CORTINAS DE FERRO DO SÉCULO XXI
Berlim como ponto de partida para a conversa com a geógrafa Élisabeth Vallet e o historiador David Frye sobre as fortificações do passado e do presente.
Serão hoje pelo menos 70 as barreiras, vedações e fortificações que dividem o mundo. Um radiografia preparada pela jornalista Margarida Santos Lopes
H “á mais de mil anos que se constroem muralhas”, diz David Frye, autor de Walls: A History of Civilization in Blood and Brick. “Foram edificadas, sobretudo, com objetivos de segurança. Para as primeiras cidades [como Jericó, na Palestina atual, que ergueu o primeiro muro defensivo em 8000 a.C.], representavam vida, a possibilidade de dormir em sossego, sem estar constantemente em guarda. Mais: ofereciam liberdade. Porque estes muros podiam ser defendidos por homens sem necessidade de treino ou habilidade com armas”, acrescenta este professor de História Antiga e Medieval
na Eastern Connecticut State University (EUA). “Os muros libertavam os homens da responsabilidade de serem guerreiros e permitia-lhes ocuparem-se com outras atividades. Os primeiros muros não criavam prisões. Criavam espaços seguros.”
O Muro de Berlim, pelo contrário, foi erigido “para aprisionar e não proteger”, explica. “Ainda assim, nem todos o encaravam da mesma forma. [O Presidente dos EUA,
John F.] Kennedy inicialmente acolheu-o com alívio. Esperava que o Muro diminuísse as tensões e evitasse uma guerra termonuclear, como ameaçara [o líder soviético Nikita] Khrushchev. Foi por isso que Kennedy disse: “Um muro é muito melhor do que uma guerra” (“A wall is a hell of a lot better than a war”). Na madrugada de 13 de agosto de 1961, os jornalistas que assistiram à colocação dos primeiros rolos de arame farpado que iriam separar Berlim “relataram o que viram de maneira muito diferente da que Kennedy provavelmente gostaria”, anota Frye. O Muro de Berlim “não era olhado por todos da mesma maneira – uns viam-no como símbolo do domínio comunista; outros como um lugar onde crianças brincavam, turistas tiravam fotografias, famílias faziam piqueniques e outros faziam jogging”. “Acabou por ser, como Kennedy disse, ‘melhor do que uma guerra’, mas também prendeu muitos
“O MURO ACABOU POR SER, COMO KENNEDY DISSE, MELHOR DO QUE UMA GUERRA”
alemães de Leste a um regime totalitário”, reconhece. No entanto, 30 anos depois, “o Muro de Berlim está a ser usado, no contexto político atual, de uma maneira errada – é apresentado como símbolo de que todos os muros são opressivos, quando, na realidade, ele sempre foi diferente dos outros muros históricos e não pode ser considerado representativo”. Os romanos ergueram a Muralha de Adriano contra invasões militares, mas não fecharam as portas a imigrantes, sublinha Frye. O Muro de Berlim foi erigido para conter a emigração; a maioria dos que hoje se constroem é para travar a imigração.
Os novos muros acabarão por cair
O problema de muitos acreditarem que, depois do Muro de Berlim, viria um mundo sem fronteiras é que “os cientistas políticos interpretaram como sendo uma revolução o que, em 1989, não foi bem uma revolução”, diz, por seu turno, a geógrafa Élisabeth Vallet.
“As fronteiras não desapareceram; o que mudou foi a sua natureza e as suas funções”, explica a coordenadora e coautora de Borders, Fences and Walls: State of Insecurity. “O que alterou, significativamente, o modo como as fronteiras são hoje encaradas foram os ataques de 11 de Setembro nos EUA (2001). Desde então, o medo tornou-se a força motriz das relações internacionais e o cimento dos muros atuais.”
“Um muro define um ‘nós versus eles’, num contexto em que a globalização dilui identidades, esbate a noção de nacionalidade e reforça a necessidade de nos definirmos segundo parâmetros que possam ser compreendidos e controlados”, afirma a professora de Geografia e Geopolítica na Universidade do Quebeque em Montreal (Canadá).
Os muros não são todos iguais. “O muro indo-paquistanês pode ser visto como um muro de manutenção da paz, uma maneira de os dois países dizerem ‘estamos de acordo em discordar’. É um sinal de fim de diálogo sem ser o princípio de uma guerra”, acrescenta. “É também este o espírito dos muros entre as duas Coreias e entre o Norte e o Sul de Chipre. Já o muro na fronteira da Índia com o Bangladesh faz parte da tendência que agora vemos na Europa e nos EUA. O objetivo é prevenir a imigração, a entrada de indivíduos que o discurso dominante define como indesejáveis.” O problema, adianta a diretora do projeto de investigação Borders in Globalization, é que os governos que fortificam fronteiras “assumem que a migração é um luxo” e que os migrantes têm outras opções. “Isso não é verdade. Poucos correriam o risco de morrer se pudessem ficar nos seus países. Os muros são uma solução falsa.” Élisabeth Vallet recomenda que, em vez de “muros faraónicos”, que apenas criam “mercados lucrativos para complexos industriais-militares”, se invista “na manutenção da paz e na criação de um sistema de segurança humano para enfrentar os grandes movimentos migratórios, a escassez alimentar e as mudanças climáticas” – as quais, segundo especialistas, poderão desalojar “pelo menos 200 milhões de pessoas até 2050”. O Muro de Berlim manteve-se de pé durante 10.316 dias. Será que os novos muros estão, também, condenados a desaparecer? “É difícil determinar como é que as placas tectónicas das relações internacionais se vão realinhar nos próximos anos. Mas é óbvio que os novos muros acabarão por cair. Quando, não sabemos. Como, também não.”