Sucessão A guerra que divide os dois sócios do império Bragaparques
A criação do Football Leaks O pirata aceitou falar de apenas uma parte dos factos pelos quais foi detido. Ao longo de uma hora garantiu que nunca entrou ilicitamente num computador e que nunca quis dinheiro pelos documentos que foram enviados por fontes d
Eram 18h37 de 22 de maio de 2019 quando Rui Pinto começou a ser interrogado pela juíza de instrução criminal Maria Antónia Andrade (MA). Na sala estavam a procuradora titular do inquérito Patrícia Barão, a procuradora adjunta Vera Camacho e os advogados de defesa Francisco Teixeira da Mota e Luísa Teixeira da Mota. Depois de responder às perguntas habituais sobre a sua identidade e morada, Rui Pinto disse querer
prestar declarações, mas só sobre alguns dos 173 pontos da indiciação, na qual era tido como suspeito de entrar nos sistemas da Doyen Sports Investments e do Sporting, de divulgar documentos confidenciais no Football Leaks e de tentar extorquir o CEO da Doyen, Nélio Lucas. Num tom calmo e pausado, Rui Pinto (RP) quis começar por falar dos primeiros seis pontos, sobre o tempo passado em Budapeste, onde meses antes tinha sido detido.
MA: Diz aqui que no ano 2013 foi para a Hungria frequentar a universidade. Isto é verdade?
RP: Sim
MA: Em Budapeste. Diz que ficou entre 22 de fevereiro de 2013 e 5 de julho de 2013.
RP: Sim é verdade.
MA: E a partir dessa data
passou a residir em Budapeste.
RP: Não. Passei a viver em Budapeste só a partir de 2015. (...) Para ser mais preciso, fevereiro de 2015.
MA: Diz aqui a morada, Szovetség Utca – não sei ler isto – 28 B, 2º.
RP: Não. A minha morada era Naag Diof [?], o numero não me lembro (...).
MA: Depois diz que entre 3/9/2015 e 2/11/2015 acedeu a essa conta de correio eletrónico através dos IP (…) localizados na morada (...) onde diz que não residiu.
RP: Em relação a estes IPs não sei se são os IPs verdadeiros. Mas há uma explicação. Nos meus acessos à Internet utilizo sempre formas de [os] anonimizar. Ou seja, com VPN ou com proxies. (...) Certamente que se as autoridades portuguesas receberam informação das autoridades húngaras, contém lá os metadados. E com os metadados conseguem ver em determinada hora e determinado dia quais foram os computadores que usaram esses endereços de IP. Em seguida, Rui Pinto quis falar sobre o Football Leaks. O MP alegava que o site tinha sido criado pelo jovem portuense, que o alimentava com documentos obtidos
através da Q
“[O Football Leaks] é um coletivo de fontes, de whistleblowers, e não existiu intromissão não autorizada em sistemas informáticos, pelo menos minhas. Eu não tive nenhuma intromissão em sistemas informáticos de entidades nacionais ou internacionais.”
“Não fazia a mínima que o facto de estar a fazer esta pressão ao Nélio Lucas podia ser considerado como extorsão ou tentativa de extorsão.”
“Nunca quis dinheiro nenhum. Mas claro que o facto de ter entrado em conversações com o Nélio Lucas foi um erro, não só pelos valores mas pelo facto de ter feito a tal pressão. Ou seja foi tudo uma grande confusão, e um grande erro”
intromissão não autorizada em sistemas informáticos: informações sobre jogadores e clubes de futebol, incluindo valores de transferência de jogadores e treinadores e acordos entre entidades desportivas e contratos de agenciamento.
MA: O que é que tem a dizer sobre isto? Criou de facto este site?
RP: Este site, Football Leaks (FL) é um coletivo de pessoas, de fontes.
MA: Mas não foi criado por si?
RP: Não. É um coletivo de fontes, de whistleblowers, e não existiu intromissão não autorizada em sistemas informáticos, pelo menos minhas. Eu não tive nenhuma intromissão em sistemas informáticos de entidades nacionais ou internacionais.
MA: Nega o que está aqui dito?
RP: Sim. Em relação ao ponto 8 pretendo esclarecer que o FL não divulgava apenas informações confidenciais sobre jogadores e clubes de futebol. Divulgava informações com interesse público de jogadores, agentes e clubes.
