Família Quando o seu filho se torna ativista como a Greta Thundberg
Deixam de comer carne e de usar cosméticos com produtos de origem animal, passam horas em reuniões para organizar protestos e desobedecem à polícia. Para os pais é difícil aceitar, mas proibi-los não adianta, alerta uma especialista.
Vinte e sete de setembro de 2019. Os pais de Beatriz Amorim sabiam que estava marcada para esse dia a Greve Climática Global, uma iniciativa feita em simultâneo em centenas de países. Só não imaginavam que a filha seria uma das cerca de 20 mil pessoas que, em Lisboa, participariam na marcha e muito menos que estaria no cruzamento da Av. Almirante Reis com a R. de Angola, na acampada pela justiça climática – quando a polícia ordenou a desmobilização, a jovem de 18 anos fez resistência pacífica e acabou por ser retirada por dois agentes da polícia. Bianca pode não ter o alcance mundial de Greta Thunberg mas, aos 18 anos, vive preocupada com o futuro do planeta e quer – entre muitas outras coisas – que o governo português implemente rapidamente medidas para diminuir as emissões de gases com efeito de estufa. Não é a única. Gil Rodrigues deixou de comer carne no 10º ano e acabou por convencer a família toda a tornar-se vegetariana. Inês Aleixo tem 16 anos e, sempre que há um protesto a que não quer faltar, os pais ajudam-na a deslocar-se de Leiria a Lisboa. A SÁBADO conta-lhe como estes adolescentes mudaram radicalmente alguns hábitos, como reagiram os pais e qual é a melhor forma de lidar com filhos ativistas.
Margarida Neves 18 anos, a ativista
► O ritual repete-se sempre que há um jantar de família: Margarida Neves e a prima mais velha, também vegetariana, não deixam de ir, mas chegam invariavelmente acompanhadas das suas marmitas. E já sabem que não se livram de comentários e piadas constantes. É assim há cerca de um ano: no dia 13 de Outubro de 2018 – Margarida nunca mais esqueceu a data – depois de ver o documentário Dominion, que retrata o sofrimento e a exploração dos animais para as indústrias de alimentação, vestuário ou entretenimento, a adolescente decidiu que ia deixar de comer carne. A mãe só levantou dúvidas quando lhe disse que ia eliminar também o queijo e o leite. “Aí começou a achar que me fariam
A MÃE DE MARGARIDA FOI COM ELA A UM MATADOURO DE PORCOS COM ATORDOAMENTO POR CÂMARAS DE GÁS
“SE QUISER PASSAR A NOITE EM FRENTE À ASSEMBLEIA, NEGOCIAMOS: VOLTO PARA A CASA ÀS 23H”, DIZ MARIANNA, 14 ANOS
falta uma data de proteínas”, conta Margarida à SÁBADO. Se quisesse mesmo avançar, acrescentou a mãe, teria de começar a cozinhar as suas próprias refeições. “É uma forma de responsabilização: ‘Queres ser vegetariano, fazes tu.’ Assim os pais conseguem perceber a real vontade e a capacidade de persistência dos filhos. Se lhes fazem simplesmente a vontade, não aprendem”, defende a psicóloga Bárbara Ramos Dias. Foi assim que Cármen começou a provar os pratos que a filha cozinhava e percebeu que gostava de muitos deles – agora, também ela pesquisa receitas vegetarianas para fazerem em casa. Já o pai não atrapalha, mas também não quer envolver-se e alguns amigos ficaram pelo caminho, porque “existe aquela ideia de que ‘são vegans, são chatos’”. A estudante está exatamente a fazer a transição para se tornar vegan. “Estou na fase de eliminar os cosméticos com produtos de origem animal.” As embalagens para o banho já foram substituídas por champô e gel de duche em barra, os tampões e pensos foram trocados por um copo menstrual, a escova de dentes é de bambu e as palhinhas de inox. Em casa, já ninguém tenta demovê-la. Pelo contrário: em setembro, Cármen acompanhou a filha a um matadouro de porcos com atordoamento através de câmaras de gás. Ficou bem impressionada com os ativistas. “Gostei muito de falar com as pessoas que estavam lá. Se os nossos filhos defendem com tanta força uma coisa, é importante mergulharmos no mundo deles.” Mas admite que fica preocupada sempre que Margarida sai. “Uma saída à noite para uma discoteca ou para uma vigília deixa o coração de mãe apertado na mesma.”
