A CAMINHO DA UNIÃO
Para as centenas de jornalistas que chegam a Berlim em março de 1990, para cobrir as primeiras eleições livres, esperar duas a três horas por uma chamada internacional para transmitir a última hora, é impensável. Televisões e rádios montam arraiais à sombra da catedral e à porta da Câmara do Povo para a noite eleitoral e o grande momento pertence aos pesados antepassados dos telemóveis, os telefones via satélite, para transmitir a vitória da União Democrata Cristã e a derrota do ex-partido único da República agora refundado como Partido do Socialismo Democrático. A reunificação das duas Alemanhas avança a grande velocidade.
prateleira de cima é que são de hoje. Os outros foram feitos há dois dias”, explica calmamente o Ober,o empregado de mesa num dos poucos cafés à entrada do recém-restaurado Nikolaiviertel, do outro lado de um pequeno parque guardado pelas estátuas de Marx e Engels. “E tem sorte, porque hoje a máquina do café ainda não avariou”, continua. Paga-se a conta, deixa-se uma gorjeta, e quando se sai à rua fica-se sempre com a sensação de que um batalhão de “almeidas” germânicos, de espanador em punho, acabou de passar por aqui, tal é a limpeza imaculada. Nem um papel, nem uma carica, nem uma beata, nem um grão de areia profanam o centro da capital da RDA.
“Ein Schaufenster”, chamam-lhe os berlinenses. Uma montra que segue a avenida das Tílias desde a Porta de Brandemburgo, sempre a direito, atravessa o rio Spree, chega primeiro à praça Marx-Engels e depois à praça Alexander. De um lado e do outro coabitam grandes edifícios. A Ópera Nacional, a Universidade Humbolt (onde estudaram Albert Einstein e Max Planck), a Biblioteca Nacional (onde uma placa assinala a passagem de Lenine), o Conselho de Estado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Do barroco e do neoclássico dos séculos XVIII e XIX à arquitetura socialista e megalómana da segunda metade do século XX. De um lado a Catedral de
Berlim, do outro o Palácio da República, um imenso e envidraçado paralelepípedo, onde reúne a Câmara do Povo. O resultado estético é imponente, artificial e estéril.
De saco de plástico na mão (pode ser hoje o dia das laranjas), os cidadãos passam apressada e silenciosamente a caminho do metropolitano ou da Markthalle, um misto de praça e centro comercial. Em frente da torre da televisão de 203 metros de altura, em Alexanderplatz, fica um enorme pavilhão coberto onde comerciantes vendem fruta, camisolas interiores, pregos, brinquedos de plástico, ganchos para o cabelo. São ainda das muito poucas oportunidades do centro da cidade acessíveis à bolsa dos alemães-orientais. As outras lojas que por aqui proliferam destinam-se aos alto funcionários do Estado, os únicos com algum poder de compra, ou a estrangeiros.
Mesmo que queira, o turista tem sérias dificuldades em gastar os marcos. Primeiro porque as lojas, os cafés e os restaurantes do centro pertencem todos ao Estado e a oferta é escassa. Segundo, porque tem de esperar à porta pela sua vez. Depois ninguém lhe liga nenhuma e depois, se tem o azar de chegar às nove horas da noite ao self-service, o mais provável é já não sobrar nenhuma porção dos três pratos quentes do dia.
Há sempre os museus, claro. Se Berlim Ocidental tem a Rainha Nefertiti do Egito, Berlim Oriental não lhe fica atrás. Encaixotado durante a Segunda Guerra Mundial e a salvo dos bombardeamentos, no Museu Pergamon pode apreciar-se o altar grego de Zeus, uma obra-prima da arte helénica, assim como a impressionante reconstrução da via processional da antiga Babilónia. Os alemães-orientais vivem nas perpendiculares e na periferia da cidade. Onde o tijolo está à vista em grande parte das habitações sobreviventes à guerra ou nos bairros “novos”, como o de Marzahn, onde a floresta foi dizimada e se sucedem construções iguais, todas de 10 andares, com uma pequena praceta à frente e um máximo de três assoalhadas. Na Friedrichstrasse é agora hora de ponta a todas as horas. É a rua mais movimentada de Berlim Oriental. Por entre andaimes, buracos e obras, reina a confusão. Famílias alemãs-orientais esperam em fila para entrar na estação e apanhar o comboio, a multidão acotovela-se nos passeios, os peões não obedecem a semáforos, o trânsito é caótico tanto quanto a disciplina germânica permite.