MA: E como eram obtidas?
RP: Através de fontes, de whistleblowers.
MA: Não era através de acessos ilegítimos?
RP: Que eu tenha conhecimento, não existiram acessos ilegítimos.
MA: Mas chegou a dar dados para publicação no FL?
RP: Eu recebi informação.
MA: Mas também colocou informação no Football Leaks ou não?
RP: Não posso responder.
Também não respondeu a qualquer questão relacionada com a intrusão nos sistemas do Sporting e da Doyen, nem da publicação no FL dos contratos do treinador Jorge Jesus ou dos jogadores Labyad, Marcos Rojo, Ola John, Imbula, Mangala e Radamel Falcao, entre outros. Mas quis falar sobre a tentativa de extorsão a Nélio Lucas, o CEO da Doyen, através do email artem.lobuzov@yandex.kz. Depois de admitir que tinha criado esse endereço, a juíza perguntou-lhe se tinha enviado um email ameaçador a dizer “a fuga é bem maior do que imagina”. RP: Sim, é verdade. Mas isto teve uma intenção. (...) Tentei falar com o Nélio Lucas, encostá-lo à parede para que ele se descaísse e confirmasse as ilegalidades que na minha opinião cometeu. (...)
MA: É que diz aqui que ele perguntou o que entendia por uma doação generosa e que o senhor disse que seria uma quantia situada entre os 500 mil e o milhão de euros.
RP: Sim, foi uma quantia totalmente irrealista que lancei e tentei ver a reação dele.
MA: O que daqui resulta é que queria alguma coisa (…) para não publicar. (...) Trata aqui até um senhor advogado para intermediar nessas negociações. Houve encontros…
RP: Isso é tudo verdade. Mas nunca tive a intenção de receber dinheiro. (...) O facto de eu contratar, contactar o advogado Aníbal Pinto, foi para dar mais credibilidade. Se eu dissesse “vocês têm de pagar 500 mil euros para esta conta amanhã e ‘tá feito”. Na minha visão isso sim seria extorsão ou tentativa de extorsão. (...) No final, eu próprio disse ao Nélio que nunca tive nenhuma intenção. Expliquei o que aconteceu. Ele não aceitou, tentou oferecer ainda mais dinheiro e eu disse que não queria nem um cêntimo.
MA: Mas disse isso como?
RP: Por email. (...) Faz parte do processo, certamente.
MA: Então e a seguir há uns conteúdos que passaram a ser publicados. Como explica isto?
RP: Os conteúdos iam ser publicados de qualquer maneira. MA: E como conseguiu esses conteúdos?
RP: Recebi através de fontes. Estive a analisar a informação e (...) achei que era uma boa maneira de pressionar o Nélio Lucas. Já disse que considero o presidente do FC Porto um dos maiores presidentes do futebol europeu. Mas o facto de que encontrei comportamentos muitos estranhos de negócios envolvendo o seu filho, Alexandre Pinto da Costa e a Doyen deixou-me aqui nervoso. Deixou-me, olhe nem sei explicar. Deixou-me mesmo… senti-me ferido. Sempre pensava que no FC Porto estas coisas não aconteciam. E quando vejo algo assim fiquei: “Será que isto é mesmo verdade”? Tenho de descobrir. A melhor maneira que achei foi esta. Sei que não foi a melhor...
MA: Fala-se aqui nesta quantia, meio milhão a 1 milhão. Quando mandatou outra pessoa, também [lhe] disse que não queria dinheiro?
RP: (...) O senhor Aníbal Pinto representou-me num caso antigo relacionado com uma disputa que tive com um banco nas Ilhas Caimão. No fim desse processo ele disse-me que se tivesse algum problema “fala comigo que eu ajudo-te”. (...) Liguei-lhe, expliquei-lhe, “tenho aqui um negócio” – expliquei assim – “vai falar com eles e vai ver o que eles me oferecem e o que pode sair daqui”. Não dei grandes detalhes.
MA: Mas também lhe disse que não queria receber nada?
RP: Disse no final.
MA: O final é quando? Quando viu que os outros não iam aceitar?
RP: Não. Foi no dia… [vê folhas] 26 de outubro de 2015. O dr. Aníbal Pinto escreveu um correio eletrónico a Pedro Henriques em que falou de uma maneira de concretizar o negócio e nos valores que para mim eram desconhecidos.
