cozinhas lisboetas (na Tasca, Peixaria e Talho da Esquina) pela aridez do Sahara, com temperaturas acima dos 40 graus a combinar com as cores quentes da paisagem. A experiência gastronómica – após uma noite no deslumbrante hotel Xaluca de Erfoud, para retemperar as forças perdidas na longa viagem, entre Lisboa e Errachidia, com escala em Casablanca – começa precisamente no mercado, mais concretamente no Souk de Rissani, pequena cidade num oásis da província de Errachidia, paragem essencial na ancestral rota de caravanas de dromedários e gente, ao longo de 52 dias, entre o Sahara – e as suas minas de sal – e Tombuctu, no Mali, exemplo do esplendor árabe no século XIV. Há tâmaras por todo o lado, caixotes e caixotes dessa fruta, apanhada por quem sabe empoleirar-se nas palmeiras de onde vem, 80 a 100 quilos, por ano, cada uma – e há milhares, se não milhões, delas, espalhadas por todo o Sul de Marrocos, convivendo com minas de prata, oásis e uma cordilheira de fósseis com 150 quilómetros, a lembrar que o deserto foi, em tempos, o fundo do mar. As tâmaras, importantes aliadas do jejum árabe, dada a sua riqueza calórica, são negócio milionário por ali: é frequente aterrarem jatos particulares, do Qatar e da Arábia Saudita, para as levar do souk de Rissani, um dos mais tradicionais do país, com artesanato e especiarias, mas também animais vivos, peixe ou pizza marroquina, de farinha acabada de amassar e rechear, cozida na lenha.
As tâmaras são negócio milionário: é frequente aterrarem jatos privados, do Qatar e da Arábia Saudita, para as levar de Rissani
DO SOUK ÀS TENDAS DE LUXO
Aqui quase não há turistas, ao contrário do que acontece nos souks de Marraquexe, mas a arte de regatear tem o mesmo valor: é obrigatório discutir-se o preço. De banca em banca, indiferente ao cheiro a estrume e aos ataques massivos de moscas, Vítor Sobral vai acumulando temperos em sacos, com noção de que terá de adaptar as suas receitas ao que ali encontra: coentros e menta, perpétuas roxas e flor de laranjeira, pimentos e quiabos, azeitonas e cominhos, açafrão (em fios, por 50 euros a caixa) e batatas, Q
Q que juntará aos cogumelos e às carnes encomendados na véspera. Afinal, o chef – que chegou a Marrocos com pouco mais além de um baralho de cartas, um romance de Rodrigues dos Santos e um indispensável bom conjunto de facas – comprometeu-se a cozinhar exclusivamente com ingredientes marroquinos e, em pleno deserto, fez questão de desmanchar e assar cabritos na brasa, à luz das estrelas, provando a riqueza desta região árida, surpreendentemente mais fértil do que se pensa. Isso adivinha-se, de resto, ao passar-se pelas fileiras de poços ligados subterraneamente por canais (num sistema de irrigação chamado khettara): no Sahara, corre água. É por isso também que há acácias, palmeiras e oásis verdejantes – como o de Tisserdmine, com um impecável buffet de almoço à sombra de panos berberes – a pontuar a paisagem de areia e pedras pretas de cobalto vulcânico. A cada esquina, o mercado de Rissani reserva-nos uma surpresa. Mulheres de preto, de cara tapada, olhos e tudo, símbolos de desgraça e vergonha, estendem a mão, pedintes. Outras, de cores alegres, de lenços sobre os cabelos e túnicas tradicionais, adornadas de dourados, cavaqueiam. As crianças largam as mochilas, recém-chegadas da escola, para ajudar os pais nas vendas. Os homens, esses, de turbante e roupa prática, muitos com falta de dentes e peles prematuramente enrugadas pelo sol, ora regateiam preços, ora rezam, ora enchem os cafés. A diversidade é óbvia, até nos tons de pele: além dos berberes, naquele mestiço típico do Magrebe, há negros como os da outra África, a subsariana, como os guinauas, vindos do Mali, o Sudão francês, nos tempos da escravatura. São eles que nos recebem no acampamento berbere, em despique instrumental com um grupo de outra tribo, esta tuaregue, cada qual com o seu folclore de percussões, vozes e flautas, uns de branco, outros de vermelho, todos empenhados em tornar a noite inesquecível. Entretanto, já Vítor Sobral se afadiga numa bancada improvisada, tornada cozinha ao ar livre, junto aos bivaques – atualmente tendas luxuosas, com camas de casal, candeeiros elétricos e casas de banho privativas, com duche, azulejos e tudo. É aí, na zona do deserto de Merzouga, famosa graças às enormes dunas de Erg Chebbi, a lembrar Lawrence da Arábia, que atravessamos em dromedários, ao pôr do sol, que a experiência turística no Sul de Marrocos alcança o auge.
A CAMINHO DE OUARZAZATE
Mas a viagem continua. Saindo da zona das dunas, ergue-se, imponente, a cordilheira do Atlas, que separa o deserto, a sul, do norte de Marrocos, banhado pelo Atlântico de um lado – e procurado pelas praias de Essaouira –, e pelo Mediterrâneo do outro, com outras montanhas, as do Rife, a impor-se, sobre a bela cidade azul de Chefchaouen. Ao longo do sopé da cordilheira, onde amiúde se vê, inscritas em árabe, palavras como Deus, Povo e Rei, há pequenas cidades nascidas junto
Os acampamentos no deserto já não são como dantes: as tendas têm luz elétrica, camas de casal e até casa de banho privativa
aos rios, como Tinghir, com candeeiros decorativos a ladear grandes avenidas, paredes-meias com construções tradicionais, muitas em tijolos de lama, o mesmo material dos históricos kasbah – vilas fortificadas, como os burgos medievais da Europa, mas de arquitetura bem distinta.
