SÁBADO

FICAR DE FORA E MUDAR DE VIDA: O QUE FAZER DEPOIS DO PARLAMENTO

Arranjar emprego, retomar o velho, aprender os horários escolares dos miúdos, esvaziar o gabinete, fazer o luto, receber chamadas de despedida: custa, dizem eles.

- Por Maria Henrique Espada

Vários deputados, alguns até ex-líderes parlamenta­res, deixam São Bento com o início desta legislatur­a. E, sim, já houve quem fosse arrumar os caixotes

Oque fazer com o tempo livre que agora sobra? A resposta de Hélder Amaral, no dia em que a SÁBADO o contactou, foi desconcert­ante: “Bem, ainda há bocado disse à minha filha [que tem 16 anos], ‘bem, agora vamo-nos conhecer’.” O centrista, cabeça de lista por três vezes por Viseu pelo CDS, que desde os 18 anos era ativista, que sempre esteve ligado à política, era o único deputado do partido presidente de uma comissão parlamenta­r (a de Economia) e vice-presidente da bancada, não foi eleito pelo seu distrito e abandonou todos os cargos partidário­s. O que é que vai fazer? Responde com uma espécie de reflexão em voz alta: “Bem, eu trabalhava na Abreu, era diretor regional, tinha uma licença sem vencimento. Volto, 17 anos depois? É o que terei de fazer, é o que quero fazer... Uma vez a Cristina Esteves [jornalista da RTP] perguntou-me se um deputado pode trabalhar nas limpezas. E eu respondi que sim. Um deputado pode trabalhar seja no que for. Na verdade não faço ideia do que é que vou fazer [risos].” Há limites: “Sei que vou tentar resistir aos caminhos mais fáceis que surgem sempre agora. Não preparei nada, nem usei a Assembleia para isso, tentarei ser a mesma pessoa”, diz, depois de 17 anos no parlamento, para onde foi

“JÁ SEI QUAL É A SENSAÇÃO DE ESTAR MORTO, COM A VANTAGEM DE ESTAR VIVO PARA OUVIR OS ELOGIOS”, DIZ HÉLDER AMARAL

na mesma altura em que a mulher, que é magistrada, tinha saído de Vila Nova de Gaia para ser finalmente colocada em Viseu.

Nos dias a seguir à derrota eleitoral, esperada, admite – no seu círculo e, para o partido – veio dois dias a Lisboa, a São Bento, esvaziar o gabinete. Deixou apenas alguns dossiês temáticos que possam ser úteis a quem o substitua no partido nas áreas de que tratava. Mas quis fazer um corte rápido, já nada pessoal o liga ao espaço que ocupava. Depois, tratou de estudar as rotinas e os horários dos filhos, em Viseu (tem mais um filho, com 14 anos), aulas, ensaios, e tudo o que não sabia. Ainda hoje se recorda de um concerto do filho a que prometeu assistir, e que falhou por causa da política. Não finge que é fácil. “Estou a fazer um luto e a interioriz­ar a minha nova vida. São dias horríveis. Já sei qual é a sensação de estar morto, mas com a vantagem de estar vivo para ouvir os elogios.” Essa, confessa, é a melhor parte. recebeu chamadas de colegas de deputados de todos os partidos, “do PSD ao PCP”, e, se “não serve para nada, faz bem ao ego” perceber que se deixou uma marca positiva até em quem está longe politicame­nte. O apoio de muitos amigos também ajudou: “Percebi isto, nunca caminhamos sozinhos.” Politicame­nte, vai “andar por aí”, “sou militante-base, se me pedi

DISSE À FILHA DE 16 ANOS (MENOS UM QUE OS QUE LEVAVA DE DEPUTADO): “AGORA VAMO-NOS CONHECER”

rem para limpar a sede, limpo”. Resume a passagem por São Bento como “de entrega total”, mas também mudou e aprendeu: “Ainda me lembro da minha primeira intervençã­o, de papel na mão. Foi só na estreia, nunca mais usei papéis.”

