SÁBADO

LEONARD COHEN: O HOMEM E A LENDA

Sylvie Simmons teve acesso direto a Cohen e entrevisto­u os amigos, os produtores, os músicos e as mulheres da vida dele. I’m Your Man – A Vida de Leonard Cohen está a ser considerad­a a biografia definitiva do ícone. Porquê?

- Por Ângela Marques

começa quando um motorista sai de um carro e abre a porta traseira deste para deixar sair Leonard que, nos braços da mãe, transpõe os degraus diante da porta principal e entra no lar paterno. O leitor vê uma coisa mas, querendo, percebe já outra. É que quando começa assim, o livro apresenta-se: com a alusão de que é já o recém-nascido Cohen quem transpõe as escadas, a autora, Sylvie Simmons, começa a explicar-nos como vê a lenda para lá do homem. E o “homem cortês, elegante, com modos de antigament­e”, que Sylvie – reputada jornalista de música – descreve no prólogo, surge assim ao leitor como um recém-nascido destinado a ser grande (de resto, mais à frente no livro, será o próprio Leonard a confessar que viveu a infância a sentir-se predestina­do).

Cohen é uma página em branco (de 615 que tem o livro) que começa a ser escrita a 21 de setembro de 1934, num bairro abastado de Montréal, no Canadá. Estamos entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial e é nesse contexto social e político que começamos a enquadrar a infância daquele que viria a ser um dos mais influentes artistas mundiais ao longo de 50 anos de carreira. Filho de um próspero judeu canadiano e de uma judia russa, 16 anos mais nova do que o marido e filha de um rabi, Leonard cresceu bem: “Ele nunca negou ter nascido em berço de ouro, nunca repudiou as suas origens, nunca rejeitou a família, nunca mudou de nome, nunca fingiu ser aquilo que não era”, escreve Sylvie.

A família de Leonard era rica, prestigiad­a e relevante na comunidade (tinha, inclusivam­ente, um passado de edificação de sinagogas). Mais do que isso: a família permitia-lhe viver com especial conforto tempos especialme­nte conturbado­s. “Leonard viveu os anos da primeira infância sem um sobressalt­o, fazendo tudo o que lhe era exigido – lavar bem as mãos, portar-se como deve ser, vestir-se a rigor para o jantar, ter boas notas na escola, jogar na equipa de hóquei, engraxar os sapatos e alinhá-los cuidadosam­ente debaixo

Do dia do nascimento ao dia da morte, 615 páginas contam a história do homem baixo que se fez um dos maiores da música no mundo

da cama, de noite –, sem nunca exibir indícios preocupant­es de santidade nem de génio”, escreve a biógrafa. A morte do pai, em 1944, quando Leonard tinha apenas nove anos, foi o momento mais difícil da sua infância — mas terá sido o mais definidor da sua carreira. Depois do velório, o rapaz terá entrado no quarto do pai para lhe roubar um laçarote. Tê-lo-á cortado depois com uma tesoura para dentro esconder um papel no qual teria escrito alguma coisa. “No dia seguinte, levando a cabo uma cerimónia da sua lavra, o rapaz escavou um buraco no jardim e ali enterrou o laçarote, debaixo da neve. Leonard afirmou depois que aquele foi o primeiro texto que escreveu na sua vida.”

Em I’m Your Man - A Vida de Leonard Cohen, que a espaços se parece mais com um romance do que com uma biografia, segue-se a entrada na universida­de, a primeira banda, a mudança para Nova Iorque e o primeiro amor: Georgianna Sherman (a quem Leonard chamava Anne ou Annie). Com este primeiro amor chega também o primeiro desgosto amoroso, seguido de outros pequenos amores e muitos desgostos. Ao fim de 100 páginas, a vida de Leonard começa a animar. A sua chegada à ilha grega de Hidra e o seu encontro com Marianne (“Houve musas inspirador­as antes de Marianne na poesia e nas canções de Leonard, e houve musas inspirador­as depois dela; mas, se houvesse um concurso, a vencedora, sem dúvida a preferida do público, seria Marianne”, diz Sylvie) são como se o leitor finalmente se sentasse ao lado da autora a ouvi-la. Sobre a autora desta biografia vale a pena dizer o seguinte: nascida em Londres, foi viver para Los Angeles, onde começou a escrever sobre rock, já lá vão 40 anos. Conhece os meandros da indústria, os desejos dos artistas e as necessidad­es do público. É autora de livros de ficção e de não ficção – como as biografias de Serge Gainsbourg e Neil Young, elogiadas pela crítica. Não tão elogiadas, contudo, quanto a biografia de Leonard Cohen. “I’m Your Man é a grandiosa e aprofundad­a biografia que Leonard Cohen merece... um fascinante trabalho feito com amor”, considerou o The New York Times. “Esta é a biografia há muito devida a Leonard Cohen, e que torna inúteis todos os livros escritos anteriorme­nte sobre ele”, lapidou a Rolling Stone. ◯

Depoimento­s de Nick Cave e Iggy Pop enriquecem o livro, que cita sem perder o tom de romance — Sylvie entrevisto­u dezenas de pessoas que conviveram com Cohen mas cose tudo com subtileza

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Os primeiros poemas de Cohen e algumas fotos do seu arquivo acompanham a biografia
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SYLVIE SIMMONS Biografia • Editora Tinta da China €27,90

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