JOÃO PEDRO GEORGE
A MINHA FILHA MAIS VELHA
nasceu prematura, com 670 gramas. Corria o ano 2008. Embora os prematuros se definam pela idade de gestação – nascimento antes de concluídas 37 semanas de gestação – e não pelo peso, este último é o que mais fortemente impressiona os pais. Um ser humano com cerca de meio quilo é uma imagem que nos persegue na memória. O corpo, com pouca gordura, possui o comprimento de um fio de esparguete e peso aproximado do de uma meloa; a cabeça tem a dimensão (mais ou menos) de uma bola de ténis; pele translúcida, percorrida por um emaranhado de veias finas como cabelos; músculos e tendões visíveis sob a epiderme, por vezes coberta de “lanugo” (penugem ligeira ou rala); escassa actividade física das pernas e dos braços, ambos da grossura dos dedos de um adulto; mãos pouco maiores que a unha do polegar; orelhas finas e moles; respiração irregular; reflexos de sucção e deglutição reduzidos. Incapazes de regular a temperatura corporal, e para se adaptarem à vida extra-uterina, estes bebés têm de permanecer, durante meses, dentro de incubadoras, uma espécie de câmaras ou berços aquecidos que tentam reproduzir as condições do útero materno. Daí as incubadoras serem fechadas e disporem apenas de uma pequena porta, por onde as enfermeiras procedem aos tratamentos e os pais podem falar com o filho – de preferência em voz baixa, pois os prematuros são susceptíveis ao ruído e à luz (para diminuir a luminosidade, é habitual ver as incubadoras tapadas com panos) – e pousar um dedo ou uma mão na cabeça dele, sem nunca os deslizar, pois o movimento das carícias, devido à imaturidade do sistema nervoso destes recém-nascidos, pode ser bastante agressivo.
Porque toda a vigilância é pouca, as funções vitais são monitorizados através de sensores ligados por fios ou cabos eléctricos a monitores que exibem informação diversa, sobre a temperatura, a humidade, a frequência respiratória, os níveis de oxigénio e de dióxido de carbono, os batimentos cardíacos, a pressão arterial (um prematuro está ligado a mais fios, quase, que uma central telefónica), que começam a apitar assim que algum desses indicadores sobe ou desce para determinados valores. A medicação, os nutrientes (nas primeiras horas ou dias, os grandes prematuros não costumam ser alimentados com leite) e os soros são-lhes administrados através de tubos, agulhas e cateteres espalhados em diferentes pontos do corpo (há bebés que têm cateteres na zona do pescoço, outros na zona do umbigo, da virilha, do tórax ou, menos frequente, da cabeça), que servem também para tomar ou retirar fluidos (sangue, por exemplo). Nestas circunstâncias, percebe-se que os bebés com extremo baixo peso (menos de um quilograma) contraiam e desenvolvam várias complicações graves, infecções e doenças com nomes espectrais, difíceis de soletrar, como hidrocefalia (acumulação de líquido cefalorraquidiano no cérebro, resultante de hemorragias intraventriculares, e que, ao aumentar a pressão intracraniana, pode provocar aumento e inchaço do crânio); enterocolite necrotizante (infla
mação da superfície interna do intestino que pode originar, nos casos mais graves, a sua necrose, conduzindo mesmo à morte do bebé); displasia broncopulmonar (os ventiladores, que ajudam os bebés a respirar, podem danificar os pulmões, facilitando as pneumonias, ou inclusivamente provocar cegueira); retinopatia (desenvolvimento anormal ou desorganizado dos vasos sanguíneos que irrigam a retina, a qual, nos casos mais preocupantes, pode desprender-se e causar a perda de visão do bebé); icterícia (coloração amarelada da pele e dos olhos, devido à concentração elevada, no sangue, de bilirrubina, um pigmento produzido pelo organismo em resultado da destruição normal dos glóbulos vermelhos e removido pelo fígado).
Um bebé de 24 semanas custa ao hospital ou maternidade, em média, entre 2 mil e 4 mil euros por dia. Se sobreviver e o internamento durar, por exemplo, 90 dias, o Estado desembolsará entre 180 e 360 mil euros. Para todos os pais de bebés prematuros, o sistema de saúde pública universal representa a esperança de que os seus filhos talvez consigam enfrentar, sem sequelas graves ou profundas, as terríveis dificuldades inerentes à prematuridade extrema. Nos países com governos ultraliberais, que defendem a privatização e mercantilização dos hospitais, que apostam maciçamente nos seguros de saúde, em que o Estado não assume um papel central na organização e na gestão do sistema de saúde, onde os cidadãos são tratados como consumidores e como geradores de custos que é preciso reduzir e submeter a cortes drásticos, nesses países, dizia, a sobrevivência dos bebés prematuros está muito longe de ser garantida. É o caso dos Estados Unidos, onde a prematuridade é a causa principal de morte nos recém-nascidos.
O sistema de saúde pública dos EUA, uma das economias mais desenvolvidas do mundo, apresenta graves lacunas ao nível dos cuidados primários, em particular no investimento obstétrico prévio (o que significa mais gravidezes pouco vigiadas e mais gravidezes indesejadas), apresenta uma taxa elevada – 12% – de nascimentos prematuros, o que coloca os norte-americanos no 131º lugar ao nível mundial, ao lado de países como a Somália, a Tailândia e a Turquia, e ligeiramente abaixo da República Democrática do Congo.
Nos países europeus com sistemas de saúde pública universal, a taxa média de bebés que nasce antes das 37 semanas é muito mais baixa – 7,7% – quando comparada com a dos EUA (na Europa, a Áustria e a Suíça são os países com as taxas mais elevadas, com cerca de 10%). Em Portugal, onde a taxa de prematuros ronda os 8%, há cada vez mais bebés nascidos antes do tempo que conseguem ter um desenvolvimento saudável e com qualidade de vida (só 20% é que fica com sequelas ou doenças crónicas).
No nosso país, por determinação legal, os hospitais privados não podem tratar prematuros com menos de 32 semanas de idade de gestação, pelo que estes têm de ficar obrigatoriamente ao cuidado do Serviço Nacional de Saúde. Exponho as minhas dúvidas: numa sociedade totalmente liberalizada, desregulamentada e privatizada, como defendem a Iniciativa Liberal e outros partidos, as seguradoras estarão dispostas a cobrir as despesas de saúde com estes bebés? Se sim, quanto custará um seguro desses e quantos cidadãos o poderão pagar?
O mercado é essencial e até mesmo decisivo na criação de riqueza. Porém, nem tudo pode ser resumido a um negócio. Há coisas que só se alcançam com esforços colectivos, que não se conseguem dando prossecução, apenas, aos interesses privados. A sobrevivência de um bebé prematuro, como a minha filha, hoje com 11 anos, que vive, estuda e se diverte como qualquer criança da sua idade (apesar de ter sofrido algumas das complicações acima apontadas), é uma delas.
A dedicação pelo serviço público e o verdadeiro sentido do dever que brotam das almas generosas que todos os dias, nas unidades de cuidados intensivos neonatais do SNS, curam e salvam estes seres humanos minúsculos, não se agradecerá nunca suficientemente. Por isso, porque o ultraindividualismo constitui um retrocesso civilizacional, não me cansarei de repetir, todos os dias, a mesma coisa: o Estado de bem-estar será sempre uma das mais belas e mais importantes conquistas da humanidade.W