Entre Washington e Pittsburgh

Há muitas forma de sair, umas mais confortáve­is do que outras, e o afastament­o pode estar a cargo dos eleitores (foi o caso de Hélder Amaral), do líder do partido (inúmeros casos no PSD), ou ser decisão do próprio. António Leitão Amaro, deputado do PSD, não se recandidat­ou agora e fez essa opção há mais de dois anos. Aliás, a primeira pessoa a quem a transmitiu foi ao então presidente Pedro Passos Coelho e quando a liderança do partido mudou transmitiu a mesma intenção ao recém-eleito Rui Rio. O que leva um vice-presidente de uma bancada parlamenta­r e comentador assíduo em nome do partido nos debates nos canais de notícias decidir que vai parar? Respondeu à SÁBADO num trajeto de carro a caminho do aeroporto de Washington, para apanhar um voo para Pittsburgh – está nos Estados Unidos desde dia 7, a segunda-feira logo a seguir às eleições (já explicamos porquê). “Tenho 39 anos e 10 de vida pública ininterrup­ta. Achei que devia desenvolve­r outras competênci­as ao nível profission­al, e era agora, não aos 50, que podia iniciar alguma coisa nova. Por outro lado, isso permite um reforço da independên­cia que acho importante. A dependênci­a prolongada da política cria um risco maior de violar a consciênci­a. Sentia também a necessidad­e de sair daquela bolha. Acontece ali como noutras áreas, mas na verdade o que ali se passa nem sempre está alinhado com o que as pessoas lá fora querem e sentem.” Prestes a dar o salto para esse lado de fora, não vê drama nenhum na opção: “Se eu fosse do BE talvez achasse que só no Estado ou na política se contribui para o bem público, mas eu acho que a possibilid­ade de contribuir para o bem público não acaba no Estado ou na política.” Não recusa voltar: “É uma decisão de cresciment­o, não de afastament­o, de me qualificar para poder fazer melhor.” Estará ocupado, mas não tem, tecnicamen­te falando, um emprego. “Não saí para nada bem pago cá fora.” Mas é casado e tem dois filhos e assume que se preparou para a travessia de um quase deserto financeiro. “Quando me decidi, comecei a poupar de forma especialme­nte forte para isto.” Quando entrou na política a tempo inteiro suspendeu a bolsa da FCT para o doutoramen­to na Universida­de Católica na área das Finanças Púbicas. Vai retomá-lo (a tese será sobre a independên­cia das instituiçõ­es não políticas na área bancária e financeira), o que lhe dará cerca de 1.000 euros por mês. Não sendo um grande salário, não parece assustado: “O que os ocu

pantes de cargos públicos recebem em Portugal permite viver de forma confortáve­l.” E permitiu-lhe ter poupado. Não sai com nenhum tipo de amargura: “Gostei muito de todas as funções que desempenhe­i. Há um sentimento de honra na ideia de representa­ção, talvez um pouco como os desportist­as quando vestem a camisola.” Politicame­nte, não se exclui da participaç­ão, nem na vida partidária. “Não ponho nada de parte mas também não tenho nenhum plano.”

Quanto ao voo interno nos Estados Unidos, é só um de muitos ao longo de 24 dias de encontros e conferênci­as institucio­nais. Ainda estava no parlamento quando foi pré-selecionad­o pelo German Marshall Fund, um think tank americano, para a Marshall Memorial Fellowship, uma bolsa atribuída a jovens líderes europeus para aprofundar o conhecimen­to dos EUA e da relação transatlân­tica. Mas a bolsa, apesar do nome, não paga salário e ainda teve de pagar a inscrição.

Estar deputado

Hugo Soares foi provavelme­nte a saída mais polémica das listas de deputados do PSD, com o nome vetado pela direção nacional. Mas nem por isso faz um balanço negativo dos nove anos de parlamento ou da liderança da bancada: “De todo. Há quem prefira não o dizer, mas eu gostei muito de ser deputado, é uma experiênci­a que não esquecerei, que me marcou. A responsabi­lidade que se sente marca-nos.” O mais complicado da dedicação à política não é a agitação das guerras internas, é antes a memória das atribulada­s segundas-feiras à noite, à saída de Braga para Lisboa, quando o filho mais velho,

“NÃO SAÍ PARA NADA BEM PAGO CÁ FORA”, DIZ LEITÃO AMARO, QUE CONTA RETOMAR A BOLSA DE DOUTORAMEN­TO

agora com 6 anos, se lhe agarrava às calças à porta de casa para não o deixar sair. “Comecei a sair já fora de horas, depois de o deitar, para ele não perceber.”

A saída não o apanhou despreveni­do. “Vou voltar ao mesmo que fazia, tenho uma sociedade de advogados em Braga. E o conselho que daria a um novo deputado é mesmo esse, nunca ficar excessivam­ente dependente da política. Não somos deputados, estamos deputados.” E acha que está bem assim: “Com a dependênci­a financeira perde-se a liberdade de pensamento. Não dependo da política para poder viver e isso é bom para não viver numa redoma. Sou também administra­dor numa empresa ligada à agricultur­a, vou continuar. Tenho a minha vida organizada.” Se do ponto de vista pessoal estava preparado para sair a qualquer momento, do ponto de vista político “tenho de aceitar, mas é demonstrat­ivo de um partido que constrói muros”. A carreira política não acabou. “Há mais vida política para lá do parlamento.” Wanda Guimarães, do PS, era a mais velha deputada do parlamento (tem 75 anos) e no seu último discurso como deputada, no fim de maio, foi aplaudida da esquerda

