Entrevista Luís Mendonça de Carvalho, o investigador que é especialista em plantas
As florestas foram dizimadas para construir caravelas, fomos buscar à China a laranja doce e os romanos e árabes mudaram a flora portuguesa. E há arvores que vivem 3 mil anos, diz professor universitário.
Éum dos maiores especialistas portugueses em etnobotânica. Professor universitário e visiting scholar na Universidade de Harvard, nos EUA, foi convidado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos para escrever o ensaio, que saiu agora em livro, As Plantas e os Portugueses – Património, Tradição e Cultura. Falou com a SÁBADO ao telefone a partir de Beja, onde trabalha e leciona – é ainda investigador no Instituto de História Contemporânea, em Lisboa.
A agricultura chegou a Portugal há 7.500 anos com a chegada dos povos do Mediterrâneo…
…é um campo aberto, vai-se reescrevendo à medida que novas descobertas aparecem. A parte mais importante da agricultura é que não há cultura sem ela. Foi ela a permitir a génese das civilizações. Para atingir uma complexidade maior há que ter um fluxo contínuo de comida e a agricultura acaba com a imprevisibilidade desse fluxo. Permite terminar a vivência nómada. Há centenas de plantas que podem ser cultivadas, mas as que têm mais interesse são os cereais e as leguminosas, porque são fontes de carboidratos e de proteínas. Na China era arroz e soja. Em África era o sorgo e o feijão-frade. No Crescente Fértil era o trigo e a cevada, e depois as ervilhas, lentilhas, favas. Na América era o milho e o feijão. Na parte mais sul, a batata. É sempre necessário essa fonte de proteínas. A carne, as pessoas não a consumiam como nós o fazemos agora. Eram plantas.
Antes da chegada da agricultura, que relação com as plantas tinham os povos que aqui viviam?
Eram nómadas, que podiam ter alguma fase sazonal de fixação. Viviam da caça, com a imprevisibilidade e o esforço que isso traz, e da colheita de plantas silvestres. Acabavam por sobreviver com uma dieta bastante ascética, à base de carboidratos, que no nosso país eram basicamente bolotas. Havia algumas variedades de pera selvagem, amoras, abrunhos silvestres. Nada do que estamos habituados. Às vezes as pessoas têm algum preconceito com as plantas exóticas. Confunde-se infestantes com invasoras e com exóticas.
“Os povos daqui só comiam bolotas. Havia ainda pera selvagem, amoras e abrunhos”
Qual é a diferença?
Infestante é por exemplo num campo onde se está a cultivar cereais aparecerem papoilas. Não é bem visto, não as querem lá, mas a papoila está a reclamar um território que era dela. Mas não tem caráter invasor, não vai destruir aquilo. As plantas invasoras são exóticas que aparecem cá e não têm predadores. Por exemplo, o chorão-das-praias, as acácias, o jacinto-de-água. Alteram o meio físico e impedem que outras espécies germinem. E são difíceis de tirar.
Por definição, uma invasora não tem efeitos benéficos?
Estou a lembrar-me por exemplo das figueiras-da-índia. Às vezes vê-se o fruto no supermercado. É invasora, mas pode ser controlada e pode-se tirar os frutos. As acácias foram introduzidas em Portugal porque eram bonitas, por causa das flores amarelas. Repare que em Portugal basicamente todas as plantas que usamos na alimentação são exóticas. Trigo, oliveira, macieira, pessegueiro, amendoeira, milho, tomate, alfarrobeiras, tabaco, café, chá. É tudo exótico, mas sem um caráter invasor.
Qual é a diferença de percurso até cá chegar entre a laranja doce e a amarga?
Já reparou que no Alentejo, em algumas aldeias, há ruas com laranjeiras. São amargas. Usam-se para fazer doce de laranja marmelade, que os ingleses usam ao pequeno-almoço. Quem introduziu as laranjas amargas na Península Ibérica foram os árabes. Mais tarde, no século XVI, os portugueses trazem da China as laranjas doces, que depois foram comercializadas para a Europa. Daí o nome da laranja estar associado ao nome de Portugal em alguns contextos culturais.
Nos países árabes e em alguns europeus do leste, Portugal e laranja têm o mesmo nome.
Sim. No caso da laranja, repare no caso dos Açores, que desde o início da colonização tiveram ciclos. Primeiro de cereais. Depois, o “pastel”, que é uma planta da família das couves, de cujas folhas se podia extrair um corante de cor azul. Foi muito desejado na Europa, mas depois veio o índigo [planta de onde se extrai o corante anil, de cor azul, que se popularizará mundialmente nas calças de ganga], muito mais barato e eficaz e acabou com o pastel. Depois há o ciclo da laranja, que morre no século XIX, por causa das doenças e pragas e porque começam a cultivar com maior vigor no sul de Espanha.
Estabelece no livro três fases do coberto vegetal [flora] em Portugal: antes dos romanos, com os romanos e com os muçulmanos. Pode caracterizar estas fases?
