O DIA EM QUE O MURO NÃO CAIU
E se o desfecho do dia 9 de Novembro de 1989 tivesse sido ligeiramente diferente? Uma ficção histórica em cinco capítulos, com o soviético Gorbachev no centro da trama.
E se o desfecho do dia 9 de novembro de 1989 tivesse sido ligeiramente diferente? Uma história alternativa, em cinco capítulos, escrita por João Pereira Coutinho
Gorbachev foi acordado de madrugada pelo embaixador em Berlim: “Tiananmen também chegou até nós”
1O Muro de Berlim não caiu naquela noite. Mas só por acaso, o que não deixa de ser uma trágica ironia da história. Porque foi um acaso que alimentou a esperança dos alemães por breves momentos. E foi um outro acaso que a sepultou logo a seguir.
O primeiro desses acidentes é conhecido e largamente glosado pela historiografia contemporânea. Recapitulemos.
Eram 6h da tarde do dia 9 de Novembro de 1989. Um membro do Politburo da República Democrática Alemã entrou na sala para uma conferência de imprensa. O seu nome era Günter Schabowski. Schabowski iniciou a sua prelecção com as minudências do dia. Mas o interesse dos jornalistas não estava nas discussões teóricas com que o partido comunista da Alemanha Oriental, agora sob a liderança de Egon Krenz depois do afastamento de Erich Honecker, andava entretido. O que interessava, em 1989, era indagar que medidas o governo de Berlim pretendia implementar para permitir a livre circulação dos seus cidadãos, se é que pretendia implantar alguma.
Era um interesse compreensível: em 1961, o Muro construiu-se para evitar a sangria demográfica da Alemanha de Leste – ou, para usar as justificações do partido, a “conspiração fascista” que sequestrava os alemães para os levar para o Ocidente. Entre 1945 e 1961, consta que 2,5 milhões terão sido “sequestrados”.
Em 1989, o governo de Berlim testemunhava o mesmo êxodo, embora na direcção contrária. Cruzar o Muro continuava a ser uma operação de risco e tantas vezes fatal. Mas era sempre possível viajar para a Hungria e, depois, rumar para a Áustria – ou, em alternativa, pedir asilo na embaixada da Alemanha Ocidental em Budapeste, ou em Praga, ou em Varsóvia.
Günter Schabowski, confrontado com as perguntas dos jornalistas sobre o assunto, olhou entediado para os papéis que tinha na mão. Sim, havia um documento que Krenz lhe tinha dado horas antes e
Com a economia soviética próxima do colapso, perder o Leste da Europa era mais uma bênção do que um drama
que ele devia divulgar. Uma resolução temporária sobre o direito de emigração dos alemães. Com o tom burocrático habitual, Schabowski informou, sem perceber o que estava a informar, que era possível viajar para países estrangeiros, sem nenhuma justificação especial, desde que os pedidos fossem aprovados pelo governo. Essa aprovação, acrescentou ainda Schabowski, seria bastante célere. Um frémito de surpresa percorreu a sala. E nem mesmo a qualificação importante daquela lei – os pedidos teriam sempre de ser aprovados oficialmente – arrefeceu o entusiasmo.
Duas perguntas, porém, continuavam por responder. A primeira, óbvia, era saber se a medida entrava imediatamente em vigor. A segunda, menos óbvia, era saber se a fronteira que dividia Berlim estava incluída no diploma. A ambas, o entediado e confuso Schabowski respondeu afirmativamente, depois de olhar de relance para os papéis.
As notícias começaram a circular de imediato. A Alemanha de Leste, em gesto histórico, decidira abrir as suas fronteiras, informava a imprensa estrangeira, a mesma que os alemães orientais se habituaram a consumir na sombra. Mas seria verdade?
Com uma mistura de espanto e esperança, a população começou a sair às ruas. Primeiro, dezenas. Rapidamente, centenas de populares. Os guardas fronteiriços, que não tinham sido ainda informados das novas regras (o que não surpreende: elas só seriam para aplicar no dia seguinte, algo que Schabowski ignorou), agiram em conformidade e impediram a passagem a uma multidão crescente, impaciente, cada vez mais vociferante.
2Enquanto Berlim fervia, o secretário-geral do Partido Comunista regressava a casa depois da reunião do Comité Central. Assim que entrou, Krenz foi informado pela mulher que Erich Mielke, chefe da polícia secreta, tentara contactá-lo várias vezes.
