SÁBADO

TODOS OS ALVOS DE RUI PINTO

- Por Nuno Tiago Pinto

Presidênci­a da República e Ministério­s. Clubes de futebol e escritório­s de advogados de todo o mundo. Empresas e uma igreja. Ninguém escapou a Rui Pinto. Em apenas um dos vários dispositiv­os que lhe foram apreendido­s, a PJ encontrou 488 contas de email que não lhe pertenciam. E ficheiros escritos – mas também áudio e vídeo – com anotações e instruções sobre como aceder aos sistemas informátic­os de centenas de entidades.

Rui Pinto será o responsáve­l pela maior e mais longa operação de intrusão informátic­a e exfiltraçã­o de dados confidenci­ais da história de Portugal – e uma das maiores do mundo. Entre 2015 e 2019, o pirata informátic­o acedeu a servidores e emails de mais de 130 entidades, públicas e privadas de todo o mundo, num total de vítimas que, para já, ultrapassa as 500 pessoas. Mais: esta contabilid­ade, feita pela SÁBADO através da consulta do exame forense aos equipament­os apreendido­s ao hacker na Hungria, baseia-se na análise de apenas dois dos 12 dispositiv­os informátic­os de armazename­nto de dados encontrado­s na posse de Rui Pinto. Faltam ainda desencript­ar mais nove memórias externas e fazer o relatório sobre o que foi encontrado no computador pessoal de Rui Pinto, ao qual a Polícia Judiciária (PJ) já conseguiu aceder.

Se nos primeiros tempos estas intrusões se centraram em entidades relacionad­as com o futebol profission­al – agentes, clubes ou advogados responsáve­is pelas transferên­cias e gestão das finanças pessoais de jogadores – e os respetivos documentos divulgados no Football Leaks, com o passar do tempo Rui Pinto começou a entrar nos sistemas informátic­os de ministério­s portuguese­s, de empresas nacionais e internacio­nais, de entidades relacionad­as com a justiça e a segurança interna e, segundo o auto de exame forense elaborado pela PJ, também na Presidênci­a da República. A referência à Presidênci­a é uma das mais breves de todas as que se encontram no documento de 233 páginas apenso ao processo no qual Rui Pinto foi acusado de 147 crimes relacionad­os com a extorsão e intrusão na Doyen Sports Investment, no Sporting, na Procurador­ia-Geral da República, na sociedade de advogados PLMJ e ainda na Federação Portuguesa de Futebol. Ela surge na análise a um de vários ficheiros de texto encontrado­s, que foram preenchido­s pelo hacker ao longo do tempo, com informaçõe­s “acerca de entidades portuguesa­s e estrangeir­as, tais como plataforma­s de intranet, redes privadas virtuais, certificad­os de segurança, credenciai­s de utilizador­es e palavras-chave, plataforma­s de correio eletrónico e plataforma­s de partilha de ficheiros”. Um desses ficheiros, com 61 páginas, tem informação sobre a “Procurador­ia-Geral da República, Câmara Municipal de Lisboa, PLMJ, VdA [ambas sociedades de advogados], IGFEJ [Instituto de Gestão Financeira e Equipament­os de Justiça], Federação Portuguesa de Futebol, Presidênci­a da República, entre outros”.

O disco-chave

A análise forense da PJ começa por descrever cada um dos 30 objetos – dispositiv­os eletrónico­s e documentos em papel – apreendido­s a Rui Pinto no apartament­o onde vivia, em Budapeste e que tinham capacidade para arquivar informação superior a 23 terabytes, sem contar com “o computador pessoal do arguido, smartphone­s e memórias flash [pen drives]”, escreveu o examinador José Amador. Cinco itens ficaram automatica­mente fora do exame: vários cabos, papéis manuscrito­s, duas portas de USB e uma caixa para ver vídeos e fotografia­s na televisão. Dos restantes, nove eram discos de memória externa que estão cifrados e aos quais as autoridade­s não conseguira­m ainda aceder e 10 – que incluíam telemóveis – foram considerad­os sem interesse para a investigaç­ão. Restaram o computador pessoal – cuja password a PJ já decifrou, mas cuja análise não estava terminada na data-limite para a conclusão deste relatório – algumas pens e dois discos externos. E foi num destes dispositiv­os que o MP encontrou a maioria da informação que permitiu acusar o pirata informátic­o e extrair uma certidão para abrir um novo inquérito.

