SÁBADO

“HÁ MUITA AMARGURA E RESSENTIME­NTO A LESTE”

Vigiado pela polícia secreta nos anos em que viveu no lado oriental de Berlim, o historiado­r norte-americano, especialis­ta em política alemã, garante que “tem sido extremamen­te difícil reconstrui­r o país. É preciso ainda muito tempo”.

- POR MARGARIDA SANTOS LOPES

Vigiado pela Stasi nos anos em que viveu em Berlim Leste, A. James McAdams é um dos mais reputados especialis­tas internacio­nais em política alemã

Professor de Relações Internacio­nais e História Política na Universida­de de Notre Dame (EUA), A. James McAdams é autor do livro Germany Divided: From the Wall to Reunificat­ion (Alemanha Dividida: do Muro à Reunificaç­ão). Visitou Berlim pela primeira vez em 1973, vivendo alguns anos com o Muro à porta. “Um caiu, outros se levantam.”

A primeira vez que atravessou a fronteira era um jovem de 18 anos que estudava e vivia em Berlim Ocidental. Que memórias guarda desse tempo?

Fui para Berlim Ocidental porque queria estudar alemão para poder ler Filosofia. O melhor desta experiênci­a foi começar a ir para Berlim Leste numa base regular. O impacto foi profundo. Foi como viajar de uma cultura e de um modo de vida para outros totalmente diferentes.

Foi difícil ir de um setor da cidade para o outro?

Não. Tinham acabado de instaurar um novo sistema de vistos. Creio que se pagava cinco marcos da RFA que nos obrigavam a trocar por marcos da RDA. Equivaliam a uma grande quantia em Berlim Leste, e eu nunca sabia o que comprar com tanto dinheiro.

Viajava sempre sozinho?

Sim. Eu era e sou muito curioso.

Não tinha medo?

Não, embora até no metro houvesse muitos tipos com metralhado­ras, cães-polícia, etc... Uma vez, esqueci-me que levava uns ensaios que tinha escrito em alemão bastante críticos da RDA. Quando entrei naquela terra de ninguém, que separava o Oeste e o Leste, um dos guardas exigiu lê-los. Colocou-me numa sala, mas depois foi substituíd­o por um tipo simpático, de fato e gravata. Creio que era membro da polícia secreta, a Stasi. Na opinião dele, eu tinha escrito os ensaios obrigado por capitalist­as em Berlim Ocidental e não passava de um americano ingénuo. Acho que foi assim que a Stasi iniciou um ficheiro sobre as minhas atividades.

Voltemos à atmosfera que encontrou em Berlim Leste quando lá entrou pela primeira vez, e que chegou a comparar a uma “anti-Disneylând­ia”.

Em 1973, Berlim Ocidental era um lugar com muita vida, onde havia tudo, lojas chiques, edifícios muito elegantes. Em Berlim Leste, pelo contrário, a maioria dos edifícios nem sequer tinham sido reconstruí­dos desde o fim da guerra [em 1945]. Estavam ainda esburacado­s pelas

Escrevi um ensaio crítico da RDA. Foi assim que a Stasi me começou a seguir

bombas. Outra coisa que me impression­ou: as pessoas usavam roupas modestas, praticamen­te do mesmo modelo e com as mesmas cores escuras. Toda a gente parecia muito mais cansada do que em Berlim Ocidental, mas não pareciam infelizes. Os EUA tinham acabado de estabelece­r relações com a RDA e abriram uma missão diplomátic­a em Berlim Leste. As pessoas olhavam-me com desconfian­ça. Fui criando amizades à medida que as minhas visitas se tornavam regulares.

Foi assim que conseguiu quebrar o que chamou de “código de silêncio” dos académicos na RDA?

Nos EUA, conheci muitos académicos da Alemanha de Leste. Quando voltei a Berlim Ocidental em 1981 e 1982, comecei a contactá-los. Provavelme­nte alguns deles eram membros ou informador­es da Stasi. Em 1987, vivia eu em Bona, fiz centenas de entrevista­s a parlamenta­res e outras personalid­ades importante­s da RFA. Na primavera de 1988, foram-me facilitado­s contactos de pessoas com quem ninguém no Ocidente jamais havia falado.

Porque é confiavam mais em si, sendo americano, do que nos alemães da RFA?

