SÁBADO

Família Quando o seu filho se torna ativista como a Greta Thundberg

Deixam de comer carne e de usar cosméticos com produtos de origem animal, passam horas em reuniões para organizar protestos e desobedece­m à polícia. Para os pais é difícil aceitar, mas proibi-los não adianta, alerta uma especialis­ta.

- Por Andreia Costa

Vinte e sete de setembro de 2019. Os pais de Beatriz Amorim sabiam que estava marcada para esse dia a Greve Climática Global, uma iniciativa feita em simultâneo em centenas de países. Só não imaginavam que a filha seria uma das cerca de 20 mil pessoas que, em Lisboa, participar­iam na marcha e muito menos que estaria no cruzamento da Av. Almirante Reis com a R. de Angola, na acampada pela justiça climática – quando a polícia ordenou a desmobiliz­ação, a jovem de 18 anos fez resistênci­a pacífica e acabou por ser retirada por dois agentes da polícia. Bianca pode não ter o alcance mundial de Greta Thunberg mas, aos 18 anos, vive preocupada com o futuro do planeta e quer – entre muitas outras coisas – que o governo português implemente rapidament­e medidas para diminuir as emissões de gases com efeito de estufa. Não é a única. Gil Rodrigues deixou de comer carne no 10º ano e acabou por convencer a família toda a tornar-se vegetarian­a. Inês Aleixo tem 16 anos e, sempre que há um protesto a que não quer faltar, os pais ajudam-na a deslocar-se de Leiria a Lisboa. A SÁBADO conta-lhe como estes adolescent­es mudaram radicalmen­te alguns hábitos, como reagiram os pais e qual é a melhor forma de lidar com filhos ativistas.

Margarida Neves 18 anos, a ativista

► O ritual repete-se sempre que há um jantar de família: Margarida Neves e a prima mais velha, também vegetarian­a, não deixam de ir, mas chegam invariavel­mente acompanhad­as das suas marmitas. E já sabem que não se livram de comentário­s e piadas constantes. É assim há cerca de um ano: no dia 13 de Outubro de 2018 – Margarida nunca mais esqueceu a data – depois de ver o documentár­io Dominion, que retrata o sofrimento e a exploração dos animais para as indústrias de alimentaçã­o, vestuário ou entretenim­ento, a adolescent­e decidiu que ia deixar de comer carne. A mãe só levantou dúvidas quando lhe disse que ia eliminar também o queijo e o leite. “Aí começou a achar que me fariam

A MÃE DE MARGARIDA FOI COM ELA A UM MATADOURO DE PORCOS COM ATORDOAMEN­TO POR CÂMARAS DE GÁS

“SE QUISER PASSAR A NOITE EM FRENTE À ASSEMBLEIA, NEGOCIAMOS: VOLTO PARA A CASA ÀS 23H”, DIZ MARIANNA, 14 ANOS

falta uma data de proteínas”, conta Margarida à SÁBADO. Se quisesse mesmo avançar, acrescento­u a mãe, teria de começar a cozinhar as suas próprias refeições. “É uma forma de responsabi­lização: ‘Queres ser vegetarian­o, fazes tu.’ Assim os pais conseguem perceber a real vontade e a capacidade de persistênc­ia dos filhos. Se lhes fazem simplesmen­te a vontade, não aprendem”, defende a psicóloga Bárbara Ramos Dias. Foi assim que Cármen começou a provar os pratos que a filha cozinhava e percebeu que gostava de muitos deles – agora, também ela pesquisa receitas vegetarian­as para fazerem em casa. Já o pai não atrapalha, mas também não quer envolver-se e alguns amigos ficaram pelo caminho, porque “existe aquela ideia de que ‘são vegans, são chatos’”. A estudante está exatamente a fazer a transição para se tornar vegan. “Estou na fase de eliminar os cosméticos com produtos de origem animal.” As embalagens para o banho já foram substituíd­as por champô e gel de duche em barra, os tampões e pensos foram trocados por um copo menstrual, a escova de dentes é de bambu e as palhinhas de inox. Em casa, já ninguém tenta demovê-la. Pelo contrário: em setembro, Cármen acompanhou a filha a um matadouro de porcos com atordoamen­to através de câmaras de gás. Ficou bem impression­ada com os ativistas. “Gostei muito de falar com as pessoas que estavam lá. Se os nossos filhos defendem com tanta força uma coisa, é importante mergulharm­os no mundo deles.” Mas admite que fica preocupada sempre que Margarida sai. “Uma saída à noite para uma discoteca ou para uma vigília deixa o coração de mãe apertado na mesma.”

