PEÇAS DE SALAZAR À VENDA NA NET
Manuscritos, fotografias com a família e até livros de escola. Há mais de 40 anos que o livreiro João Rebelo junta peças e objetos pessoais do ditador português.
O antiquário João Rebelo tem dezenas de objetos de Oliveira Salazar. Fomos perceber o que se vende do ditador do Estado Novo
Esta história começa com a fotografia de uma criança de 5 anos em frente à estátua de Salazar, em Santa Comba Dão. João Rebelo não imaginava na altura, mas aquela imagem, tirada algures nos anos 60, iria abrir-lhe as portas do arquivo do ditador português e torná-lo num dos maiores colecionadores privados do presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo. O interesse de João Rebelo – livreiro e dono do antiquário Retábulo Antigo – por Salazar, que define como “100% português, recatado e inteligente, surge aos 14 anos. Ainda sem ter documentos do político, lê tudo sobre a história do professor que governou Portugal durante quase 40 anos. É já como livreiro que compra o primeiro documento: um cartão de agradecimento, descoberto na Feira da Ladra, em Lisboa. “Achei interessante. Depois comecei a comprar mais coisas porque é uma figura que faz parte de Portugal e não se pode apagar”, explica enquanto retira de um envelope um dos discursos originais do ditador, que nasceu em 1889, no Vimieiro, para nos mostrar o que torna aquelas folhas rabiscadas interessantes. “O que os livreiros procuram num original são as correções. É lá que vemos o seu pensamento: o que deve dizer e o que tem de riscar. É isso que o torna valioso”, explica à SÁBADO.
Quando João Rebelo se apercebe de que o sobrinho-neto de Salazar, Rui Salazar Lucena de Melo, está a vender peças da família, não perde a oportunidade. É nessa altura que a fotografia com 5 anos é determinante. “Quando o contactei, enviei-lhe a minha fotografia em criança, por baixo da estátua do Dr. Salazar. Ele não recebia ninguém e passou a receber-me. Percebeu que o meu interesse era genuíno”, conta João Rebelo. O livreiro vai até Santa Comba Dão, almoça com o sobrinho e estabelecem uma relação comercial. O que João Rebelo, de 55 anos, procura são documentos e fotografias. E o
sobrinho tem vários exemplares. Desde o final dos anos 90 que compra peças de Salazar e diz: “Tenho para mais de 50 originais. Todos os livreiros sabem que quem tem o maior número de peças do Dr. Salaescola zar sou eu.” Quando fala em Salazar, nunca se esquece de referir Dr. Explica que a coleção tem crescido ao longo dos anos – Rui Melo nunca lhe apresenta tudo de uma vez e João Rebelo está sempre atento aos leilões. Como o de 1999, descrito pelo jornal A Capital como um dos maiores de sempre. É nessa altura que compra a fotografia de Salazar com dedicatória para o ditador italiano Mussolini, que colocou no OLX por 5 mil euros. Diz que já recebeu ofertas de uma leiloeira italiana, mas não chegaram ao preço pretendido. É que João Rebelo faz questão de frisar que é comerciante e tem tudo à venda. Ou, melhor, quase tudo.
O que nunca vai vender
Confessa que há peças de que não abdica e enumera algumas: livros de do Dr. Salazar, “antes do secundário”, fotografias das irmãs e cartas para elas. “Também tenho uma carta da Irmã Lúcia para o Dr. Salazar. Isso não vendo. Já lhe estou a dizer o que não devia.” Sempre discreto, revela que tem o espólio espalhado por vários locais, e recusa ser fotografado para a entrevista. Acha que estes documentos deviam estar com o Estado, porque são marcos da História do País, mas considera que a sociedade ainda não sabe lidar com a memória do ditador. Defende, ainda assim, que estão mais bem preservados nas mãos dos comerciantes do que com anónimos. “Se ficam com particulares nunca, mais se encontram.”
Das peças mais valiosas que tem, João Rebelo – que teve de estudar a biografia do ditador para saber o que negoceia – destaca o discurso A Democracia e a Igreja, de 1914, o mais caro que já comprou. Por quanto? “Não lhe vou dizer. Mas está à venda por 50 mil euros.” Salazar era, na altura, professor da Universidade de Coimbra e ao proferir este discurso, numa conferência em Viseu, terá sido acusado de colaborar no movimento monárquico. Foi até suspenso pela universidade.
Da sua vasta coleção – “não tenho aqui tudo”, diz –, João Rebelo destaca também O negócio do minério ou A miséria e o medo. Que cuidados especiais tem de ter com eles? Não apanhar humidade, nem temperaturas altas. “Se aguentaram até agora, vão aguentar. Não ponho luvas para lhes mexer”, diz enquanto empurra os manuscritos para dentro de um ►
“TODOS OS LIVREIROS SABEM QUE QUEM TEM O MAIOR NÚMERO DE PEÇAS DO DR. SALAZAR SOU EU”
► envelope – só à quarta tentativa os consegue guardar.
