Kalin O criador e rei do negócio de milhões com a venda de passaportes
Aos 35 anos relancou a industria de venda de passaportes a ricos, negocio que hoje domina, das Caraibas a Europa. Sao muitas as criticas a sua influencia e aos riscos do negocio. Ele defende que da milhoes a ganhar.
São Cristóvão e Nevis é o Estado mais pequeno e com menos gente no hemisfério ocidental – nas duas ilhas das Caraíbas, do tamanho das açorianas Faial e Santa Maria, vivem cerca de 55 mil pessoas. Mas foi ali que, em 2006, um advogado suíço chamado Christian Kälin começou a ganhar o cognome de Rei dos Passaportes – e relançou o que é hoje a indústria global da venda de cidadania, um negócio que vale 2.000 milhões de euros por ano, segundo a agência Bloomberg. Kälin não inventou a venda da cidadania. São Cristóvão já tinha um programa deste tipo desde 1984, mas era lento e mal regulamentado. O momento da economia e da política mundial também era outro – ainda não estávamos na era de total globalização do capital e de concentração enorme de riqueza. Em 2006, contudo, não só o momento tinha mudado, como o governo de São Cristóvão estava aflito, em plena ressaca social e económica depois do colapso da indústria do açúcar no país. Kälin viu a oportunidade e negociou um monopólio por cinco anos: a Henley redesenhou o programa e ficou com direitos exclusivos para promover o arquipélago como um destino para comprar residência. O passaporte destes países oferece muitas vantagens para quem tem dinheiro. A primeira é a mobilidade – o passaporte de São Cristóvão e Nevis dispensa visto para 130 países – e está associado a segurança, importante para milionários de países politicamente instáveis. A segunda é a opacidade (os nomes de quem compra nacionalidade não são publicados) e também está associada a outro bónus: a maior parte destes países são paraísos fiscais. Kälin, que nega a vantagem fiscal, falou no ano passado à Bloomberg noutra motivação: status, uma ansiedade não desprezível neste mercado. “Se tem um iate e dois aviões a próxima coisa a comprar é um passaporte maltês”, explicou.
Pouco depois do acordo conseguido pela Henley em São Cristóvão aconteceram duas coisas que expandiram a procura pelos passaportes do pequeno arquipélago caribenho, alcançáveis em 90 dias sem necessidade de ir ao país: o protocolo que eliminou o visto nas viagens de países das Caraíbas para a União Europeia e o fecho do programa de venda de passaportes do Canadá. Em 2015, as receitas da venda de passaportes chegaram a valer 32% da receita total do pequeno Estado das caraíbas, segundo o FMI. A isto soma-se o impacto no imobiliário, já que o investimento que compra a cidadania é tipicamente feito aí. A Henley recebia 10% da venda de cada passaporte por 200 mil dólares (já subiu para 250 mil), o que levou a um encaixe de mais de 320 milhões com as 16 mil cidadanias vendidas no arquipélago, às quais há que juntar as comissões pagas pelos compradores. Parecia magia e não tardou que outros governantes em busca de recursos contratassem a consultora a que Kälin em breve iria presidir para lançar os seus programas. Não tardou, também, que a influência do suíço começasse a atrair escrutínio.