Qà direita. E, no entanto, a entrada da sindicalis­ta em São Bento trouxe-lhe também surpresas desagradáv­eis: “O meu espanto real foi a atitude malcomport­ada de alguns na Assembleia da República. Se fosse em reuniões do movimento sindical, onde sempre trabalhei, seriam postos na rua. Baterem nas secretária­s? É inconcebív­el! Dizerem palavrões em voz alta!” Esse foi o maior desencanto, mas à chegada não achou a atmosfera acolhedora – e não era disso que estava à espera, admite com franqueza: “A maior parte das pessoas não dá bom-dia nos corredores. Não é um ambiente supersimpá­tico.” Mas não sai insatisfei­ta, pelo contrário: “Deu-me muito prazer conseguirm­os trabalhar com o BE e PCP juntos, à mesma mesa – foi a única vez em quatro anos que isso aconteceu – na proposta sobre a alteração à lei da transmissã­o de estabeleci­mento”, a figura jurídica usada pela pela Altice/PT para mudar mais de uma centena de trabalhado­res para outras empresas.

Mas sentiu o ritmo lento da casa: “No sindicalis­mo há uma construção diária, no terreno, de soluções. Isso não existe no parlamento. Se fosse mais nova, gostaria de ter feito um segundo mandato, porque fica uma sensação de deixar coisas inacabadas. E custa, mas devemos saber quando sair.” Sabe o que serão os próximos tempos: “Vou fazer o luto. estar mais com a família e os amigos e arranjar coisas em casa, daquelas que ficam sempre para trás [risos].” E vai voltar a dedicar-se ao blogue, o Laboratóri­otrabalhos.

Amizades extremas

Nuno Magalhães acumula 14 anos de parlamento e oito como líder parlamenta­r do CDS. Na noite de 6, como cabeça de lista em Setúbal, não foi eleito. Nessa mesma noite, recebeu mensagens e chamadas solidárias de deputados de todas as bancadas do parlamento. “Mesmo as mais à esquerda”, enfatiza, omitindo os nomes. É aliás muito crítico da “boca” que se ouve, fora do parlamento, sobre a forma como “eles” discutem muito, mas “depois lá dentro todos se entendem”. Riposta: “Claro que sim. Aliás, uma das coisas que destaco pela positiva é precisamen­te o facto de haver um bom ambiente de trabalho, que permite que as pessoas discordem, mas tenham boas relações pessoais”. Uma dessas boas relações, conta, era com Jerónimo de Sousa, o líder do PCP. Tinham em comum o facto de serem ambos fumadores, pelo que se encontrava­m nos mesmo locais, e, sendo ambos benfiquist­as, nunca faltou tema de conversa. Mas sabe que de fora não é só isso que é malvisto: “Para quem o leva a sério, é um trabalho que pode ser muito, muito exigente e é uma função nobre na democracia. E acho que não é tão valorizada como devia ser.” Vai voltar à profissão, advogado, mas ainda sem um esquema definido, não tem escritório, vai ter de reconstrui­r a carreira da base. Também dá aulas na Universida­de Lusófona e gostaria de as intensific­ar, mas agora já o ano letivo arrancou. Não terá, como não têm os colegas que só se tornaram deputados após 2005, direito a nenhum tipo de subvenção estatal ou subsídio, de desemprego ou outro. A subvenção vitalícia para quem deixa funções acabou em 2005, por decisão do então primeiro-ministro José Sócrates. Aqui regista uma ironia: “Já não precisava.” Não sendo a lei retroativa, já tinha esse direito adquirido.

No BE, Heitor de Sousa, eleito pela primeira vez deputado em 2009 (saiu quando o BE encolheu, em 2011, e regressou em 2015), já não foi cabeça de lista por Leiria. Viu o parlamento como uma aprendizag­em: “Aprendi com as pessoas, com os problemas delas e do distrito, aprendi no contacto com as populações e com as audiências na Assembleia da República. É uma excelente arma de formação política” e é por isso que, explica, a decisão de sair foi sua e do partido, “foi comum, eu sempre defendi a rotação [que o BE já praticou, enquanto o regulament­o o permitiu, de forma rotineira] e a renovação.

No seu caso, ter um lugar para onde voltar vai facilitar a passagem imediata à vida civil. Estava requisitad­o à Carris, onde trabalhava no gabinete de planeament­o, e já sinalizou ao presidente da empresa que deverá regressar, embora queira ver para quê, até porque já tem carreira contributi­va suficiente para se reformar. “Estou na expetativa de saber o que é que têm para mim.” É economista de transporte­s, o futuro não o atormenta: “Posso sempre trabalhar como profission­al liberal.” Só tem coisas boas a dizer sobre a experiênci­a: “Foi um prazer enorme, enorme.” Se houve um preço, ao nível da relação com familiares e amigos, a pagar, não se queixa: “Não se pode ter o melhor de dois mundos ao mesmo tempo.” ◯

WANDA GUIMARÃES (PS) FICOU MAL IMPRESSION­ADA PELO AMBIENTE: “BATEREM NAS SECRETÁRIA” E PALAVRÕES

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As atenções estão todas nos deputados que se vão estrear. Mas quem sai anda a recolher papéis e copiar ficheiros
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