Krenz estranhou a insistência e devolveu a chamada. Do outro lado, um exaltado Mielke começou por questionar, como se estivesse num interrogatório da Stasi, se Krenz estava ao corrente do que se passava em Berlim. Perante a ignorância de Krenz, Mielke informou-o: centenas de alemães tentavam passar a fronteira. A conferência de imprensa de Schabowski, proferida em termos displicentes, tivera um efeito dramático na população. Era preciso agir, e agir rápido, para evitar o pior. Krenz não teve tempo para decidir o que fazer porque o destino já tinha decidido por ele no segundo acaso da noite: no momento em que conversava com Mielke, uma rajada de tiros soou no ponto de passagem da Bornholmer Strasse. Sob intensa pressão, e temendo o avanço dos populares, um dos guardas disparara.
A multidão dispersou entre gritos, deixando para trás os dois primeiros corpos daquela noite. Quando Krenz, poucos minutos depois da conversa com Mielke, foi confrontado com os factos, percebeu de imediato que aquele 9 de Novembro não seria uma repetição do que se passara dias antes, em Leipzig, quando uma vastíssima multidão protestara pacificamente contra o governo. Depois dos disparos, e antecipando a fúria incontrolada da turba, estava em causa a sobrevivência do regime. Em novo telefonema para Mielke, o secretário-geral informou-o da necessidade de suprimir, “por todos os meios necessários”, qualquer acção “subversiva” contra “a ordem e a lei”.
O que se passou a seguir foi um banho de sangue.
Erich Mielke, chefe da Stasi, estava exaltado devido às centenas de alemães que tentavam passar a fronteira
3
Mikhail Gorbachev foi acordado naquela madrugada pelo embaixador russo em Berlim. As primeiras palavras de Vyacheslav Koshemasov foram simples e brutais: “Tiananmen também chegou até nós.” Koshemasov fazia referência à repressão estudantil que o regime chinês levara a cabo em Junho daquele ano. Quando Gorbachev, alarmado, pediu mais informações sobre o sucedido, o embaixador reconstruiu o filme da noite: a inacreditável conferência de imprensa de Schabowski; a excitação das massas que procuraram de imediato testar as novas regras; o tiroteio na Bonholmer, que Koshemasov ainda não sabia se fora propositado ou acidental; e a reacção de força de Krenz. Nas suas memórias, escritas anos depois e já no exílio americano, Gorbachev confessa que sentiu raiva e terror.
Por um lado, sentiu-se traído por Krenz. Não apenas pela brutalidade da resposta, que Gorbachev sempre achou mais própria de um “canalha” como Honecker. Mas pela própria lei da emigração que precipitara a tragédia e que negava tudo aquilo que tinha sido combinado previamente entre os dois países. A abertura do Muro de Berlim nunca esteve em cima da mesa. O que esteve, e que mereceu a concordância de Gorbachev, foi a abertura de um posto fronteiriço entre as duas Alemanhas, excluindo-se Berlim desse desígnio. Como era possível que Krenz, ou alguém por ele, tivesse alterado a lei, entregando o país ao caos e à morte? Mas Gorbachev sentia também terror, “o genuíno terror dos náufragos”, como escreveria depois: ele sabia que o massacre de Berlim seria o seu epitáfio. Antecipando o julgamento dos conservadores do partido, cujas facas já estariam a ser afiadas, o que sucedera em Berlim era responsabilidade das forças anárquicas que a Perestroika libertara.
Quando, poucos meses antes, Gorbachev assistira à repressão chinesa em Tiananmen, uma mistura de optimismo e inconsciência levaram-no a acreditar que aquilo jamais aconteceria no Leste da Europa. Pelo contrário: como se vira nas eleições da Polónia ou da Hungria daquele mesmo ano, era possível uma transição pacífica entre o velho regime e a nova ordem democrática. Sem derramamento de sangue. Os acontecimentos de Berlim travavam a fundo essas doces certezas. “Senti-me o mais solitário e derrotado dos homens”, concluiu Gorbachev ao lembrar aquela madrugada e os primeiros números que lhe chegavam de Berlim: 24 mortos (a cifra final duplicaria) e um número indeterminado de feridos. “O sonho da Perestroika tinha chegado ao fim.”