No fim do dia regressarão a casa. E ao sabor de uma cerveja continuarão a ouvir os ABBA e a sonhar com o mundo que agora podem ver de perto e que todos os dias, por satélite, lhes entra em casa pela televisão, mas onde não sabem como alcançar. O turista ocidental regressa à sociedade de consumo, obrigatoriamente, pelo mesmo posto fronteiriço onde entrou. Passado o Checkpoint Charlie, é difícil não conter um suspiro de alívio. Textos originalmente publicados no semanário O Independente (edições de 17 e 24 de novembro e 22 de dezembro de 1989)
A primeira vez que fui a Berlim, ou melhor, que me levaram, aterrámos no aeroporto de Tempelhof, setor americano, no início de agosto de 1961. A verdade é que não me lembro de nada, nem sequer da estreia aeronáutica. E aquela primeira ida ao “estrangeiro” também não ia durar muito. Quando chega a Lisboa a notícia de que a República Democrática Alemã (RDA) fechara os postos de fronteira e ligações terrestres com o “lado de cá” (leia-se ocidental) da cidade e batalhões de polícias protegidos pelo exército “popular” esventravam o alcatrão das ruas e desenrolavam quilómetros de arame farpado no coração de Berlim, a reação só podia ser uma: metam-se no primeiro avião e saiam daí. Dois dias depois, a 15 de agosto, o arame farpado começava a ser substituído por tijolo e cimento. Ruas e pontes transformaram-se em becos sem saída, prédios ficaram divididos, florestas, rios e lagos foram atravessados. Em outubro, a tensão subiu em Checkpoint Charlie, o posto de fronteira americano imortalizado em inúmeros livros e filmes de espionagem, quando soviéticos de um lado e americanos do outro estacionaram três dezenas de tanques numa demonstração de força. O comando americano não estava disposto a ceder o direito de livre circulação em Berlim oriental dos seus cidadãos. O Muro de Berlim transformou a metade ocidental de Berlim numa ilha durante os 28 anos seguintes. A frente visível e simbólica da Guerra Fria.
Voltei a Berlim ocidental muitas outras vezes. À Berlim dos meus avós, dos bairros pacatos, dos jardins, do pequeno comércio; à Berlim dos grandes museus e dos grandes armazéns; à Berlim de Christiane F. e dos filhos da droga; à Berlim de Bowie e de Wenders; à Berlim dos imigrantes turcos; à Berlim capital da Prússia e do III Reich; à Berlim das noites loucas e de todos os excessos; à Berlim dos passeios nas florestas e dos banhos de verão no Wannsee; à Berlim dos espiões e dos artistas; e à Berlim do muro, sempre presente em todas as outras. Continuo a voltar e, a partir de novembro de 1989, os passeios diversificaram-se para Leste. Em Berlim e até mais longe, a terras de Goethe e do Holocausto, de batalhas napoleónicas e de familiares até então desconhecidos.
Trinta anos depois da queda do muro, a capital da Alemanha reunificada nunca deixa de surpreender a cada visita. O centro da cidade gravitou para oriente, nasceram museus, galerias, lojas, constrói-se de novo, restaura-se, renova-se, cavam-se novas linhas de metropolitano em obras que parecem não ter fim. Do muro sobram uns escassos 1.313 metros – 200 integrados no Museu Topografia do Terror que documenta a ascensão e queda do regime nazi, e os restantes, ao longo do rio Spree, foram transformados numa galeria de arte ao ar livre: mais de 100 pinturas a lembrar antigos e novos ventos de mudança. A velha estação de comboio de Friedrichstrasse, ex-posto de fronteira entre as duas Alemanhas, é hoje apenas isso, uma movimentada estação de comboio onde milhares de turistas desaguam para subir ou descer a avenida das Tílias a caminho da Ilha dos Museus, da Porta de Brandemburgo, do Memorial do Holocausto, o circuito mais procurado por quem chega pela primeira vez. E a caminho também de Checkpoint Charlie, hoje paraíso das selfies ao lado de figurantes vestidos de soldados americanos, britânicos, franceses, russos. Nas pequenas cidades e povoações da antiga RDA sobrevivem outros sinais dessa outra ordem mundial. Como em Fürstenwalde, a cerca de 60 quilómetros da capital alemã, que serviu de base militar ao Grupo de Forças Soviéticas na Alemanha. Antigas casernas foram transformadas em habitações, alguns locais em zonas verdes e parques industriais, outros permanecem abandonados e há velhas estradas militares que passaram a servir como bons atalhos para chegar mais depressa. Perto de uma circular chamada “da Amizade” ergue-se um memorial aos mais de quatro mil prisioneiros alemães que morreram nos dois anos de existência de um campo de internamento soviético criado logo após a Segunda Guerra. Também aqui não faltam histórias de terror de antes, durante e após a guerra, às mãos de carrascos vários.
Por trás das fachadas reconstruídas, das ruas ordenadas e dos novos edifícios com assinatura de nomes sonantes da arquitetura, no entanto, há um rasto de insatisfação que a ocidente muitos não compreendem. No território da ex-RDA, os salários e as pensões continuam a ser mais baixos e o sentimento generalizado é de que eles, alemães-orientais, não passam de cidadãos de segunda categoria. A crise dos refugiados não ajudou e o terreno tornou-se fértil para os partidos extremistas, como se viu nas últimas eleições para o parlamento federal de 2017 e nas eleições locais deste ano nos novos estados da Saxónia e Brandemburgo – na extrema-direita, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD) e, no extremo oposto, o partido A Esquerda, sucessor do Partido da Unidade Socialista da Alemanha (SED), que governou a RDA durante os 50 anos da sua existência. O muro caiu há 30 anos e a Alemanha Federal investiu milhares de milhões de euros na reunificação que no próximo ano celebrará igualmente 30 anos. Investiu a República e os alemães-ocidentais que em 1991 começaram a pagar um novo imposto, chamado “de Solidariedade”. A ocidente, pode até ser que os contribuintes respirem agora de alívio com o fim daquele imposto anunciado em agosto deste ano. O ministro das Finanças e vice-chanceler de Merkel, o social-democrata Olaf Scholz, justificou a medida como significativa no caminho para o fim do processo de reunificação, mas poucos, de um lado e do outro de um muro que teima em não cair, acreditarão num fim próximo. Muito menos, num final feliz.