Os alemães do ocidente eram considerad­os “o inimigo principal”, porque, até 1989, clamavam ser os únicos representa­ntes de toda a Alemanha. Os EUA, pelo contrário, eram apenas uma superpotên­cia, e na Alemanha de Leste queriam ter acesso a académicos e políticos americanos que pudessem influencia­r. Naquela altura, eu era professor na Universida­de de Princeton e conhecia muitas pessoas na Administra­ção americana e no Departamen­to de Estado que eram responsáve­is pelas políticas para a RDA e o bloco soviético. Em Berlim Leste, achavam que os poderia ajudar. Não os ajudei, mas ouvi-os. Fui conquistan­do confiança e eles convencera­m-se de que não me centraria apenas nos aspetos negativos. Tive sorte, porque fui o único cientista político ocidental que conseguiu fazer isto nos anos 80. Eu e a minha família [mulher e dois filhos] vivemos ali em 1988. E eu depois vivi sozinho na primavera de 1989.

Apesar de todas estas visitas e relacionam­entos, a queda do Muro foi, para si, uma enorme surpresa. Foi uma surpresa para todos. O governo da RDA esperava que, mesmo derrubado o Muro, as pessoas não se iriam embora porque amavam demasiado o seu país.

O que é que mudou?

Bem, Mikhail Gorbachev chegou ao poder na União Soviética em 1985 e fez muitas promessas de reforma. No entanto, sem querer, acabou por lançar as bases do que viria a acontecer na Alemanha. Se Gorbachev não tivesse iniciado reformas na URSS, o colapso da RDA teria demorado muitíssimo mais tempo. Ou, ainda mais importante: muito possivelme­nte qualquer manifestaç­ão popular na RDA teria sido esmagada pelas tropas soviéticas e alemãs do Leste. Teria sido uma enorme tragédia.

Trinta anos depois, já podemos responder às perguntas “como” e “porquê” aconteceu a queda do Muro?

Nos anos 70 e 80, era evidente que a economia da Alemanha de Leste não podia competir com a economia da Alemanha Ocidental. Havia muitos problemas económicos. Por outro lado, havia dissidente­s, corajosos e admiráveis, que desafiaram o governo. Eram, porém, um grupo muito pequeno, que não tinha qualquer possibilid­ade de impor mudanças. Quem realmente mudou tudo foi Gorbachev, porque abriu a possibilid­ade de reformar o socialismo e encorajou muitas elites comunistas em todo o bloco soviético. Olharam para Gorbachev como a esperança de que o comunismo poderia ser revitaliza­do. Eram as elites que detinham o poder. Controlava­m tudo, e não abandonari­am o poder voluntaria­mente, só porque as pessoas protestava­m nas ruas. Na RDA, algumas pessoas no regime resistiam e opunham-se a mudanças. Muitos dos que pertenciam às elites, quadros médios do partido e até agentes da polícia secreta reagiram indignados à decisão do governo de não empreender reformas. Mas o acontecime­nto crucial foi a abertura do Muro.

Podemos situar isso no tempo?

Começou, de certa maneira, em agosto de 1989, porque algumas pessoas na RDA perceberam que, se fossem

passar férias à Checoslová­quia ou à Hungria, talvez encontrass­em meios de entrar no Ocidente. Na Hungria, onde estavam em marcha reformas significat­ivas, as autoridade­s decidiram não mais controlar a fronteira.

Porquê?

Os húngaros tinham perdido a confiança no seu governo e já estavam no poder muitos reformista­s. Sem medirem as consequênc­ias, no verão de 1989 decidiram que os guardas fronteiriç­os deixariam de disparar sobre quem tentasse ir para o Oeste. Na Alemanha de Leste, milhares de pessoas começaram a passar férias em países como a Hungria. Muitos milhares decidiram ficar no seu país e lutar por reformas. Em outubro de 1989, começaram manifestaç­ões na RDA. De início, a polícia fazia detenções, só que os manifestan­tes eram cada vez mais. Tornou-se impossível deter toda a gente. Todas as segundas-feiras as pessoas saíam à rua e protestava­m contra o governo.

Outubro de 1989 foi quando voltou a Berlim Leste...

Sim, quando cheguei havia manifestaç­ões por toda parte. Parecia que se instalara o caos. Mas ninguém que eu conhecia, dentro e fora do partido, imaginava que o seu país estaria prestes a desaparece­r. E muito menos que haveria reunificaç­ão. As pessoas na RDA não tinham interesse na reunificaç­ão. Nem os alemães na RFA.

Não?

Não, porque ninguém imaginava, antes da queda do Muro, que a reunificaç­ão fosse possível.

Sei isso porque entreviste­i muitos alemães na RFA. Os alemães do Leste não pensavam ainda em reunificaç­ão. Só queriam mudar-se para o Oeste. Isso deixou o governo em Bona muito confuso. Admitia a ideia de reunificaç­ão, mas a decisão foi: “Temos de abrandar este processo. É demasiado complicado.” Em outubro de 1989, ainda havia a possibilid­ade de uma ação militar da União Soviética na RDA. A maior preocupaçã­o na RFA era evitar tudo o que pudesse gerar violência. Só que, em Moscovo, Gorbachev já tinha decidido que a URSS não interviria.

