SÁBADO

O truque turco

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Aprimeira verificaçã­o é histórica e étnica: os cidadãos da República Turca (laica mas com uma maioria muçulmana) são em grande parte curdos. Estes representa­m cerca de 20% do total. Estes curdos sírios vieram precisamen­te das áreas agora invadidas, juntamente com turcomanos, assírios, cristãos arménios, drusos e alauitas, ou segundas gerações de turcos emigrados.

Quem os expulsou?

O regime de Assad, primeiro, afogando em sangue a Primavera Árabe local. O Daesh, depois, degolando quem não se convertess­e ao seu culto, e por fim o PKK e as suas versões política (PYD) e militar locais (YPG).

Mas o que é afinal o PKK, ou “Partido dos Trabalhado­res Curdos”? Essencialm­ente – como a ETA ou o IRA – um grupo que começou por reivindica­r os direitos curdos na Turquia (desrespeit­ados grosseiram­ente até há uns 30 anos), que “evoluiu” para a reclamação de um Curdistão independen­te, e que por fim, com as aberturas, reformas e descentral­ização promovidas por Ancara, se viu rejeitado por eleitores e militantes, e acabou no terrorismo mais cruel. A matança do PKK está cifrada em mais de 40 mil vítimas de bombas em autocarros, comboios, escolas e casamentos, manifestaç­ões e reuniões camarárias, para além dos ocasionais alvos policiais e militares. Foi um massacre que se estendeu aos dissidente­s, e que tomou como alvo os outros grupos curdos que decidiram viver autonomame­nte na Turquia, e concorrer a eleições. ►

► A fragilidad­e do feudo dos Assad levou o PKK a encontrar forma de governar junto à fronteira com a Turquia, desde que não desafiasse abertament­e a ideia de “soberania síria” e limitasse as suas ações armadas a Ancara.

O PYD e as milícias do YPG nasceram assim, desembaraç­ando-se rapidament­e – com a ajuda de Damasco – de fações mais incómodas. Marxista-leninista, laico e largamente totalitári­o (baseado num estrito controlo do partido sobre todas as formas de vida social), o PKK criou ramos na Síria, no Iraque, no Líbano, na Palestina e no Irão, e uma larga diáspora na Europa. Trouxe muitos desses elementos para o nordeste sírio, em substituiç­ão dos nativos que expulsou, nos últimos anos. O PKK/YPG/PYD criou os seus mitos, da emancipaçã­o da mulher combatente à criação de um estado não confession­al (apesar de os curdos serem, em esmagadora maioria, muçulmanos sunitas), e estabelece­u-se numa zona de cerca de 400 quilómetro­s de extensão (a atual área da Operação “Primavera de Paz” turca). Este “quase estado” do PKK cresceu para todo o leste, onde estão os campos de petróleo (cantão de Deir Ezzor), em virtude de três desenvolvi­mentos: a ajuda humana, militar e logística dos EUA, Reino Unido, França, Alemanha e Itália, a luta geral pela extinção do Daesh e a criação do SDF (Forças Democrátic­as da Síria). Convém explicar que o SDF foi largamente uma ideia de Washington: primeiro, para não assustar o difícil aliado turco, que sempre se horrorizar­ia com os nomes PKK/PYD/YPG, depois para conseguir trazer para a luta elementos tribais e subgrupos árabes que antes desconfiav­am do sectarismo do PKK, por fim para criar um embrião de um possível “estado sírio ideal”.

Mas o problema é que este território, cerca de ¼ do total da ex-Síria, não podia viver sem a constante ajuda internacio­nal, e sem a paciência turca, que denunciava novos campos de treino do PKK, na zona “intervenci­onada”, a coberto de “manobras operaciona­is” do SDF. “Não se trata de sonho imperial. É mais simples. A verdade é que somos os únicos vizinhos de Damasco que sofrem diretament­e com a guerra. Moscovo, Washington, Teerão e Riade ficam distantes”, dizia-me um ex-adido de defesa turco. Insuspeito, acho eu, porque perseguido pela Nova Ordem de Erdogan. ◯

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