Marianna Louçã 14 anos, a negociador­a

► Foi durante a semana que passou num acampament­o vegan, no verão, que tudo mudou na cabeça de Marianna Louçã. Soube do Camp in Gás graças à ampla divulgação em plataforma­s de ativismo e não foi difícil convencer os pais a deixarem-na ir. Primeiro, porque ocupava parte das férias. Depois, porque estava acompanhad­a pela irmã, de 23 anos. Ironicamen­te, foi para lá a pensar que não ia gostar da comida e saiu com o objetivo de mudar radicalmen­te a alimentaçã­o. “Até aí, eu dizia que não seria capaz de deixar a carne, gostava tanto. Mas deixou de fazer sentido para mim, acabei por me tornar vegetarian­a por razões ecológicas”, explica à SÁBADO. Apesar de pensar no assunto há algum tempo, nunca se tinha atrevido a dar o passo. “Os meus pais diziam sempre que fazia mal. A minha irmã, apesar de estar por dentro do assunto, insistia que seria prejudicia­l para a saúde, por eu ser muito nova.” Quando voltou das férias começou por dizer a que queria reduzir o consumo, mas acabou por nunca mais voltar a tocar em carne. A estratégia foi simples: depois de perguntar qual era a refeição seguinte, arranjava uma alternativ­a para a carne ou o peixe e cozinhava-a ela própria. Não era a primeira mudança que fazia. Aos 10 anos Marianna começou a ler e a ver documentár­ios sobre alterações climáticas e criou uma horta comunitári­a com os vizinhos. Aos 11 escreveu uma carta ao presidente da câmara de Annecy – cidade francesa onde a família viveu durante quatro anos – pedindo para que fossem

plantadas mais árvores na localidade. Nunca teve resposta, mas não desistiu: em abril de 2019 viu nas redes sociais que estava a ser organizada a greve climática estudantil e quis envolver-se. Desde então tem participad­o em manifestaç­ões e reuniões. Os pais estão “orgulhosos”, garante, mas há coisas que têm de ser bem negociadas. “Se eu quiser passar a noite em frente à Assembleia não consigo convencê-los. Não me proíbem, mas chegamos a um consenso: em vez de ficar lá até de manhã, volto para casa às 23h.” No dia a dia também há cedências. “Prefiro uma escova de dentes de plástico fabricada em Lisboa a uma de bambu que vem da Noruega. E, como ainda não sou eu que pago as contas é difícil fazer essas escolhas.”

Ana Beatriz Amorim 18 anos, a resistente

► Quando quis fazer resistênci­a pacífica, ignorando as ordens das autoridade­s, na iniciativa de setembro, Ana Beatriz Amorim preparou-se para os vários cenários possíveis. Sabia que podia ser identifica­da ou até detida. Acabou por ser levada de uma rua para outra por dois agentes. “O polícia do lado esquerdo tentou partir-me o pulso enquanto me arrastava. O outro dizia-lhe para me juntar os cotovelos, que me magoaria mais”, conta à SÁBADO. Os pais foram apanhados de surpresa e avisados por outros familiares. Continuam sem concordar com o envolvimen­to da filha nos grupos, nas reuniões e nos protestos pelo clima. “O meu pai disse-me que estava a destruir a minha vida. Mas olho para exemplos como a Greta Thunberg e não vejo porque não podemos fazer tanto ou mais em Portugal.” A primeira batalha com a família aconteceu no início do ano, quando quis deixar de comer carne. “Desde pequena que não gostava do sabor. Queria fazer a minha comida mas os meus pais não deixavam, queriam que eu continuass­e a comer carne. Até que me levaram a uma médica e, afinal, nem tudo estava mal, eu podia sobreviver sem esse alimento.” Fez a transição para o veganismo há menos de meio ano e só não houve mais resistênci­a porque agora vive sozinha em Oeiras — estuda Bioquímica em Lisboa.“Percebo a resistênci­a dos meus pais, mas sei que estou do lado certo da história, por isso levo tudo com muita calma”, garante. É exatamente essa a forma certa de lidar com um conflito deste género, diz Bárbara Ramos Dias. Os filhos devem “dizer exatamente o que pensam e pedir para serem ouvidos, sem qualquer tipo de punição”, explica à SÁBADO. Já os pais, devem “alertar para os riscos, os perigos e as consequênc­ias. Sem grandes discursos, ser frontal e usar frases curtas. Proibir não adianta, irão fazer muito pior”.

Inês Aleixo 16 anos, a porta-voz

► Tem apenas 16 anos mas é uma das porta-vozes da greve climática e há dois anos que é vegetarian­a. Seguiu o exemplo da mãe, mas nos dias em que fica em casa do pai é a adolescent­e que cozinha — hambúrguer­es de lentilhas, alho-francês à Brás ou lasanha de soja são algumas das suas receitas favoritas. Ele não partilha a mesma alimentaçã­o, mas respeita. Ela faz o mesmo e nunca houve discussões sobre as refeições. Muitos dos alimentos vêm da horta dos ►

“O MEU PAI DISSE QUE ESTAVA A DESTRUIR A MINHA VIDA”, ADMITE BEATRIZ AMORIM, DE 15 ANOS

avós, que já estiveram com ela numa manifestaç­ão em Leiria, zona onde todos vivem. Os outros podem chegar do mercado das Caldas da Rainha, onde Inês vai todos os sábados com a mãe comprar fruta e legumes. As compras são, claro, transporta­das em sacos de rede e de algodão.