As cores da paisagem mudam, o amarelo das areias substituído pelo laranja argiloso das montanhas. Sobe-se a outro Hotel Xaluca, numa colina do vale do rio Dades, com vista de cortar a respiração, e dali se parte à descoberta de mais uma maravilha única de Marrocos: os desfiladeiros, rasgados por estradas perigosas, com curvas ascendentes em cotovelo e precipícios junto aos quais se veem crianças a montar burros e homens e mulheres em trajes tradicionais, defronte de declives de aparência diversa. Ao mais intrigante, que parece esculpido na direção contrária aos montes, chamam, pelo seu recorte, “Dedos de Macaco”. Nas imediações, descobrimos um restaurante chamado Fátima, com pastéis de bacalhau à portuguesa, uma surpresa que, no entanto, está longe de ser o único apontamento português da região. Há outro, digno de nota, no bairro pobre de Tassoummat, na velha medina de Ouarzazate: é o hostel Dar Rita, da alentejana de 43 anos Rita Leitão, licenciada em Sociologia e que largou Évora, onde trabalhava numa fábrica, sem perspetivas, para se instalar na cidade de 60 mil habitantes que é considerada porta para o deserto Q
O desfiladeiro do Vale do Dades, com montes de recortes distintos, como os “Dedos de Macaco”, e curvas ascendentes em cotovelo, impressiona
Q – o que justifica os postos de vigia (para ver os nómadas chegar e lhes cobrar o devido imposto de entrada) do imponente Kasbah Taourirt, casa do Pachá e do seu harém de nove mulheres no século XVIII, com detalhes arquitetónicos impressionantes, que vão das janelas posicionadas para assegurar luz natural a cada recanto a nichos de ventilação, tetos de cedro pintado, azulejos e inscrições do Corão, esculpidas em alto relevo.
É também em Ourzazate que o irmão de Rita, João Leitão, 38 anos, tem a sua agência de viagens, criada em 2003, já depois de organizar excursões espontâneas por Marrocos desde 1999, quando ainda estudava Belas-Artes em Lisboa, seguindo sempre as lições do kung-fu que praticou em jovem: “A importância de ser independente, viver e trabalhar para mim mesmo e não para outros.” É ele que nos leva ao Bazar Rabab, no nº 75 Avenida Mohammed, meca das compras com preços justos, fixos, um achado num país onde o regatear é regra.
NEM TUDO É CENÁRIO
Penúltima paragem desta viagem, Ouarzazate é “a cidade do cinema” de Marrocos. Além de uma escola, onde entram 200 alunos por ano para estudar
caracterização, sonoplastia ou efeitos especiais, tem dois estúdios em funcionamento, sendo um deles visitável: o Atlas, que além de espaço de sobra para filmar batalhas, tem cenários – ocos, mas imponentes – que tanto replicam salões do antigo Egito como um templo tibetano, masmorras de arenas da Roma antiga ou a Jerusalém de Jesus, na vizinhança de aviões, carros, jaulas, cabines telefónicas ou bigas de corrida da versão da BBC de Ben-Hur.
Não só: entre muitas outras obras, desde a fundação, em 1983, com a rodagem de A Joia do Nilo, com Michael Douglas, foram ali filmados excertos de
Gladiador (com Russell Crowe),
Alladin, A Múmia, 007 – Risco Imediato ou Kundun (a história do Dalai Lama segundo Martin Scorsese) e até um episódio de
A Guerra dos Tronos.
Mas nem tudo é cenário em Ouarzazate: a 30 quilómetros do centro, ergue-se o Ksar Aït-Ben-Haddou, vila fortificada do século XVII, quase desabitada mas em perfeitas condições, classificada pela UNESCO como Património Mundial em 1987, construída
Os estúdios Atlas, em Ouarzazate, receberam a rodagem de filmes como Gladiador ou Kundun e a série A Guerra dos Tronos
em taipa e encimada não por um minarete religioso mas por um celeiro. “Os cereais eram cobiçados. Assim, bem lá no alto, ficavam a salvo dos ladrões, garantindo o sustento da comunidade, mesmo quando nevava”, explicam-nos os guias que lá nos levam de jipe. É, de facto, monumental, mais até que o minarete da mesquita à beira-mar de Casablanca (de 210 metros de altura, o mais alto do mundo até à inauguração, este ano, do de Djamaa el Djazaïr, na Argélia), paragem derradeira da viagem, já a norte, antes do regresso a Lisboa. Metrópole de 60 milhões de habitantes, com medina labiríntica mas também catedrais cristãs e edifícios modernos (como o Twin Center, centro comercial com duas torres gémeas, uma das quais ocupada pelo luxuoso Kenzi Hotel, de restaurante gourmet com vista panorâmica), afirma Marrocos, também, como terra de contrastes, com o sul a ganhar – de longe – a quem busca aventura, natureza e autenticidade. ◯
(A SÁBADO viajou a convite da TAP e do Turismo de Marrocos)