Marianna Louçã 14 anos, a negociadora
► Foi durante a semana que passou num acampamento vegan, no verão, que tudo mudou na cabeça de Marianna Louçã. Soube do Camp in Gás graças à ampla divulgação em plataformas de ativismo e não foi difícil convencer os pais a deixarem-na ir. Primeiro, porque ocupava parte das férias. Depois, porque estava acompanhada pela irmã, de 23 anos. Ironicamente, foi para lá a pensar que não ia gostar da comida e saiu com o objetivo de mudar radicalmente a alimentação. “Até aí, eu dizia que não seria capaz de deixar a carne, gostava tanto. Mas deixou de fazer sentido para mim, acabei por me tornar vegetariana por razões ecológicas”, explica à SÁBADO. Apesar de pensar no assunto há algum tempo, nunca se tinha atrevido a dar o passo. “Os meus pais diziam sempre que fazia mal. A minha irmã, apesar de estar por dentro do assunto, insistia que seria prejudicial para a saúde, por eu ser muito nova.” Quando voltou das férias começou por dizer a que queria reduzir o consumo, mas acabou por nunca mais voltar a tocar em carne. A estratégia foi simples: depois de perguntar qual era a refeição seguinte, arranjava uma alternativa para a carne ou o peixe e cozinhava-a ela própria. Não era a primeira mudança que fazia. Aos 10 anos Marianna começou a ler e a ver documentários sobre alterações climáticas e criou uma horta comunitária com os vizinhos. Aos 11 escreveu uma carta ao presidente da câmara de Annecy – cidade francesa onde a família viveu durante quatro anos – pedindo para que fossem
plantadas mais árvores na localidade. Nunca teve resposta, mas não desistiu: em abril de 2019 viu nas redes sociais que estava a ser organizada a greve climática estudantil e quis envolver-se. Desde então tem participado em manifestações e reuniões. Os pais estão “orgulhosos”, garante, mas há coisas que têm de ser bem negociadas. “Se eu quiser passar a noite em frente à Assembleia não consigo convencê-los. Não me proíbem, mas chegamos a um consenso: em vez de ficar lá até de manhã, volto para casa às 23h.” No dia a dia também há cedências. “Prefiro uma escova de dentes de plástico fabricada em Lisboa a uma de bambu que vem da Noruega. E, como ainda não sou eu que pago as contas é difícil fazer essas escolhas.”
Ana Beatriz Amorim 18 anos, a resistente
► Quando quis fazer resistência pacífica, ignorando as ordens das autoridades, na iniciativa de setembro, Ana Beatriz Amorim preparou-se para os vários cenários possíveis. Sabia que podia ser identificada ou até detida. Acabou por ser levada de uma rua para outra por dois agentes. “O polícia do lado esquerdo tentou partir-me o pulso enquanto me arrastava. O outro dizia-lhe para me juntar os cotovelos, que me magoaria mais”, conta à SÁBADO. Os pais foram apanhados de surpresa e avisados por outros familiares. Continuam sem concordar com o envolvimento da filha nos grupos, nas reuniões e nos protestos pelo clima. “O meu pai disse-me que estava a destruir a minha vida. Mas olho para exemplos como a Greta Thunberg e não vejo porque não podemos fazer tanto ou mais em Portugal.” A primeira batalha com a família aconteceu no início do ano, quando quis deixar de comer carne. “Desde pequena que não gostava do sabor. Queria fazer a minha comida mas os meus pais não deixavam, queriam que eu continuasse a comer carne. Até que me levaram a uma médica e, afinal, nem tudo estava mal, eu podia sobreviver sem esse alimento.” Fez a transição para o veganismo há menos de meio ano e só não houve mais resistência porque agora vive sozinha em Oeiras — estuda Bioquímica em Lisboa.“Percebo a resistência dos meus pais, mas sei que estou do lado certo da história, por isso levo tudo com muita calma”, garante. É exatamente essa a forma certa de lidar com um conflito deste género, diz Bárbara Ramos Dias. Os filhos devem “dizer exatamente o que pensam e pedir para serem ouvidos, sem qualquer tipo de punição”, explica à SÁBADO. Já os pais, devem “alertar para os riscos, os perigos e as consequências. Sem grandes discursos, ser frontal e usar frases curtas. Proibir não adianta, irão fazer muito pior”.