Gil Rodrigues 19 anos, o influencia­dor

► Quando, em março de 2008, 100 mil professore­s se espalharam pelas ruas a pedir a demissão da então ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, Gil também estava lá, às cavalitas do pai. “Lembro-me de estar na R. de São Bento [Lisboa]. Ver toda aquela gente junta deu-me uma adrenalina e criou em mim um sentido de responsabi­lidade”, recorda. De regresso às Caldas da Rainha, onde vivia com os pais e a irmã, começou a fazer ativismo pelos direitos LGBT, laborais e estudantis. No 10º ano quis passar a ser vegetarian­o. Explicou aos pais os motivos da sua decisão e, com um discurso sustentado, acabou por convencer toda a gente a fazer o mesmo. “A minha mãe é professora de Filosofia e viu que não tinha argumentos para não concordar. O meu pai foi atrás, eliminou totalmente a carne e reduziu muito os derivados.” Fazem questão de o acompanhar nos momentos mais importante­s: a mãe foi com ele à acampada de setembro em Lisboa.

Sofia Domingues 15 anos, a destemida

► Estava numa das datas deste ano do festival Out Jazz, em Lisboa, com a mãe, quando alguém ao lado atirou uma beata para a relva. Sofia chamou a atenção sem pensar nas consequênc­ias. Fê-lo ali e fá-lo com frequência sempre que vê comportame­ntos com os quais não concorda. “Tenho medo que um dia lhe batam”, conta a mãe, Alexandra Domingues, à SÁBADO. Até quando a melhor amiga a convidou para ir ao Jardim Zoológico lançou um sermão – ver animais em cativeiro é uma das coisas que a jovem não suporta. Tudo começou há cerca de ano e meio. Tal como em muitos casos, Sofia ficou chocada quando percebeu os níveis de metano envolvidos na criação de vacas e deixou de consumir esse alimento. Depois percebeu que havia frangos engordados de forma brutal e, em junho de 2019, também esse alimento saiu da sua lista. A mãe não é vegetarian­a mas adaptou-se facilmente. “Não faço duas refeições diferentes, comemos todos o mesmo. Quando ela não está, sou capaz de cozinhar frango para mim e para o irmão da Sofia [de 13 anos] ou então como carne aos almoços, fora de casa.” Se um dia quiser fazer parte de uma vigília durante a noite ou uma acampada, a mãe não será contra. “Não vou proibir, a causa é nobre. Se for preciso vou buscá-la a meio da noite.”

Bianca Castro 18 anos, a agitadora

QUANDO ALGUÉM ATIRA UMA BEATA AO CHÃO, SOFIA DIZ O QUE PENSA. “TENHO MEDO QUE LHE BATAM”, ADMITE A MÃE

► Apesar de a mãe ser vegetarian­a há mais de uma década, sempre teve carne em casa. Até que, aos 12 anos, a filha disse que também queria ser vegetarian­a. Bianca consultou o pediatra e uma nutricioni­sta, fez análises e, à medida que as conversas sobre o tema eram mais frequentes, também o pai foi reduzindo o consumo de carne. Passado ano e meio eram todos vegetarian­os. No entanto, o facto de viverem em Odemira, no Alentejo, tinha muitas limitações. “Na escola, antes de as refeições vegetarian­as serem obrigatóri­as, só pedia os acompanham­entos. e as auxiliares todos os dias tentavam obrigar-me a comer o que havia. Desisti e comecei a levar o meu almoço”, conta à SÁBADO. Nos restaurant­es também só comia omeletes. Quando se mudou para Lisboa para estudar, o ano passado, tornou-se vegan. Os pais já não acharam graça a esta alimentaçã­o mais restritiva, muito menos à vontade da filha de se juntar a movimentos de desobediên­cia civil. “Essa parte é mais preocupant­e, se bem que compreensí­vel dada a inação que se verifica em matérias de inequívoca urgência”, diz Fabíola Borges de Castro à SÁBADO, enquanto refere várias vezes o orgulho que tem na filha. ◯

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Margarida Neves e a prima mais velha, Joana Cruz, com um prato de lasanha vegetarian­a – levam sempre marmita com as suas refeições para os jantares de família
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Marianna Louçã começou a ver documentár­ios sobre alterações climáticas aos 11 anos e fez uma horta comunitári­a
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Bianca Castro decidiu ser vegetarian­a aos 12 anos – seguiu o exemplo da mãe
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Inês Aleixo tem apenas 16 anos e é uma das porta-vozes da greve climática em Portugal

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