SÁBADO

AMOR E FUGA NUM PAÍS EM REVOLUÇÃO

Maria José e Freitas do Amaral sobrevivem à queda do regime, escondem os pais e os filhos, escapam à fúria revolucion­ária que lhes invade literalmen­te as casas e ao mesmo tempo ressurgem para uma vida nova em democracia.

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Estavam no salão paroquial de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa, quando Diogo viu pela primeira vez Maria José Salgado Sarmento de Matos, uma aluna de Letras de 19 anos. Ele era dois anos mais velho e, depois de conversare­m, pensou que ela era “muito gira e inteligent­e”, contou à filha Filipa no livro Pai e Filha em Diálogo (Modo de Ler, 2016). Ela foi seduzida pela diferença, confessou à SÁBADO em 2008: “Eu sou irrequieta e ele muito sereno.”

Só voltaram a ver-se na festa de Leonor Xavier, em junho. Cinquenta e seis anos depois, a aniversari­ante ainda se recorda do vestido vermelho “muito giro” que Maria José – Mizé para a família e os amigos – levava naquele dia. Deu-se o “clique” e começaram a namorar ainda nesse verão.

SEM CHAPERON

► As regras da época impunham que os namorados saíssem sempre com acompanhan­te, por norma um dos oito irmãos de Maria José. Mas conseguiam escapar-se para irem ao cinema sozinhos.

FAMÍLIA BURGUESA

► Mizé era uma pura lisboeta, nascida numa grande casa na rua Eduardo Coelho, no Bairro Alto, onde corria e jogava ao berlinde no jardim com os irmãos e os primos. Eram da “grande burguesia”, recorda à SÁBADO Leonor Xavier. Nesses tempos, a rapariga, que anos mais tarde assinaria romances sob o pseudónimo Maria Roma, trepava também ao muro alto para “poder espreitar outros mundos”, contou à Capital em 1986. “Ela sempre imaginou histórias de pessoas, [escrever] sempre foi uma evasão.” Era uma aluna com “resultados bastante razoáveis”, descreveu a própria ao jornal. Aos 16 anos entrou em Germânicas – mas desencanto­u-se e interrompe­u o curso com o casamento, em 1965; regressari­a, em 1974, para se licenciar em Filosofia.

CASAMENTO EM SINTRA

► Quando decidiram casar-se, Diogo já tinha feito o mestrado. A

A LUA DE MEL DUROU UM MÊS E FOI PASSADA NA GALIZA E EM FAMALICÃO, NA QUINTA DE UNS TIOS

Q família dele, contou Mizé à SÁBADO em 2008, temeu que a decisão o afastasse da conclusão do doutoramen­to, que então preparava. A cerimónia realizou-se a 31 de julho de 1965, na igreja de Santa Maria, em Sintra. O padre era um amigo da família (e antigo professor de Religião e Moral do noivo no Liceu Pedro Nunes): D. Francisco Maria da Silva, arcebispo de Braga. Os cânticos foram do especialis­ta musical da família, o avô Josué Trocado.

A MADRINHA DO NOIVO

► Chamava-se Maria Eusébio, mas era conhecida por Minhama. Era a diretora da Escola Avé-Maria, em Lisboa, onde Freitas do Amaral fez a primária. Gostou tanto que matriculou lá depois os quatro filhos.

MAGRO SALÁRIO

► A lua de mel durou um mês e foi passada na Galiza e em Vila Nova de Famalicão, na quinta de uns tios. Mizé engravidou logo depois. E os quatro filhos do casal nasceram no espaço de cinco anos (Pedro em 1966, Domingos em 1967, Filipa em 1969, e Joana em 1971). Quando a mais nova nasceu, Diogo Freitas do Amaral era um jovem professor de 30 anos. “Com os baixos ordenados que eu tinha na época, teria sido imprudente ter mais filhos. Tomámos as nossas precauções”, descreveu na entrevista conduzida pela filha Filipa em Pai e Filha em Diálogo.

DANÇA DE CADEIRAS

► Quando Salazar caiu da cadeira, em 1968, foi uma oportunida­de de progressão, porque ficou com a regência da cadeira de Direito Administra­tivo – era de Marcello Caetano, que sucedera a Salazar. Na altura tinha apenas 27 anos e estava a cumprir serviço militar na Armada – por isso ia dar aulas fardado. “Freitas foi o discípulo dele [Marcello]”, recorda Leonor Xavier. Caetano convidá-lo-ia por mais de uma vez para o seu governo. Recusou, apesar de lisonjeado: “Decidi que não entraria na política enquanto não chegasse ao topo da carreira académica.” Uma certeza que mudaria com a Revolução de 1974, como se verá.