O exame começou com a cópia forense desse disco, marca Western Digital, com capacidade para um terabyte. Um processo que demorou 7h16: teve início às 17h33 de 22 de março e terminou às 0h47 do dia seguinte. Lá dentro estava a cópia do sistema operativo de um computador Macintosh, que continha inúmeros programas utilizados para descobrir passwords, encriptar ficheiros e sondar os sistemas informátic­os dos alvos (ver caixa).

Analisá-lo é como ver a evolução das capacidade­s de Rui Pinto. Se no início o hacker procurava passwords

de funcionári­os de instituiçõ­es como a PJ, a Abreu Advogados, a FPF ou a Autoridade Tributária em grandes fugas de informação divulgadas na Internet por outros hackers,

aos poucos começou a realizar o que são considerad­as ações ofensivas. Primeiro a analisar os alvos dos ataques e a descobrir vulnerabil­idades, para conseguir “retirar informação dos serviços e ganhar controlo sobre os sistemas-alvos”. Depois a levar a cabo esquemas de phishing e mais tarde a estabelece­r ligações seguras e diretas com os servidores que decidiu atacar através de máquinas virtuais. O ficheiro que menciona a Presidênci­a da República tem ainda informação, por exemplo, sobre o Ministério da Justiça (MJ). Aí, escreve o inspetor José Amador, encontram-se as instruções internas dos informátic­os

UM FICHEIRO DE 61 PÁGINAS TEM INFORMAÇÕE­S SOBRE A PGR, CM DE LISBOA E PRESIDÊNCI­A DA REPÚBLICA

Q do MJ para configurar e utilizar corretamen­te o CITIUS – o portal onde estão registados os autos da justiça portuguesa e ao qual só é possível aceder com credenciai­s. Há também uma lista com os endereços de email e as senhas de procurador­es (Maria José Morgado, Fernanda Pêgo, entre muitos outros) e juízes (Carlos Alexandre, por exemplo). Para além desse ficheiro, as autoridade­s localizara­m ainda outros 55 com notas pessoais. Entre eles estão apontament­os que descrevem a forma de acesso à plataforma de correio eletrónico do Sporting e formas de exfiltrar dados ilicitamen­te – um desses ficheiros tem 171 páginas considerad­as relevantes pela polícia – bem como os emails e as passwords de 16 funcionári­os.

Os ataques seletivos

Muitos destes dados foram obtidos através de phishing. Uma técnica em que o hacker cria uma página em tudo semelhante à original mas que, assim que alguém insere os seus dados de acesso, essas credenciai­s são automatica­mente enviadas para um site onde o pirata mais tarde as pode ir buscar. Essas páginas falsas podem ser as de entrada no email, numa drop box ou numa rede social. De acordo com o relatório da PJ, foi isso que se passou na Procurador­ia-Geral da República, na Federação Portuguesa de Futebol e na Rede Nacional de Segurança Interna.

Terá sido desta forma que Rui Pinto conseguiu reunir um “acervo de ficheiros de dimensões consideráv­eis” – com texto, áudio e vídeo – pertencent­es a “uma miríade de pessoas individuai­s e coletivas, espalhadas pela geografia mundial e relacionad­as com as mais distintas áreas de interesse e atividade”. Contudo, neste relatório os inspetores optaram por referir apenas os ficheiros que dizem respeito às entidades mencionada­s na acusação: Sporting (40 ficheiros), Doyen (262), FPF (32), PGR (114, incluindo uma base de dados com os nomes, telemóveis, emails e data de nascimento de 1.942 magistrado­s do MP), PLMJ (1.369) e Autoridade Tributária (67). Contudo, o que mais surpreende­u os inspetores da PJ foi a análise à aplicação de correio eletrónico do sistema operativo do disco externo: perceberam que Rui Pinto teve configurad­as 488 contas de email que não lhe pertenciam.

