O CÃO FICA CÁ EM CASA... ... O JUIZ VAI DECIDIR ... NEM PENSES, FICA COMIGO...
Considerados seres vivos com sensibilidade desde 2017, os animais de companhia podem ser disputados em tribunal em processos de divórcio. A maioria evita-o.
Há dois anos que Ana F. não vê o pastor-alemão, de seis anos, que adquiriu com o ex-marido. O primeiro cão do casal ficou registado em nome do então companheiro e, quando o casamento terminou, no final de 2017, os dois concordaram que não fazia sentido alterar o registo. “Tenho saudades. Era um cão muito doce”, confessa Ana F. à SÁBADO. Com ela ficou Grace, uma rafeira de quatro anos. “É um doce com as pessoas, mas com os outros cães é mais problemática. Foi encontrada abandonada numa serra, passou fome, e é muito territorial”, descreve. O casal, sem filhos, ainda ponderou não separar os cães. “Pensámos no regime de tutela partilhada, ficavam 15 dias ou um mês em casa de cada um. Mas não ficámos propriamente grandes amigos.” Ainda assim, não recorreram aos tribunais. Depois de se separarem, saíram da moradia com quintal em que viviam e mudaram-se ambos para apartamentos. “Vim para o centro de Lisboa e não conseguia passear os dois ao mesmo tempo – são animais com 40 e 30 quilos. Cheguei a sair com um de cada vez, mas o outro ficava a ladrar em casa.” Ana tem esperança de que um dia voltará a conviver com o pastor-alemão que ajudou a criar. “Espero que, com o passar do tempo, possamos encontrarmo-nos para os cães poderem brincar.”
Apesar de o Código Civil determinar “a necessidade de regulação da guarda dos animais de companhia”, são poucos os casos de disputa de animais que chegam a tribunal. Mas há alguns: o Juízo de Família e Menores de Mafra tem em mãos o destino de uma cadela pit bull, Kiara, disputada por um casal de ex-namorados. “Muitas vezes, as partes dizem que não existem animais para abreviar o processo”, explica Sónia Henriques Cristóvão, advogada especialista em direito dos animais.
Quando não chegam a acordo, os tribunais recorrem a veterinários com experiência em comportamento animal. A advogada conhece casos em que foi definido um sistema de visitas e divisão de despesas. “Mas se houver incumprimento, não é claro qual o tribunal a que se deve recorrer, se o de questões de família, se a outro. É uma lei recente.” A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, não recorreu aos tribunais para ficar com a tutela de Pop. O labrador costuma acompanhá-la durante o dia de trabalho, mas tem outro dono e, por vezes, dorme fora de casa. As visitas foram decididas por mútuo acordo
TRIBUNAIS RECORREM A VETERINÁRIOS QUE EMITEM UMA OPINIÃO SOBRE SE O ANIMAL DEVE MUDAR DE RESIDÊNCIA
quando, em 2015, o casal se separou. “Decidimos que o Pop ficava comigo. Mas ele vê o cão quando quiser e se viajo de avião, ele fica com o dono”, diz à SÁBADO, Ana Rita Cavaco. O labrador foi adotado pelo casal em 2014 quando tinha 9 meses e ficou registado em nome da bastonária. Cada um paga as despesas pessoais com a alimentação, mas já dividiram o valor de uma cirurgia. “O Pop fez uma rotura do ligamento cruzado do joelho quando passava o fim de semana com o outro dono, foi operado e cada um pagou metade. Foram quase 3 mil euros [no total].”
Animais nas ruas
Há separações que põem em risco a vida dos animais. Depois de os donos se separarem, Brown, um cruzamento entre labrador e beagle, viveu um ano na rua. O animal tinha sido adquirido por um casal com dois filhos, para ajudar o mais novo, que tinha dificuldades de concentração. “Não foi bem pensado, o Brown era um pouco louco – fruto das poucas regras impostas em casa”, conta Tânia Carvalho, treinadora de cães e proprietária do alojamento canino TC – Treino Canino. Ainda assim, o casal adquiriu outro animal, uma cadela labrador.
Quando se separaram, em 2017, a mulher levou a cadela e os dois filhos, e o marido ficou com o Brown – por pouco tempo. “Ele foi viver para a casa do pai e a energia do cão criou problemas. Pediu-me se podia deixá-lo no alojamento”, conta Tânia Carvalho. A treinadora avisou que tinha de ser temporário. “Há pessoas que abandonam os animais nos hotéis caninos.” Ao fim de um mês, enviou a conta e o casal colocou o Brown para adoção nas redes sociais. “Imagino que para o filho mais novo, para quem o Brown tinha sido adquirido, o corte de relações repentino tenha causado sofrimento”, diz. Dois meses depois de ter sido deixado no hotel para cães, o Brown foi adotado com a ajuda da treinadora. Ao fim de uma semana, fugiu. “Fui eu que espalhei cartazes em clínicas veterinárias e deixei o meu contacto na base de dados SIRA [Sistema de Identificação e Recuperação Animal].” Ao fim de um ano, o telemóvel tocou. Uma criança tinha encontrado o cão na escola e tinha-o levado para casa. O Brown terá sido alimentado durante o tempo que viveu na rua e não estava maltratado. O homem que o tinha adotado já não podia ficar com ele, mas o primeiro dono aceitou-o. “O Brown reconheceu-o logo e fez uma festa. Foi uma pena o cão ter passado pelo que passou.” ◯
“HÁ PESSOAS QUE ABANDONAM OS ANIMAIS NOS HOTÉIS CANINOS “, DIZ A TREINADORA TÂNIA CARVALHO