Inês Aleixo 16 anos, a porta-voz
► Tem apenas 16 anos mas é uma das porta-vozes da greve climática e há dois anos que é vegetariana. Seguiu o exemplo da mãe, mas nos dias em que fica em casa do pai é a adolescente que cozinha — hambúrgueres de lentilhas, alho-francês à Brás ou lasanha de soja são algumas das suas receitas favoritas. Ele não partilha a mesma alimentação, mas respeita. Ela faz o mesmo e nunca houve discussões sobre as refeições. Muitos dos alimentos vêm da horta dos ►
“O MEU PAI DISSE QUE ESTAVA A DESTRUIR A MINHA VIDA”, ADMITE BEATRIZ AMORIM, DE 15 ANOS
avós, que já estiveram com ela numa manifestação em Leiria, zona onde todos vivem. Os outros podem chegar do mercado das Caldas da Rainha, onde Inês vai todos os sábados com a mãe comprar fruta e legumes. As compras são, claro, transportadas em sacos de rede e de algodão.
Gil Rodrigues 19 anos, o influenciador
► Quando, em março de 2008, 100 mil professores se espalharam pelas ruas a pedir a demissão da então ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, Gil também estava lá, às cavalitas do pai. “Lembro-me de estar na R. de São Bento [Lisboa]. Ver toda aquela gente junta deu-me uma adrenalina e criou em mim um sentido de responsabilidade”, recorda. De regresso às Caldas da Rainha, onde vivia com os pais e a irmã, começou a fazer ativismo pelos direitos LGBT, laborais e estudantis. No 10º ano quis passar a ser vegetariano. Explicou aos pais os motivos da sua decisão e, com um discurso sustentado, acabou por convencer toda a gente a fazer o mesmo. “A minha mãe é professora de Filosofia e viu que não tinha argumentos para não concordar. O meu pai foi atrás, eliminou totalmente a carne e reduziu muito os derivados.” Fazem questão de o acompanhar nos momentos mais importantes: a mãe foi com ele à acampada de setembro em Lisboa.
Sofia Domingues 15 anos, a destemida
► Estava numa das datas deste ano do festival Out Jazz, em Lisboa, com a mãe, quando alguém ao lado atirou uma beata para a relva. Sofia chamou a atenção sem pensar nas consequências. Fê-lo ali e fá-lo com frequência sempre que vê comportamentos com os quais não concorda. “Tenho medo que um dia lhe batam”, conta a mãe, Alexandra Domingues, à SÁBADO. Até quando a melhor amiga a convidou para ir ao Jardim Zoológico lançou um sermão – ver animais em cativeiro é uma das coisas que a jovem não suporta. Tudo começou há cerca de ano e meio. Tal como em muitos casos, Sofia ficou chocada quando percebeu os níveis de metano envolvidos na criação de vacas e deixou de consumir esse alimento. Depois percebeu que havia frangos engordados de forma brutal e, em junho de 2019, também esse alimento saiu da sua lista. A mãe não é vegetariana mas adaptou-se facilmente. “Não faço duas refeições diferentes, comemos todos o mesmo. Quando ela não está, sou capaz de cozinhar frango para mim e para o irmão da Sofia [de 13 anos] ou então como carne aos almoços, fora de casa.” Se um dia quiser fazer parte de uma vigília durante a noite ou uma acampada, a mãe não será contra. “Não vou proibir, a causa é nobre. Se for preciso vou buscá-la a meio da noite.”
Bianca Castro 18 anos, a agitadora
QUANDO ALGUÉM ATIRA UMA BEATA AO CHÃO, SOFIA DIZ O QUE PENSA. “TENHO MEDO QUE LHE BATAM”, ADMITE A MÃE
► Apesar de a mãe ser vegetariana há mais de uma década, sempre teve carne em casa. Até que, aos 12 anos, a filha disse que também queria ser vegetariana. Bianca consultou o pediatra e uma nutricionista, fez análises e, à medida que as conversas sobre o tema eram mais frequentes, também o pai foi reduzindo o consumo de carne. Passado ano e meio eram todos vegetarianos. No entanto, o facto de viverem em Odemira, no Alentejo, tinha muitas limitações. “Na escola, antes de as refeições vegetarianas serem obrigatórias, só pedia os acompanhamentos. e as auxiliares todos os dias tentavam obrigar-me a comer o que havia. Desisti e comecei a levar o meu almoço”, conta à SÁBADO. Nos restaurantes também só comia omeletes. Quando se mudou para Lisboa para estudar, o ano passado, tornou-se vegan. Os pais já não acharam graça a esta alimentação mais restritiva, muito menos à vontade da filha de se juntar a movimentos de desobediência civil. “Essa parte é mais preocupante, se bem que compreensível dada a inação que se verifica em matérias de inequívoca urgência”, diz Fabíola Borges de Castro à SÁBADO, enquanto refere várias vezes o orgulho que tem na filha. ◯