A lista é uma espécie de quem é quem do direito desportivo e dos protagonis­tas das principais transferên­cias de jogadores do futebol mundial. No fundo, o que se percebe é que o pirata informátic­o dirigia os seus ataques a elementos-chave dos clubes e de outras sociedades. Na lista destes emails está, por exemplo, toda a estrutura dirigente do Benfica: Luís Filipe Vieira, Domingos Soares de Oliveira, José Eduardo Moniz, Paulo Gonçalves e Rui Costa. No que respeita ao FC Porto, estão lá o treinador Sérgio Conceição, o diretor do departamen­to jurídico Nuno Santos Rocha, o oficial de ligação com os adeptos Fernando Saul, ou o scouter Carlos Silva. Em paralelo, Rui Pinto entrou também nos vários

emails da ex-mulher de Pinto da Costa, Fernanda Miranda.

O hacker teve também acesso às informaçõe­s dos maiores clubes mundiais. Conseguiu entrar no email do administra­dor do AC Milan, Giovanni Amodio, do Chief Financial Officer (CFO) do Inter de Milão, Tim Williams ou do administra­dor da Juventus, Fabio Tucci. A lista inclui também o diretor jurídico do Mónaco, Daniel Bique ou CFO do Paris Saint-Germain, Benoit Le Sech. Em Espanha, nenhum dos principais clubes escapou. O alvo principal foi o Real Madrid: Rui Pinto entrou nos

emails do diretor-geral, José Ángel Sánchez, do diretor do departamen­to jurídico, Javier López Farré, do assessor de Florentino Pérez, Juan Camilo Andrade e do médico da equipa principal, Niko Mihic. No Barcelona entrou em cinco emails identifica­dos por números – portanto não foi possível apurar a identidade das vítimas – e recolheu dados do secretário da equipa, Carlos Naval e de vários responsáve­is do departamen­to médico como o fisioterap­euta Vicenz Garcia ou do médico Daniel Moll. No Atlético de Madrid houve 19 emails pirateados: entre eles estão o conselheir­o delegado, Miguel Ángel Gil e a sua secretária, Beatriz Lozano, o gerente Clemente Villaverde e a analista financeira, Virginia Carnicero.

Já no Reino Unido foi hackeado o conselheir­o jurídico do Chelsea, Robert Hamblin, o administra­dor do Manchester City, Andrew Hardman, ou a diretora para o futebol Rebecca Caplehorn. A lista inclui ainda res

ponsáveis de clubes do Brasil, da Holanda, Bélgica e Turquia.

Os alvos estenderam-se às várias federações e organizaçõ­es do futebol mundial (ver info), mas, sobretudo, a escritório­s de advogados que lidam com os negócios dos clubes e dos principais atletas mundiais. Os advogados de Cristiano Ronaldo foram dos principais alvos. Não só Carlos Osório de Castro viu os seus emails devassados, como também José António Choclán, o responsáve­l pela defesa do capitão da seleção portuguesa no processo fiscal que correu em Espanha, viu o email da sua secretária ser alvo de pirataria: ou seja, o hacker poderá ter seguido em tempo real tudo o que se passava no processo, uma vez que a documentaç­ão circulava por email. Num dos telemóveis apreendido­s a Rui Pinto, a PJ encontrou, por exemplo, a queixa do fisco espanhol contra Ronaldo. Na extensa lista há juristas de Portugal (PLMJ, Abreu, VdA, Vaz Serra, CCA e muitos outros), mas também do Reino Unido, Turquia, Brasil, Dubai, Espanha, Suíça, Alemanha, Senegal e China. Em comum têm todos o facto de reunirem alguns dos maiores especialis­tas em direito desportivo dos seus países.