MA: Pagamentos em prestações.
RP: Sim, esses pormenores eu não sabia de nada. O dr. Aníbal Pinto explicou-me ao telefone o que aconteceu na reunião e eu respondi “ok, depois diz-me alguma coisa”. Nessa altura percebi logo (...) “maravilha, querem pagar pelo meu silêncio, já tenho a minha resposta”. (...) A partir daí disse ao dr. Aníbal Pinto. Expliquei-lhe tudo ponto por ponto. No final ele disse: “Ainda bem que isto não avançou e que não queres avançar porque pode haver aqui um crime de extorsão.” Eu fiquei assim: “extorsão?” Não fazia a mínima que o facto de estar a fazer esta pressão ao Nélio Lucas podia ser considerado como extorsão ou tentativa de extorsão. Apressei-me a enviar um email ao Nélio Lucas, claríssimo. (...) Segundo me recordo disse qualquer coisa como “não quero nem um cêntimo”.
MA: Diz aqui que quando se apercebeu que da parte deles não havia nenhum acordo terá feito isso.
RP: Eu mesmo não queria acordo nenhum. Sempre disse desde o início
“Tentei falar com o Nélio Lucas, encostá-lo à parede para que ele se descaísse e confirmasse as ilegalidades que na minha opinião cometeu”
que não queria dinheiro. (...)
MA: Disse a quem desde o início que não queria dinheiro nenhum?
RP: Não disse ao Aníbal Pinto. Falei com pessoal relacionado com o Football Leaks…
MA: Mas há de convir. Há coisas que têm uma certa normalidade. Há outras que não têm normalidade nenhuma...
RP: Sei que pode parecer confuso…
MA: Confuso… é que isto não acontece num dia, isto é uma coisa que se prolonga (...), houve negociações.
RP: Em relação às negociações entre advogados, desconheço. O que interessa é que no final fui bastante claro e disse não quero dinheiro.
MA: Mas não é isso que resulta deste encadeado de factos. RP: O que interessa é o final. O encadeado é basicamente irrelevante. Nunca quis dinheiro nenhum. Mas claro que o facto de ter entrado em conversações com o Nélio Lucas foi um erro, não só pelos valores mas pelo facto de ter feito a tal pressão. Ou seja foi tudo uma grande confusão, e um grande erro. (...)
As contradições
Rui Pinto não quis prestar mais declarações sobre os factos pelos quais tinha sido detido. A juíza fez-lhe apenas mais algumas perguntas sobre a vida pessoal: respondeu que em Portugal estava desempregado, que nunca teve um contrato de trabalho e que em Budapeste vivia de um negócio de compra e venda na Internet de livros e antiguidades do império austro-húngaro.
Depois foi a vez de a procuradora Patrícia Barão (PB) fazer algumas perguntas. Rui Pinto quis ouvi-las para depois decidir se respondia ou não. A procuradora concentrou-se na morada em que Rui Pinto disse nunca ter vivido.
PB: Nunca viveu aqui?
RP: Não.
PB: Não conhece o senhor Bálint Bozó? Ou Silvia Bozó?
RP: Não estou a ver.
PB: E um senhor chamado Endre, que seria seu amigo sérvio?
RP: Ah sim, conheço o Endre
PB: Onde vivia o Endre?
RP: Em Budapeste, onde não sei. Tem que lhe perguntar. A gente normalmente encontrava-se em bares.
PB: Nunca morou com o Endre?
RP: Não.
Patrícia Barão leu então o testemunho de Bálint Bozó, irmão da proprietária do apartamento Silvia Bozó, segundo o qual, entre 2015 e 2016 viviam quatro pessoas no apartamento na rua Szovetség Utca: dois eram o sérvio Endre e o seu amigo, um português chamado Rui. “Não tive um relacionamento próximo com o Rui. Só nos encontrámos aquando do pagamento da renda mensal [30 a 40 mil florins, em numerário]. Sob o modo de vida dele só sei que aparentemente vivia bem. Pagou regularmente e sem problema. Viajava muito. Penso que tirou um curso universitário e estava à procura de emprego na Hungria. Andava a ver o mundo. Recebeu muitas cartas do pai de Portugal, mandava para o meu nome e minha morada. (…) Esteve no apartamento cerca de 8 a 10 meses. Saiu em 2016 porque aumentei a renda”, disse.