“TERIA SIDO IMPRUDENTE TER MAIS FILHOS. TOMÁMOS AS NOSSAS PRECAUÇÕES”, DISSE NUMA ENTREVISTA À FILHA

APANHADO NUM RETIRO

► Nas suas memórias, Freitas do Amaral deixa um reconhecim­ento: “A minha mulher teve uma extraordin­ária compreensã­o da necessidad­e de me isolar horas a fio no trabalho intelectua­l.” O método começou nos anos 70: de dois em dois meses isolava-se num lugar sossegado longe de Lisboa durante uma semana, ou mais. Ia para Guimarães, ou para hotéis no Algarve, no Norte ou na linha de Sintra. O 25 de Abril deu-se quando estava num desses retiros. De madrugada, um amigo ligou-lhes para o Hotel do Mar, em Sesimbra: “Diogo, está tropa na rua.” Os papéis – que na época eram a tese para a agregação como docente – ficaram no hotel, guardados numa mala. E saíram a correr no Fiat da família para irem ter com os filhos, que estavam em Lisboa. Quando chegaram à ponte sobre o Tejo, um tanque já barrava a passagem, mas ainda conseguira­m passar.

FILHOS ALHEIOS À POLÍTICA

► Os quatro eram muito novos quando se deu o 25 de Abril e Freitas do Amaral avançou para a fundação do CDS. Os pais combinaram que ao jantar e nos fins de semana conversari­am sobre tudo menos política. Por isso, riram-se muito quando uma Filipa com “5 ou 6 anos” perguntou: “Lá na escola disseram-me que o pai era o Freitas do Amaral do CDS, é verdade?” Era, mas “são coisas para pessoas crescidas”. Só mais tarde os incluíram nestes assuntos. Domingos tinha 18 anos nas Presidenci­ais de 1986. E porque o recenseame­nto era depois das eleições, não pôde votar no pai. “Com muita pena”, confessou na TSF.

O “EXÍLIO” DOS PAIS

► Sendo uma família da situação, o principal visado das forças revolucion­árias do 25 de Abril foi o patriarca, Duarte Amaral, que deixou de ser deputado com a dissolução da Assembleia Nacional, além de ter sido demitido da administra­ção da Sacor e depois reformado (tinha 65 anos em 1974). Pai e mãe foram então viver para a Quinta da Aveleira, em Guimarães. No 28 de setembro de 1974, a casa – onde também estavam os filhos de Freitas do Amaral – foi cercada. Domingos tinha 7 anos e viu “homens de metralhado­ras a entrar pela casa adentro, a revistarem a casa”, contou ao Sol em 2016. Procuravam uma pretensa reunião de conspirado­res contrarrev­olucionári­os. Mesmo não encontrand­o nada, Duarte recebeu ordem de prisão, recusou-se, a mãe ligou para Lisboa e pôs o filho (na altura membro do Conselho de Estado) ao telefone com o líder do contingent­e militar. Foi ele que ameaçou o militar com processos e altas instâncias e assim o caso resolveu-se.

“VIDA DE CIGANOS”

► A expressão é usada por Freitas do Amaral nas memórias e refere-se aos tempos vividos pela família no Verão Quente de 75. “De vez em quando telefonava­m-nos a dizer que ia haver rusgas e que era melhor não dormirmos essa noite em casa: e lá íamos nós, com os filhos pequenotes embrulhado­s em cobertores, dormir em casa de amigos ou familiares. Tivemos de o fazer bastantes vezes entre maio e novembro de 1975: foi uma autêntica ‘vida de ciganos’. Mas deu resultado: nunca ninguém nos conseguiu prender durante todo esse período.” Durante esses cinco meses, espalharam todos os bens pelas casas de amigos e família. Mizé tinha sempre consigo os passaporte­s e os documentos dos filhos, para o caso de terem de fugir do País se ambos fossem presos.

VER O PAI AO JANTAR

► Freitas jantava em casa com todos. Mas em algumas temporadas, passava todos os fins de semana a percorrer o País, a falar sobre o CDS. Nas idas a comícios, nas campanhas, Mizé (que a seguir ao casamento se definia sem vergonha como “dona de casa e mãe”) era uma companheir­a de estrada. Nos primeiros tempos, recorda-se Leonor Xavier, era a “Mimi” – que já criara Diogo – quem tomava conta das crianças quando estavam fora. A família, sobretudo os oito irmãos de Mizé, eram outra ajuda. Mas Freitas nunca soube – nem lhe quis perguntar – se a mulher votava CDS. ◯

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1 O casamento, no verão de 1965, na igreja de Santa Maria, em Sintra 2 O espírito metódico era lendário. Foi professor mais de 50 anos ao mesmo tempo que fundou um partido, desempenho­u inúmeros cargos políticos e escreveu dezenas de livros 2
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5 Em 2008, com a mulher e os filhos no lançamento de mais um livro de Domingos Amaral (à dir.ª) 5
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3 1 1973: a mulher com os quatro filhos, ainda pequenos, em Cascais 2 Com os quatro filhos: Pedro (53 anos), Domingos (52), Filipa (50) e Joana (48) 3 Várias gerações da família reunidas em casa
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4 4 Teve seis netos. Em 2009, no batizado de Leonor, filha de Domingos Amaral e Sofia Jardim

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