4
A fatídica sentença de Gorbachev revelou-se parcialmente verdadeira. O massacre de Berlim acabaria por ditar o seu afastamento da liderança da União Soviética ainda em 1989. Num golpe liderado por Egor Ligatchov, com o apoio de Vladimir Kryuchkov (o chefe da KGB que, ironicamente, Gorbachev nomeara para o cargo um ano antes), o novo governo encarregou-se de denunciar os desvios liberais que a União Soviética trilhara desde 1985. Nada tinha sido esquecido. Ali estava o homem que desarmara a União Soviética com os seus sonhos “pacifistas” e “ingénuos”. Ali estava o homem que retirara indignamente do Afeganistão, sem honrar “os nossos rapazes mortos” e condenando o país ao fanatismo dos mujahedin. Ali estava o homem que, atraiçoando a doutrina Brejnev, pedra angular da política externa soviética desde 1968, en
É próprio dos tiranos negar ao seu povo o que Gorbachev lhes pretendia oferecer: vidas livres
No discurso vitorioso de Kohl, a unificação só tinha sido possível pelo “sangue dos mártires de Berlim”
tregara os países do Pacto de Varsóvia às predações do imperialismo capitalista.
Mas Gorbachev não entregara apenas os “países irmãos” às forças imperialistas. As suas ideias “avançadas” e antipatrióticas tinham semeado o separatismo dentro das fronteiras da União. Se Tbilissi, Kiev ou Vilnius eram agora vespeiros de criminalidade e de agitação nacionalista, tal só fora possível pela fraqueza doentia de Gorbachev. A retórica era severa e Gorbachev encarnava o bode expiatório perfeito. Mas a verdade é que o novo Politburo não tinha ilusões: não era possível voltar para atrás. Com a economia soviética próxima do colapso, perder o Leste da Europa era mais uma bênção do que um drama. “Se queremos salvar o projecto socialista”, terá dito Ligatchov ao Comité Central, “não devemos tentar apanhar comboios que já partiram”.
A frase de Ligatchov tem dois sentidos. Em primeiro lugar, sinaliza o realismo de Moscovo ao considerar a democratização do Leste da Europa um facto consumado. Longe pareciam ir os tempos em que o Exército Vermelho punia os filhos mais relapsos com a invasão da praxe. Mas quem queria repetir o que se passara em 1956 (em Budapeste) ou em 1968 (em Praga)? Sem falar, precisamente, de Berlim, em 1953, um dos últimos espectáculos sangrentos executados por Béria. Por outro lado, se o comboio do Leste europeu já tinha partido, havia um outro que ainda estava, periclitante, na estação. “Salvar o projecto socialista” significava extirpar “o veneno separatista” que ameaçava a integridade e a sobrevivência da União Soviética. Foi a essa tarefa que Moscovo se dedicou, com a ferocidade que se conhece, nos sete anos seguintes.
5
O Muro de Berlim não caiu a 9 de Novembro de 1989. Cairia em 1990, sob festejos melancólicos, depois das primeiras eleições livres na nova República Federal Alemã. No discurso vitorioso de Helmut Kohl em frente à Porta de Brandemburgo, a unificação alemã só tinha sido possível pelo “sangue dos mártires de Berlim”, que sacrificaram a própria vida para denunciar o sistema inumano do comunismo. Depois destas palavras, seguiu-se em minuto de silêncio pelas vítimas – uma tradição que se repete todos os anos, a cada 9 de Novembro.
Hoje, visitar Berlim é encontrar uma das mais vibrantes cidades da Europa Ocidental. As marcas do comunismo são discretas, excepto quando vemos passar os antigos Trabant que fazem as delícias dos turistas. Ironicamente, o mesmo poderia ser dito de Moscovo, que depois da campanha pela reunificação das repúblicas soviéticas abraçou o capitalismo de Estado, ao estilo chinês, sob impulso do seu décimo secretário-geral, Vladimir Putin. Como afirmam os apologistas do Kremlin, o grande erro de Gorbachev foi ter confundido a abertura política com a abertura económica, como se a segunda estivesse dependente da primeira. “Se Gorbachev não tivesse cometido esse erro primário”, disse recentemente o biógrafo oficial de Putin, “o povo teria sido poupado a anos de miséria e guerra”. Talvez isso seja verdade. Ou talvez a frase seja uma justificação própria de tiranos, que negam ao seu povo o que Gorbachev lhes pretendia oferecer: vidas livres.
São essas vidas que vejo passar em Berlim, no exacto local onde o Muro existia. O facto de muitas delas, nascidas depois de 1990, nem sequer suspeitarem dessa presença fantasmagórica é a medida perfeita dessa liberdade.