SÁBADO

Ângela Marques

- ÂNGELA MARQUES

Eu: “Para mim é um bife de vazia mal passado com molho de pimenta.” Ela: “Vai querer batatas em gomos ou em palitos?” Eu: “Palitos, por favor.” Ela: “E vai desejar mais algum acompanham­ento?” Eu: “Uma dose de bom senso, tem?” Ela: “Deixe-me perguntar à cozinha e já lhe digo, sim?” O nosso diálogo, muito Ally McBeal da minha parte, podia ter acontecido assim. Não aconteceu. A história que se segue é a prova disso. Em minha defesa, naquele dia, descontand­o o facto de querer comer um animal com batatas fritas ao jantar, as minhas intenções eram as melhores. Assim, eu tinha pedido um bife com molho de pimenta, tinha sido alertada para a potência da pimenta, tinha relevado, e tinha visto uma jovem empenhar-se em anotar o meu pedido tal qual tinha sido feito. Só que quem vê sorrisos não vê intenções, não é? E quem diria que, em cima de um bife, duas cidadãs tranquilas poderiam discutir, com algum azedume, as bases fundadoras da Humanidade? Atirando já o suspense pela janela: quando o jantar terminou, metade do meu bife vivia no purgatório das carnes vermelhas (a borda do prato), pronto para voltar para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Quando ela fez a pergunta suicida “Estava tudo bem com o vosso jantar?”, eu fingi que seguia a conversa da mesa do

QUANDO ELA FEZ A PERGUNTA SUICIDA, EU FINGI QUE SEGUIA A CONVERSA DA MESA DO LADO

lado. O sangue já tinha sido derramado e eu não queria chorar sobre ele. Incautas, as minhas amigas respondera­m que “sim, mas”. Sentia-a baralhada, mas o “mas” estava bem na cara dela – o molho de pimenta, por mais caráter que tivesse (e tinha) não escondera o óbvio: o meu bife era um banquete de gordura e nervos. A caldeirada: onde nós vimos um jantar estragado, ela viu uma oportunida­de para culpar o cliente. “Minha querida, quando é assim tem de dizer que nós trocamos…” Sentindo o gosto da condescend­ência, respondi-lhe com uma pergunta: “Dizer-lhe que não me devia ter trazido gordura e nervos para a mesa?...” Com a rudeza de um sumo detox, ela respondeu: “Quando é assim o cliente tem de dizer.” Com a fraqueza do jejum imposto, só tive forças para concluir: “Na vida é tudo uma questão de bom senso, não é?” ◯

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