Antes dos romanos havia uma colonização incipiente e parte do território estava coberto de florestas primárias. Havia os castros com campos à volta e uma agricultura bastante ascética. Os romanos trazem uma agricultura diversificada e um uso do solo mais extenso. Quando se olha para aqueles montes alentejanos, pequenas herdades dispersas, era a forma como os romanos colonizaram parte do nosso território. Os romanos reintroduziram o castanheiro, que se tinha extinguido. Os árabes introduzem uma cultura mais sofisticada de aproveitamento de águas, como por exemplo as noras.
Q Essas transformações são sobretudo no litoral?
Sim, o resto continuava coberto por floresta. As florestas são muito densas até ao Renascimento. O esforço de obter madeira para as caravelas, nos Descobrimentos, tem efeitos catastróficos. O carvalho era importante pela qualidade e por isso as florestas de carvalho foram dizimadas. É por isso que no século XIX a floresta ocupava menos de 10% do território. Onde encontra hoje florestas de carvalhos? Só pequenos bosques.
Para usar uma linguagem de hoje, foi quase um crime ambiental?
Na época, isso não era percetível. Ao acabar com uma floresta – e isso vê-se agora no Brasil – acaba com todo um ecossistema que dependia das árvores. O urso extingue-se em Portugal também porque o seu habitat foi tão alterado que deixou de ter alimento e refúgio dos caçadores. Ainda hoje, no norte, existem muros circulares que são vestígios desses tempos – esses muros circulares são para proteger as colmeias dos ursos.
Estas percentagens de eucalipto (26%), pinheiro-bravo (23%) e sobreiro (23%) são desejáveis?
À partida teria mais simpatia por árvores autóctones, como o sobreiro – que tem a importância que tem hoje por causa das rolhas de cortiça e são elas que mantêm o montado. Quando vemos por exemplo floresta de monocultura, em princípio não são amigas da biodiversidade. O pinheiro-bravo não tinha a expressão que tem hoje, era residual. O eucalipto vem da Austrália, chega à Europa no século XIX e a Portugal de forma intensa no século XX, e chega essencialmente para pasta de papel.
Em 1938 é criada legislação para árvores de interesse público. O que motivou esse passo?
Basicamente para preservar alguns locais em termos estéticos. Foi nascendo a perceção de que as árvores são também património estético. Quando há árvores centenárias numa alameda e são cortadas, o ambiente cultural daquele espaço fica drasticamente alterado e se o quiser restituir teria de se esperar centenas de anos, e a nossa vida não se pactua com essa espera. Fomos pioneiros na Europa nessa lei de conservação. Há árvores que são de interesse público e que são protegidas.
Há uma lista pública?
Sim, sim. Basta procurar no Google por lista de árvores protegidas [Registo Nacional do Arvoredo de Interesse Público, site do ICNF]. Não se pode fazer nada com essas árvores – nem num perímetro de 50 metros – sem autorização do Estado. Quando estão em terrenos privados, os proprietários não gostam muito. Repare que qualquer pessoa pode propor a classificação de uma árvore. Se passar por um local e vir uma árvore magnífica pode propor ao Estado que a proteja. É enviada uma equipa de serviços técnicos, que elabora um relatório. A árvore tem que ter algo extraordinário – o porte, a idade, a história cultural. Há pouco falava dos proprietários dos terrenos. Eles têm de aceitar a classificação, mas depois ficam condicionados, qualquer coisa que possam fazer têm de pedir autorização. Mas isso é uma coisa mínima para um proprietário mais esclarecido. Até gostam.
Já propôs?
Já. Era uma árvore recente, com cerca de 20 anos. Inicialmente os serviços florestais não aceitaram, mas alguém leu o relatório e percebeu que era a primeira árvore daquela espécie que tinha entrado na Península Ibérica. Houve parecer positivo e está protegida. É um pinheiro-de-wollemi, que está aqui em Beja.
A mais antiga árvore portuguesa é a Oliveira de Mouchão [3.350 anos, em Cascalhos, Abrantes]. Como é possível um ser vivo existir mais de 3.000 anos?
Isso tem a ver com a nossa perceção do tempo. Medimos as coisas de acordo com o nosso tempo de vida. Nas plantas, em última análise, tem a ver com genes, com o património genético daquela espécie que a tornou tão bem preparada. E as plantas também têm tecidos que nós não temos, os meristemas, que são potencialmente imortais. Digo imortais sob o nosso prisma – viver 3.000 anos é quase a imortalidade para nós. É o caso das oliveiras e das sequoias.
Porque é que a nossa esfera armilar tem folhas de loureiro?
Tem a ver a simbologia ancestral do loureiro, que está ligado ao valor, à glória. Vem desde Antiguidade grega. Era uma planta consagrada a Apolo. Era usada para coroar os vencedores nos Jogos Píticos [um dos quatro Jogos Pan-Helénicos, a par dos Nemeus, Ístmicos e Olímpicos], daí os louros. Ainda hoje se diz que uma pessoa foi laureada com o prémio Nobel. A expressão laurear tem a ver com alcançar níveis de excelência muito elevados. Napoleão quando se fez coroar imperador, a coroa era de louros – em ouro. ◯