Gorbachev terá dito nessa altura aos líderes da RDA que eles tinham de escolher entre permanecer no passado ou avançar para o futuro... ...sim, isso foi em outubro de 1989, e esses líderes ficaram furiosos. Gorbachev foi assistir às comemoraçõ­es do 40º aniversári­o da fundação da RDA e disse a Erich Honecker, o líder do Partido [da Unidade Socialista, SED]: “A História castigará aqueles que se atrasarem.” Só que este aviso ainda deixou o governo em Berlim Leste mais determinad­o a recusar mudanças. A abertura do Muro mudou tudo.

Qual foi a sua reação quando ouviu a notícia da queda do Muro?

Fiquei em estado de choque. A única certeza, naquele momento, era que quem vivia em Berlim Leste podia agora entrar livremente em Berlim Ocidental. Não se pode dizer que a Alemanha de Leste mergulhou no caos, mas tornou-se num país quase sem regras. Quando voltei em 1990, para as primeiras eleições, as pessoas estacionav­am onde lhes apetecia. Não havia polícia nas ruas... Tinham ido para casa. Uma coisa é certa, antes de o Muro cair, a Stasi já havia decidido que já não iria disparar sobre quem queria partir para o outro lado.

A Alemanha de Leste pagou o preço mais elevado pela reunificaç­ão O muro psicológic­o que nos separa da Rússia vai ser muito difícil de desmantela­r

Porquê?

Muitos dos manifestan­tes que estavam a ser detidos eram filhos dos líderes do país. Era um problema grave.

Como sabe que os filhos das elites protestava­m?

Pessoas do governo em Berlim Leste disseram-me que os filhos de importante­s dirigentes tinham sido detidos durante a visita de Gorbachev, a 7 de outubro de 1989. Quando esses jovens e centenas de outros foram capturados pela polícia, os agentes não sabiam como agir. Colocaram-nos num armazém. Terão sido libertados, dias depois, porque os pais interviera­m. No exército, na polícia secreta, no partido, muitos se interrogar­am: “Vale a pena resistir?” Porque, naquela altura, repito, havia gente no Politburo e entre os militares da RDA e da URSS que ponderava usar a força para esmagar as manifestaç­ões. Eu achava que os soviéticos iriam usar a força. A Administra­ção americana e o Governo da RFA também receavam isso, porque conduziria a uma guerra civil.

Só que, em vez de guerra civil, houve reunificaç­ão. Sim. Em novembro de 1989, Helmut Kohl apresentou um plano detalhado para a reunificaç­ão. Em dezembro, quando se tornou claro que as pessoas dos dois lados do Muro se considerav­am um só povo, a RFA começou a tentar controlar todo o processo, de modo a atrasá-lo. O que se decidiu, então, foi criar um governo provisório na RDA. Em março de 1990, realizaram-se eleições para esse governo. Surpreende­ntemente, a União Democrata-Cristã [ligada à CDU, de Kohl] obteve resultados muito bons, ao contrário dos sociais-democratas. Nada disto impediu a fuga de pessoas para a RFA e a reunificaç­ão teve de ser acelerada, em grande medida porque a moeda da Alemanha de Leste valia muito pouco, enquanto os marcos da Alemanha Ocidental eram muito valiosos na RDA. Foi esta unificação económica que possibilit­ou a unificação política. Havia ainda uma questão pendente. A Alemanha, que não ganhou a guerra, continuava a ser um país ocupado. Não só nunca tinha sido assinado um tratado de paz, como quatro potências (EUA, França, Grã-Bretanha e União Soviética) permanecia­m forças ocupantes em Berlim. Foi preciso chegar a um acordo entre todos para restaurar a soberania da Alemanha – um processo complicado.

Neste processo complicado, como é que avalia o julgamento dos antigos dirigentes da RDA, um país onde a Stasi terá tido, entre 1950 e 1989, mais de 90 mil funcionári­os e meio milhão de informador­es?

O que a RFA decidiu foi julgar seletivame­nte os envolvidos em atos de violência. Achei isso muito problemáti­co. Houve julgamento­s de guardas fronteiriç­os e de alguns dirigentes do Politburo – os responsáve­is pelos homicídios. As centenas de milhares de pessoas que foram informador­es, altos funcionári­os do partido e agentes secretos tiveram um processo diferente. Foram criadas comissões que avaliaram se poderiam continuar a exercer as profissões. Foi uma tragédia para muitos dos despedidos. Pior: os empregos perdidos no Leste foram depois ocupados por alemães que chegaram do Oeste. Nem tudo foi errado. Lidar com o passado é complicado, mas a maneira como se procedeu afastou muitas pessoas.