Tanta influência e tanto risco
Há pouca informação pública sobre Christian Kälin. Na sua página pessoal na Internet afirma ter crescido “perto de Zurique numa família tipicamente suíça” e descreve um percurso inicial sem nada de excecional: licenciou-se em Gestão pela Universidade de Zurique, estagiou na banca, estudou e trabalhou em meia dúzia de países antes de voltar para a Suíça, país com pergaminhos na gestão de fortunas, no apoio ao planeamento fiscal agressivo e nos serviços de luxo para milionários. Até ao negócio em São Cristóvão tinha escrito um guia bem-sucedido sobre investimento na Suíça. Não fala sobre a vida pessoal, mas o mesmo não acontece sobre a vida profissional. Na sua página cita passagens de artigos e jornais que o identificam como “o arquiteto” da indústria de “venda de cidadania”, o termo preferido de quem nela atua (por oposição a “venda de passaportes”). Depois de São Cristóvão, Kälin desenhou o programa do arquipélago de Antígua e Barbuda, foi consultor dos Governos de Chipre e de Grenada (nas Caraíbas) e conse- ►
“SE TEM UM IATE E DOIS AVIÕES A PRÓXIMA COISA A COMPRAR É UM PASSAPORTE MALTÊS”, DIZ KÄLIN
KÄLIN FOI ACUSADO DE INTERFERIR NAS ELEIÇÕES EM PAÍSES DAS CARAÍBAS E DE LIGAÇÕES OPACAS EM MALTA
► guiu, em 2014, negociar o desenho do programa de Malta, país da União Europeia. Além de ser um negociador duro, vestiu a pele de académico e deu bases teóricas a uma indústria com má imagem: publicou uma tese de doutoramento sobre a compra de cidadania através de investimento e criou índices sobre nacionalidades. Nas conferências globais da Henley é frequente ver ministros e primeiros-ministros a fazerem uma apresentação promocional, ou pitch, a plateias de advogados e clientes. O crescimento exponencial do negócio tem gerado críticas e polémica. Um relatório do Parlamento britânico sobre o papel da empresa Cambridge Analytica no resultado do referendo sobre o Brexit refere uma parceria entre uma sociedade-irmã da Cambridge, a SCL, e a Henley. Alexander Nix, da Cambridge, admitiu aos deputados que a consultora de Kälin “arranjava investidores para financiarem” certos partidos em países das Caraíbas (destinados a pagar a conta dos serviços de assessoria da SCL) para, em troca, “ganhar direitos exclusivos” de venda dos passaportes. Kälin negou a acusação ao The Guardian, mas uma investigação do jornal ampliou as dúvidas sobre o papel do suíço. Em Malta, a jornalista de investigação Daphne Caruana Galizia – assassinada em 2017 – escreveu a espaços sobre a ligação entre a SCL, a Henley e o governo maltês, o que lhe valeu desmentidos e ameaças de litigância por parte da Henley. Várias organizações que advogam a transparência têm criticado a opacidade destes programas, citando riscos de segurança, corrupção e evasão fiscal. Em fevereiro deste ano, foi a vez de a Comissão Europeia publicar um relatório em que identifica os mesmos riscos e critica sobretudo os programas de venda de cidadania de Malta e Chipre, com influência da Henley, por falharem na monitorização básica da origem da fortuna dos compradores de cidadania, não revelarem a sua identidade e contornarem as regras europeias. A Henley, citada pela Reuters, responde que a análise de Bruxelas está “mal orientada” e ignora os benefícios económicos.
Menos influência em Portugal
Um artigo da Bloomberg, de 2015, mencionava a presença de um embaixador português numa das conferências da Henley. Portugal tem desde 2012 um programa de venda de autorizações de residência, os vistos gold, e surge com regularidade em publicações e conferências da Henley. A consultora tem um escritório no palácio Alagoas, no bairro lisboeta do Príncipe Real. Em Março do ano passado, Christian Kälin respondeu no Parlamento Europeu à eurodeputada Ana Gomes que a Henley “não esteve envolvida no desenho, na operação ou em qualquer outra coisa referente à montagem e execução do programa em Portugal”. Fonte ministerial do governo PSD/CDS, que criou o programa, indica à SÁBADO que a Henley apenas contactou o governo a propósito dos rankings que compila todos os anos. Na sessão no Parlamento Europeu, Kälin criticou esquemas de “assalto” aos compradores de vistos gold em Portugal e disse ter feito recomendações ao atual Governo. A Henley não tem uma posição dominante no mercado português, no qual os escritórios de advogados controlam o mercado.
As críticas sobre a indústria podem estar a subir, mas a procura por cidadanias instantâneas não dá sinais de abrandar – a Henley tem muitos rivais, das grandes auditoras globais à Global Citizen Quest, de Armand Arton (que tal como Kälin, tem várias nacionalidades e faz filantropia a favor de refugiados, os que não conseguem ter nacionalidade). Para Kälin, que subiu a presidente da Henley em 2014, com 42 anos, o fenómeno “faz todo o sentido”, afirmou em 2015 à Bloomberg. “Porque não dar a cidadania às pessoas que contribuem muito para o país?” ◯