RP: Interessante…
PB: O que tem a dizer sobre isso?
RP: Nunca vivi nesse endereço.
PB: Partilhou casa com o Endre?
RP: Não. Nunca vivi com o Endre.
PB: Como justifica que possa ter havido acessos à sua conta de correio através do IP desta morada?
RP: É como já expliquei, tem a ver com as VPN, com os proxies. É ver os metadados. (…) Nem sei se usei estes endereços de IP, foi em 2015.
PB: Está no registo da Google.
RP: Penso que outras pessoas não acederam ilicitamente ao meu email, estou a partir dessa premissa. Por isso se vem nos registos da Google…
PB: Esse IP bate nesta morada.
RP: Se estes registos de IP vêm da Google, acredito que os tenha usado. Agora conectar estes IP a uma morada, é preciso os metadados.
PB: (...) Disse que não queria receber dinheiro. Então como explica que o advogado Aníbal Pinto, quando faz um projeto de acordo, diga que para ele serão 300 mil euros.
RP: Tem de perguntar ao dr. Aníbal Pinto.
PB: Não acordou que para ele seriam 300 mil euros e para si o resto.
RP: [Risos] Não, olhei para o meu advogado porque estou completamente surpreendido.
PB: Não sabia disto?
RP: Desconhecia.
PB: O primeiro contacto que faz foi a 3 de novembro. A 11 de novembro, enviou uma nova mensagem dizendo que, se o seu advogado não fosse contactado até às 16h da terça-feira seguinte, os links para publicação da documentação comprometedora para a Doyen seriam republicados e novas publicações apareceriam.
RP: Sim.
PB: Se não era sua intenção obter qualquer montante porquê desta insistência?
RP: Estava a pressioná-lo.
PB: Mas não era para obter dinheiro?
RP: Não.
PB: No ponto 61 [diz] que enviou uma mensagem a dizer “tenho na minha posse uma cópia de um documento escrito pelo seu advogado, autenticado pela PJ de Lisboa, enviado à Yandex como o nome do processo e tudo (…)”… Lembra-se disso?
RP: Lembro.
“Aprendi a lição. Quando me apercebi que fazer uma pressão para tentar descobrir mais informação poderia ser considerado extorsão nunca mais o fiz”
PB: No final diz: “como sabe não é fácil arranjar um advogado low-profile para uma situação destas e eu confio inteiramente no meu. Agora tem é de convencer o seu a colaborar”. (…) Porque é que escreveu isso?
RP: Faz parte deste contexto.
PB: O que parece daqui é que o senhor saberia que isto não era uma situação muito normal.
RP: …Isto devia ter a ver com o encontro, não sei. Isto já foi tudo em 2015 não me recordo…
A defesa quis reforçar que assim que Rui Pinto percebeu que podia ter havido uma tentativa de extorsão desistiu do que estava a fazer. Questionado por Teixeira da Mota (TM), o jovem repetiu que escreveu em vários emails que nunca quis “um tostão”, que desistiu “voluntariamente” e que não fazia ideia de que podia estar a cometer um crime. A juíza duvidou.
MA: É uma pessoa instruída.
RP: Sim, mas não tenho conhecimento da lei totalmente.
MA: A maioria das pessoas também não conhece o Código Penal. (...) Estava a tentar perceber as suas razões.
RP: Foi uma maneira que considero estúpida e inocente. Isto foi no início do FL. Foi um desastre. Não devia ter feito. O FL revelou informações de centenas de entidades (...) não houve outro evento de extorsão ou tentativa de extorsão. Isso mostra claramente que nunca tive intenção de ganhar dinheiro.
TM: Fez mais alguma vez pressão com alguma instituição no sentido de publicar ou não publicar informações?
RP: Não. Aprendi a lição. Quando me apercebi que fazer uma pressão para tentar descobrir mais informação, quando me apercebi que isso poderia ser considerado extorsão percebi, OK, isto é um erro, nunca mais. E nunca mais o fiz.
O interrogatório terminou às 19h49. No fim, a juíza considerou que existia perigo de fuga, perturbação do inquérito e continuação da atividade criminosa. E colocou Rui Pinto em prisão preventiva. ◯