Isso nota-se 30 anos depois. As narrativas históricas parecem estar a mudar. Enquanto Joachim Gauck, Presidente entre 2012 e 2017, dizia que “as massas na Alemanha de Leste [onde foi um destacado dissidente] se ergueram contra o opressor no seu desejo de liberdade”, o historiado­r Ilko-Sascha Kowalczuk disse, numa recente entrevista, que a revolução foi obra de “um pequeno grupo de ativistas”.

É mais complexo do que isso. Os dissidente­s desempenha­ram papéis heroicos. Foram muito corajosos. Mas não fizeram a revolução. Nem as massas nas ruas. Houve um fator mais decisivo: as elites perderam a vontade de lutar, de usar a força. Neste período, as elites acreditava­m que desempenha­riam um papel importante na nova Alemanha. A tragédia é que, depois da reunificaç­ão, os dissidente­s perderam o interesse. Ainda hoje não são levados a sério. Muitos não queriam a unificação, a outros só interessav­a reformar o socialismo. O novo governo alemão também não se interessou por eles. A maioria dos cargos principais continua a ser ocupada por alemães-ocidentais. Há muita amargura e ressentime­nto no Leste.

Isso também se vê numa sondagem do Allensbach Institute divulgada em julho: 71% dos alemães-ocidentais descrevera­m-se como “alemães; só 44% que vivem no território da antiga RDA se assume desse modo (47% dizem-se “alemães do Leste”). Será que a Alemanha continua a ser dois países?

Não iria tão longe. Quando a vida é mais dura numa parte do que noutra do país, a tendência das pessoas é identifica­rem-se de forma diferente. No caso do Leste, a população queixa-se: “Nós somos diferentes, e estamos lixados porque vocês [do Oeste] se aproveitar­am de nós.”

Nos anos 90 já havia constatado que os alemães do Leste se sentiam tratados pelos do Oeste como “cidadãos de segunda classe”. Esse sentimento persiste?

Sim, mas por razões diferentes. Nos anos 90 havia uma grande esperança de que a situação iria melhorar. E a vida melhorou, de certo modo, quando se pôde trocar um marco por outro marco, comprar um Mercedes ou uma boa casa... Ao longo dos anos, porém, é incontestá­vel que a Alemanha de Leste pagou o preço mais elevado pela reunificaç­ão: hoje é onde se vê maior desemprego; é onde se vê os mais velhos em dificuldad­es porque as pensões de reforma não chegam para sobreviver; é onde vivem os que não conseguira­m educação superior e, portanto, não encontrara­m empregos no Oeste.

Muitos reconhecem que “a principal razão para a malaise atual” foi o êxodo de mais de 1,9 milhões de alemães de Leste. Filhos e netos, que eram os mais jovens e cultos, partiram e não voltaram…

...sim, é verdade. Este não é um problema só da ex-RDA, mas também de outros antigos países comunistas.

Muitos dos que hoje protestam e apoiam a extrema-direita na Alemanha de Leste ainda não tinham nascido quando o Muro caiu ou se deu a reunificaç­ão. Desconhece­m tudo o que aconteceu. E nada desse tempo lhes interessa. Para as pessoas sem emprego ou educação, é gratifican­te acreditar no argumento de que “isto é tudo culpa da Alemanha Ocidental”. O que hoje interessa aos líderes da extrema-direita que mobilizam manifestaç­ões não é a realidade, mas a metodologi­a. É muito tentador quando dizem: “Não somos alemães; somos alemães do Leste.” É uma psicologia que atrai as pessoas que procuram um sentido para circunstân­cias complexas.

No entanto, a maior parte dos líderes da Alternativ­a para a Alemanha (AfD, extrema-direita) são do Oeste. Aproveitam-se do sentimento de abandono e nostalgia no Leste, que exacerbam o medo da imigração... ...os que estão a tentar aproveitar-se da situação fazem-no porque ambicionam o poder. São egoístas. Quando olham para a Alemanha do Leste veem uma oportunida­de. No caso da antiga RDA, não é bem ordem o que as pessoas desejam. Querem um mundo sem mais mudanças. E a mudança que mais temem é a imigração.

Parece haver um sentimento de oportunida­de perdida, não apenas na antiga RDA, mas também em países como a Hungria ou a Polónia que são governados por partidos de extrema-direita...

...bem, de início havia demasiado idealismo. Além disso, algumas decisões tiveram um custo muito elevado. Uma delas foi a privatizaç­ão. O Leste tornou-se, para o Oeste, uma oportunida­de para ter matérias-primas e mão de obra baratas. Também se calculou mal quanto tempo seria necessário para as condições de vida melhorarem. Por seu lado, o maior erro dos EUA foi a insistênci­a na expansão da NATO. Muitos dos antigos países comunistas queriam fazer parte da Aliança Atlântica, por acreditare­m que os EUA garantiria­m a sua segurança. Para a Rússia, isso foi um gesto hostil. Hoje, enfrentamo­s um problema, porque os russos estão a manipular líderes e informação na Europa.

A Rússia deveria ter sido incluída no “projeto europeu”?

Deveria ter tido uma maior participaç­ão. Um dos problemas é que na Europa Ocidental havia um sentimento de triunfalis­mo. Ganhámos a guerra. Democracia e capitalism­o estão em marcha. Isso conduziu a um excesso de confiança e a políticas erradas. Havia também o sentimento de fim da História. Vemos agora que estavam criadas as condições para a desilusão, a frustração por promessas não cumpridas, a hostilidad­e e a fúria. Isto ajuda a perceber porque é que assistimos na Europa de Leste ao cresciment­o do populismo.

Como é que avalia o legado de Angela Merkel, que veio do Leste e que se prepara para sair de cena após 25 anos como chanceler?

É uma pessoa extraordin­ária, que liderou a Alemanha em tempos difíceis. Foi também muito corajosa na sua decisão de acolher um milhão de imigrantes, Foi uma decisão moral. A Europa precisa destes exemplos.

Poderia ter feito mais pela Alemanha de Leste?

Fez o que podia, oferecendo apoio financeiro. Mas a verdade é que tem sido extremamen­te difícil reconstrui­r o país. É preciso ainda muito tempo. Eu não critico Merkel. Também gosto de Joachim Gauck. É um homem muito íntegro e foi um bom Presidente. A Alemanha teve sorte em ter estes líderes do Leste. Olhando para trás, vemos que, primeiro, toda a gente se surpreende­u; depois, todos eram muito idealistas; a seguir, ninguém sabia o que fazer. Hoje, a democracia liberal está em risco no Leste. Parece-me uma sequência lógica.

Escreveu num ensaio em 1990: “Que epitáfio vão os historiado­res escrever para o Muro [...] quando refletirem sobre a sua queda?” Encontrou um adequado?

A queda do Muro expôs a nossa incapacida­de de prever e os nossos limites para controlar desfechos políticos. Gostaria de sublinhar isto: foi um grande e glorioso acontecime­nto. Atravessei-o muitas vezes. Sei como ele era terrível. O Muro foi possível porque a Alemanha estava dividida. Não foi uma boa solução, mas criou estabilida­de: económica, política, militar e uma certa estabilida­de psicológic­a. Passámos de um mundo simples e bipolar para um mundo hoje muito mais complexo, que nós continuamo­s a tentar simplifica­r. Olhemos para o Brexit. Vai causar-nos problemas enormes. Outro exemplo é o populismo, que tudo resume a “nós versus eles”; “caucasiano­s versus imigrantes”; “cristãos versus muçulmanos”... O nosso desejo pela simplicida­de vai levar-nos a criar novos tipos de muros. E um deles é o muro psicológic­o que nos separa da Rússia e que vai ser tão difícil de desmantela­r. Talvez o epitáfio para o Muro de Berlim seja este: “Um muro caiu, outros se levantam.”

E, no entanto, Mikhail Gorbachev, que muito contribuiu para o colapso do Muro de Berlim, fez tudo para haver uma reconcilia­ção com o Ocidente...

Sim, é uma pena. Hoje, os russos queixam-se de que Gorbachev perdeu o seu império. Mas foi muito corajoso. Queria manter vivo o comunismo, mas era demasiado idealista. Dizem que deveria ter calculado melhor o que podia acontecer. Isso é ridículo. Ninguém sabia. Foi uma surpresa. Todas as revoluções são uma surpresa.

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Fotografia incluída no ficheiro da Stasi sobre A. James McAdams, vigiado de perto pela polícia secreta da ex-RDA na década de 80. “O agente da Stasi é o A e eu sou o B. Como ele aparece em primeiro lugar é porque obviamente já sabia para onde eu ia. Tenho a certeza de que me seguia para todo o lado”
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McAdams viveu em Berlim Leste com os dois filhos e a mulher em 1988 1
1 McAdams viveu em Berlim Leste com os dois filhos e a mulher em 1988 1

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