Entre as fotografias mais importantes estão as pessoais, Salazar nos tempos de Coimbra ou com o pai. Muitas são descobertas por acaso. “Estas fotos [aponta para uma caixa de negativos em vidro de gelatina], o sobrinho não ligou nenhuma. Eu é que fui direito à caixa e vi o que era. Também tenho bobines de filmes do Dr. Salazar no Vimieiro, nem sei o que está lá.”
A venda à Torre do Tombo
Como comerciante, é fácil identificar o local que mais valoriza estas peças: a Torre do Tombo. João Rebelo decide contactá-los quando acredita ter um espólio valioso. “Analisaram o material e fizeram uma proposta de compra – que não vou dizer de quanto foi. Mas era metade do que que queria. Não aceitei.”
À SÁBADO, o diretor do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, recorda que o encontro aconteceu em 2007 e mostra-nos um dossiê com a análise do espólio, feita em sete sessões. Conclusão: os documentos têm uma grande “heterogeneidade” e um “desigual valor arquivístico, razão pela qual não parece justificar a aquisição da totalidade dos documentos por parte do arquivo nacional da Torre do Tombo.” Ou seja, como explica o diretor, fizeram uma contraproposta, mas não houve acordo.
Há que ter em conta que o Arquivo de Salazar na Torre do Tombo tem cerca de 435 mil documentos, em 1.177 caixas, explica Silvestre Lacerda. Salazar começou a criar este arquivo quando ainda tinha a pasta das finanças, no início dos anos 30. “Salazar toma medidas para salvaguardar a sua memória e, quando falece, há uma comissão que sela o seu arquivo. O remanescente era o que levava para Santa Comba Dão, minutas, cartas, notas ou correspondência. Ele tem plena consciência de que existe outra forma de escrever a história, que é mantendo os arquivos de acordo com o que considera mais relevante.”
O que ficou com a família já foi analisado por uma equipa da Torre do Tombo e classificado. Ou seja, os documentos com interesse nacional e cultural são conhecidos. Além disso, refere Silvestre Lacerda: “Quando
“TENHO BOBINES DE FILMES DO DR. SALAZAR NO VIMIEIRO, QUE NEM SEI O QUE ESTÁ LÁ”, DIZ JOÃO REBELO
o sobrinho, Rui Melo, decide vender um documento classificado, tem de nos comunicar essa intenção.” O Estado tem ainda outra forma de proteger os documentos históricos de desaparecerem ou serem exportados, já que pode exercer o direito de preferência. Quando acontecem lei
“SE TIVESSE DINHEIRO COMPRAVA TUDO E FAZIA UMA CASA-MUSEU PARTICULAR”
lões normalmente está presente um representante do arquivo nacional que não licita mas que, no final, pode optar por adquirir a peça pelo valor final. Caso não esteja presente, a Torre do Tombo tem oito dias, após o encerramento do leilão, para decidir se quer ou não o documento. “Não interferimos no funcionamento do mercado.”
Mesmo assim, João Rebelo diz que Salazar é persona non grata. “Tenho uma pasta com relatos da Guerra Colonial para o Dr. Salazar. São documentos secretos, com os mapas dos movimentos e com as observações dele escritas a tinta. Como é que o Estado deixa fugir uma coisa destas?” À acusação, Silvestre Lacerda responde: “O Estado tem vários organismos, como o Arquivo Histórico Militar, que é bastante completo. Além disso, deste tipo de relatórios existiam vários exemplares.”
O sonho de uma casa-museu
Se o que move João Rebelo é a profissão – também vende no OLX, onde tem o manuscrito de Miséria e Medo à venda por 2.500 euros, ou um dossiê sobre a vinda do Papa Paulo VI a Fátima por 1.500 euros – também tem o sonho de fazer uma casa-museu. O livreiro entusiasma-se quando recorda o político que tinha “um regime autoritário e duro” porque “se não o fosse não era forte”. Retira um documento do tempo de Salazar no seminário e começa a ler. “Já viu, olhe aqui: ‘O bem-comportado conhece-se em toda a parte, já por os seus modos agradáveis, já pelas suas palavras afáveis e com sua dor, pelo andar modesto. O homem mal-educado também se conhece em toda a parte ora pelos seus modos indómitos ora pelas suas palavras desonestas, ora pelo seu andar turbulento e vaidoso.” Pouco depois conta: “Se tivesse dinheiro comprava tudo e fazia uma casa-museu particular. Mas como dizia o Dr. Salazar no período da guerra, em que Franco se tinha posto ao lado de Hitler e o queria convencer a entrar na guerra: “Olhe, eu gostava, mas temos um problema. É que eu devo a Deus o dom de ser pobre.” ◯