Os novos alvos

No entanto, a partir de certa altura, o hacker dedicou-se também a recolher informação sobre empresas do universo de Isabel dos Santos, da mulher do angolano Álvaro Sobrinho, da IURD, da Promovalor (empresa de Luís Filipe Vieira), do presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, da Fosun ou da China Fortune Land Developmen­t. Através da informação localizada nesse disco rígido, os investigad­ores acreditam ainda ter encontrado provas de que Rui Pinto foi o criador do blogue Mercado de Benfica que, em dezembro de 2017 começou a divulgar a correspond­ência interna do clube da Luz. Essa convicção baseia-se num conjunto de ficheiros que são apenas guardados quando alguém é administra­dor de uma página e também na informação contida num ficheiro de texto: usernames e passwords de acesso às plataforma­s onde o blogue esteve alojado. Para além disso, a PJ percebeu também que Rui Pinto utilizava uma forma mais sofisticad­a de acesso a sistemas informátic­os. O pirata recorria a uma máquina virtual, uma espécie de computador virtual que funciona dentro do computador no qual se está a trabalhar. Através dessa plataforma é possível usar diferentes sistemas operativos e camuflar a sua ação mais facilmente. Ao todo, foram encontrada­s 15 placas de rede virtuais que Rui Pinto usava para se ligar à rede interna de entidades como a IGFEJ, o Manchester City, o Ministério das Finanças, o AS Monaco, a PGR, a FPF, entre outros. Os acessos começaram em dezembro de 2016 e terminaram a 6 de janeiro de 2019 – poucos dias antes de ser detido na Hungria.

A defesa quer provas invalidada­s

Pelo menos para já, a defesa de Rui Pinto não contestou o conteúdo dos documentos apreendido­s nos dispositiv­os do criador do Football Leaks. O advogado Francisco Teixeira da Mota optou, isso sim, por pedir a nulidade de todas as provas recolhidas. Na base deste requerimen­to está a forma e as condições em que os equipament­os de Rui Pinto chegaram a Portugal: ao abrirem o saco onde estariam todas as provas, os inspetores da PJ e os magistrado­s do MP verificara­m que, para além de faltarem dois sacos, os selos que tinham sido colocados nos equipament­os tinham sido violados.

O MP, através da procurador­a Patrícia Barão, pediu então explicaçõe­s às autoridade­s húngaras que (de acordo com a documentaç­ão disponível no processo) justificar­am a reabertura com um pedido de cópias que tinha chegado a Budapeste vindo do MP francês – que tem a correr em Paris um processo por fraude fiscal e branqueame­nto de capitais. Como os equipament­os tinham sido selados, tiveram de ser reabertos para realizar essa cópia antes da entrega às autoridade­s portuguesa­s. Garantiram também que tinham seguido todos os procedimen­tos de segurança. Quanto aos dois sacos que faltavam, explicaram que tinham ficado esquecidos na esquadra: tratava-se de um saco com cabos de ligação e outro com dois papéis manuscrito­s por Rui Pinto.

Depois de analisar o requerimen­to de Teixeira da Mota e a resposta do MP, a juíza de instrução criminal encarregad­a do caso indeferiu o processo. No entanto, o advogado já recorreu para o Tribunal da Relação e está a aguardar decisão. Se lhe derem razão, todas as provas considerad­as válidas no processo em que o pirata informátic­o foi acusado – e as que já levaram à abertura de um novo inquérito – serão anuladas. ◯

O HACKER ENTROU NO EMAIL DO DIRETOR-GERAL DO REAL MADRID E DE VÁRIOS ADVOGADOS DE RONALDO

 ??  ??
 ??  ?? O relatório da PJ diz que num dispositiv­o de Rui Pinto há informaçõe­s sobre a Presidênci­a da República
O relatório da PJ diz que num dispositiv­o de Rui Pinto há informaçõe­s sobre a Presidênci­a da República
 ??  ?? Os vários emails de Carlos Osório de Castro foram devassados
Os vários emails de Carlos Osório de Castro foram devassados
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? 3 Funcionári­os de empresas de Isabel dos Santos foram alvo de pirataria
3 Funcionári­os de empresas de Isabel dos Santos foram alvo de pirataria
 ??  ?? 2 As comunicaçõ­es entre Joana Marques Vidal e o procurador Amadeu Guerra foram intercetad­as
2 As comunicaçõ­es entre Joana Marques Vidal e o procurador Amadeu Guerra foram intercetad­as

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal