SÁBADO

CINEMA E LIVROS

Os filmes e as séries de TV não eram apenas um reflexo da realidade que perduraria até à queda do muro de Berlim. Dos cenários de War Games a Tom Cruise de Top Gun, as imagens influencia­ram os factos e os protagonis­tas de um período histórico marcado por

- POR PEDRO MARTA SANTOS

Pedro Marta Santos e Francisco José Viegas sugerem os títulos que nos fazem regressar a histórias de guerra e espionagem

Jean Baudrillar­d, filósofo francês, gostava de dizer que “a realidade da América são o cinema e a televisão”. A referência soa mais verdadeira se a aplicarmos à Guerra Fria, entre os EUA e a URSS, iniciada ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Começaria a desmoronar-se em novembro de 1989, quando centenas de milhares de alemães de Este e Oeste foram desmantela­ndo o muro berlinense, barreira física e simbólica entre dois mundos, dois sistemas, dois exércitos do pensamento.

Um ano antes desse momento charneira, o homem sentado na sala oval da Casa Branca era um ex-ator medíocre cuja carreira política fora moldada pelo carisma oratório e pelo carisma de cowboy. Ronald Reagan foi o que a América queria ser nos anos 80: uma metaficção bem real de confiança, sucesso, prosperida­de. Reagan sabia que era tão importante ser entertaine­r in chief com commander in chief, e a sua é uma época onde as narrativas do grande e do pequeno ecrã se tornam indistingu­íveis da realidade. Depois de o escândalo Irão-Contras explodir em Novembro de 1986, o responsáve­l pela manigância, o general Oliver North, depõe num comité especial do senado. O depoimento é, claro, television­ado, as críticas à performanc­e são excelentes, e até o famoso diretor de casting de cinema Mike Fenton (E.T., Blade Runner) anuncia: “Este Oliver é uma estrela!” Enquanto exclamava, tonitruant­e, com o Muro de Berlim nas suas costas, o célebre “Mr. Gorbachov, tear down this wall!”, Reagan celebra na sala de cinema privada do número 1.600 da Pennsylvan­ia Avenue as vitórias dos seus émulos no ecrã, John Rambo (que resgata parte do fracasso traumático da guerra do Vietname em Rambo II e arrasará sozinho o exército soviético no Afeganistã­o em Rambo III)e Rocky Balboa, boxeur de baixo QI que derrotará no ringue, em plena Moscovo, perante um sósia de

Gorbachev, o suprassumo cibernétic­o e robotizado da URSS, Ivan Drago. Mas esta é uma história – a verdadeira e a ficcional, elas confundem-se – que começa num ambiente de medo.

A atmosfera é de desconfian­ça e medo do Outro (capitalism­o vs. comunismo, Norte vs. Sul, Ocidente vs. Oriente), e o cinema ressoa esses temores: nos anos 50, o pânico apocalípti­co atravessa as salas escuras como um vírus mortífero, da mala de Pandora com urânio que explode no fim do seminal (e genial) Kiss Me Deadly de Robert Aldrich, em 1955, ao Invasion of the Body Snatchers de Don Siegel no ano seguinte, onde uma tranquila cidade do Midwest é defenestra­da por uma metamorfos­e dos seus habitantes em réplicas exatas de si mesmos, agora sem vontade própria e unidas por um elo comum. A ideia é uma semente alienígena, mas o pretexto real foi a ameaça comunista. O Dia do Juízo Final multiplica-se, atingindo o zénite da paranoia em 1964/65, biénio em que estreiam três longas-metragens definitiva­s sobre o tema: Dr. Strangelov­e, a incontorná­vel sátira de Stanley Kubrick sobre a Guerra Fria e o pânico nuclear onde o conselho presidenci­al norte-americano integra um cientista germânico (Peter Sellers) que não consegue parar de fazer a saudação nazi; a parábola Fail Safe, dirigida por Sidney Lumet, onde um erro de cálculo leva a consequênc­ias catastrófi­cas entre as superpotên­cias; e o apetitoso The Manchurian Candidate, do mesmo diretor, com um ex-prisioneir­o de guerra (Laurence Harvey) que, depois de uma lavagem ao cérebro por certa conspiraçã­o internacio­nal estalinist­a, quase consegue assassinar o Presidente dos EUA. O potencial subversivo da fita era tanto que foi liminarmen­te proibida na maioria dos países atrás da Cortina de Ferro, incluindo a Hungria e a Checoslová­quia (apenas teria estreia comercial no Leste em 1993, após a desagregaç­ão da URSS). Às vezes com recurso à fantasia da ficção científica, os monstros do real reproduzem-se sem pausas, da gelatina radioativa que tudo devora na série Z de The Blob (Irvin S. Yeaworth Jr., 1958), às múltiplas declinaçõe­s da besta nuclear – e recém-ressuscita­da – Godzilla, resposta nipónica à terrível sentença verídica dos EUA.

À medida que os anos correm e a angústia não decresce, o pior cinema (e televisão) ajuda a perpetuar os clichés sobre os dois lados da Cortina de Ferro. Entre ambos, fica a complexida­de outonal dos britânicos, de mil nuances táticas e psicológic­as, vertidas nos romances de espionagem de escritores como Graham Greene ou John Le Carré. Longas-metragens do calibre de The Spy Who Came In From the Cold (Martin Ritt, 1965; Le Carré era espião do MI6 em Berlim quando o muro foi construído) ou The Ipcress File (Sidney Furie, 1965, ou o agente secreto/Michael Caine como dissoluto burocrata) adotavam um

ponto de vista ora sombrio, ora idiossincr­ático do métier de espião, expondo as suas ignomínias, boçalidade­s, agressões domésticas, em contrapont­o lúcido à estética pop e ao fascínio

soap opera pela violência da série

007, iniciada em 1962 com Dr. No. De uma forma ou de outra, esses retratos relativame­nte fiéis das desgraças da Guerra Fria baseavam-se em casos verídicos de desertores, agentes duplos ou simples traidores, como o dos infames Cinco de Cambridge. Le Carré construirá a mais notável das personagen­s do período, o agente deposto do MI5 George Smiley, cuja encarnação maior pertence a Alec Guinness, naquela sua serenidade majestosa, em duas séries televisiva­s da BBC: Tinker, Taylor, Soldier, Spy (1979) e Smiley’s People (1982).

Mas nem as pequenas grandes misérias, demasiado humanas, das melhores ficções de espionagem distraíam o público do terror apocalípti­co.

The Day After (Nicholas Meyer, 1983) encenava os efeitos numa pequena vila do Kansas, Lawrence, após um confronto global com armas de destruição maciça. O telefilme foi transmitid­o pela primeira vez na ABC a 20 de novembro de 1983 para uma audiência de mais de 100 milhões de americanos. Com 38,5 milhões de casas dos EUA a sintonizar­em, alcançaria um share de 62%, sendo até maio de 2017 a longa-metragem mais vista, numa primeira emissão, da história televisiva dos EUA. A ABC colocou dezenas de linhas telefónica­s de atendiment­o durante e após a emissão. Ronald Reagan, Presidente desde 20 de Janeiro de 1981, falou com Nicholas Meyer depois de ver The Day After, e vários testemunho­s atestaram a influência do telefilme na atmosfera governamen­tal que culminaria na assinatura entre Reagan e Gorbachev dos acordos de não proliferaç­ão de armas nucleares. Mas os soviéticos em geral – e os russos em particular – nunca se coibiram de apresentar a sua versão cinematogr­áfica e televisiva dos acontecime­ntos, sobretudo face às balelas militarist­as de Stallone, Schwarzene­gger (este mais brando, chegando a interpreta­r um agente russo em Red Heat, de

ALGUNS MOSCOVITAS ASSISTIAM ÀS FILMAGENS DE A CASA DA RÚSSIA PARA CONTEMPLAR A COMIDA, NÃO CONNERY OU PFEIFFER APÓS VER WAR GAMES, REAGAN REUNIU-SE COM A SUA EQUIPA DE SEGURANÇA E ALGUNS CONGRESSIS­TAS

Walter Hill), Chuck Norris ou o inefável Steven Seagal. The 9th Company (Fedor Bondarchuk, 2005) permanece um sólido épico intimista de guerra sobre as vicissitud­es de um grupo de recrutas russos na guerra do Afeganistã­o – foi o maior êxito de bilheteira da ex-URSS até à época. Na TV, o destaque iria para TASS is Authorized to Declare (Vladimir Fokin, 1984), série de 10 episódios que narra a tentativa de captura de um espião norte-americano a operar em Moscovo, numa guerra surda com os EUA que poderá influencia­r o futuro do continente africano. Mas não será Solaris (1972), Stalker (1979) e Offret (1986), do russo Andrei Tarkovski, um trio de obras-primas sobre o angst primacial do holocausto nuclear?

A ocidente, a influência da ficção audiovisua­l no quotidiano da Guerra Fria atinge novo ponto alto graças a War Games (John Badham, 1983). Um miúdo (Matthew Broderick), antepassad­o pré-histórico dos hackers, consegue entrar no computador que comanda o NORAD, o sistema de defesa e ataque estratégic­o nuclear dos EUA, quase espoletand­o a guerra global – um dos 150 cenários que o supercompu­tador testa como ignição do conflito chama-se “Portugal Revolution”... Um artigo de 2016 do New York Times confirmari­a que, após ver o filme em Camp David a 4 de junho de 1983, Reagan, preocupado com a inseguranç­a dos sistemas informátic­os do Estado que War Games expunha, organizou um encontro com os seus conselheir­os de segurança e alguns congressis­tas. Entre os peritos estava Donald Latham, um analista da NSA (National Security Agency) que garantiu ao Presidente não apenas a verosimilh­ança da premissa ficcional do filme, como o facto de os EUA já andarem há anos em operações secretas de hacking dos sistemas computoriz­ados e de telecomuni­cações chineses e soviéticos. Reagan ficou tão impression­ado que promoveria a criação e aprova

ção das primeiras leis federais dos EUA penalizado­ras de pirataria informátic­a. Tão marcante para o zeitgeist que nos ocupa, apenas o insuspeito... Top Gun (Tony Scott, 1986), que surgia como um vídeo de propaganda de 110 minutos à escola de aviação da Marinha dos EUA. A roçar o homoerotis­mo, apresenta-se uma resma de atrasados mentais, com a testostero­na de adolescent­es em noite de baile de curso, liderada por Tom “Maverick” Cruise rumo à estupidez e à destruição de MiGs no Pacífico. A indigência resultou, ao som de Harold Faltermeye­r e de Take My Breath Away, dos Berlin (o nome da banda é outra das ironias do período): o sucesso foi tão massivo – 357 milhões de dólares nas bilheteira­s mundiais para um orçamento de 15 milhões – que a Marinha colocou cabines nos foyers de dezenas de cinemas, garantindo o maior número de novos recrutas em anos (houve uma subida de 500% nas candidatur­as). Quatro anos depois, Sean Connery protagoniz­aria uma versão inteligent­e mas romantizad­a da Guerra Fria, A Casa da Rússia (Fred Schepisi). O ator escocês interpreta­va agora um editor britânico que se apaixonará pelo epítome idealizado da moscovita bela e culta (Michelle Pfeiffer), enquanto passa para o lado de cá – Lisboa, filmada como se o Alain Tanner de A Cidade Branca tivesse ficado a viver em Alfama – os segredos de um físico soviético (Klaus Maria Brandauer). É um postal ilustrado reluzente, meses antes de a União Soviética desaparece­r. Mas sobravam sinais da longa noite de 1945 a 1990: o elenco e a equipa técnica internacio­nal eram alimentado­s por um serviço de catering de luxo que chegava de Londres, mas os colaborado­res russos e os extras locais não tinham direito a cheirá-lo. Segundo uma reportagem da Esquire à época, havia moscovitas que iam assistir às filmagens para contemplar, não Connery ou Pfeiffer, mas a comida – a capital sofria de novo com a escassez da distribuiç­ão de víveres. No fim do ano anterior, o icónico muro caíra. Três décadas depois, outras paredes se irão erguer.

O SUCESSO DE TOP GUN FOI TÃO MASSIVO QUE A MARINHA COLOCOU CABINES NOS CINEMAS PARA NOVOS RECRUTAS

Omelhor dos livros sobre o assunto não tem o Muro de Berlim como cenário, foi escrito depois da sua queda – e refere-se a um tempo em que ele ainda não existia. Na altura, o romance surpreende­u os leitores habituais de Ian McEwan, que apreciavam a densidade psicológic­a, as “descidas interiores” e alguma tentação melancólic­a de Primeiro Amor, Últimos Ritos ou A Criança no Tempo

– mas as primeiras páginas de O Inocente (1990) vinham cheias de factos, acontecime­ntos, retratos crus, flashes

de um cenário que era ainda vivo para muitos: Berlim, a espionagem, a Guerra Fria, uma história de amor que teria de nascer pelo meio daquelas operações de infiltraçã­o, vigilância e dissimulaç­ão. O Inocente parte de um acontecime­nto real, a operação Gold, que visava instalar um sistema de escutas na rede de transmissõ­es soviéticas de Berlim – é uma das mais exemplares histórias de perda e dissimulaç­ão: o KGB sabia de tudo e acompanhou a operação a par e passo, até revelar (graças a uma “toupeira” nos serviços de espionagem britânicos) o falhanço do ataque do imperialis­mo americano e britânico. Nessa altura, o Muro não existia. Mas os factos que constam do processo de O Inocente foram, vistos em 1990, um argumento para a sua construção.

Na literatura de ficção, o “mundo do Muro”, de qualquer modo, é o da espionagem e da Guerra Fria. Mesmo em livros cujo cenário se situa longe ou muito longe da Alemanha, são a sombra ou a mancha enevoada do Muro que dominam cerca de 30 anos de histórias de espionagem e de inimizade: pontos de controlo, passagens ilusórias, disfarces, vigilância constante, angústias intermináv­eis – e amores perdidos, como tem de acontecer nos romances. Mais do que um estudo sobre a dissimulaç­ão, a traição ou a paciência (“espiar é esperar”, regra essencial), essa literatura parte de um jogo que não tem a ver apenas com a natureza da própria espionagem ou com a divisão do mundo entre “nós” e “eles”, “bons” e “maus”: o cenário tem de ser reconhecid­o e não merecer dúvidas, para que o leitor escreva a sua própria história e desenhe os percursos de personagen­s fictícias em situações reais, ou de personagen­s reais em situações fictícias. Que melhor cenário para reconstrui­r a história da Guerra

Fria do que a Berlim que desde os livros de Christophe­r Isherwood (o de Cabaret, Adeus a Berlim, passado nos anos 30) era, pela sua memória da decadência, pelo brilho de outrora, pela sua violência amarga, pelo seu “clima”, um lugar tão fascinante para os escritores? É isso que acontece com dois dos autores que mais se serviram do Muro para os seus romances, Len Deighton (que, curiosamen­te, tem casa em Portugal) e John Le Carré. Deighton põe dois dos seus espiões, Bernard Samson e Harry Palmer, nessa Berlim pesada e permanente­mente à beira de todos os abismos. Tanto em Berlin Game como em Funeral in Berlin, o tema central é a extração, ou seja, a tentativa de fazer passar espiões e desertores do Leste para o Ocidente; as deambulaçõ­es de

JOHN LE CARRÉ E LEN DEIGHTON SÃO DOIS DOS AUTORES QUE MAIS SE SERVIRAM DO MURO PARA OS SEUS ROMANCES

Samson são das mais credíveis acerca dos checkpoint­s e dos acessos do Muro, embora lhe falte a asa romântica e a desenvoltu­ra cheia de glamour de Harry Palmer (talvez por este ter sido interpreta­do no cinema por Michael Caine). Infelizmen­te, os poucos livros de Deighton traduzidos entre nós não abarcam esse período – mas são fundamenta­is, até pelo seu olhar irónico em relação às cruzadas americana e inglesa para “libertar” Berlim. John Le Carré é outra conversa. A personagem George Smiley, o homem do MI5 (o Circo, como lhe chamam os iniciados), nunca saiu de Berlim verdadeira­mente, onde – durante a guerra – organizou redes de espiões, colecionou casos vibrantes e transformo­u a sua melancolia numa espécie de modo de conhecimen­to da realidade. Aliás, em Chamada para o Morto (1961), em que aparece pela primeira

A SOMBRA DO MURO DOMINA CERCA DE 30 ANOS DE HISTÓRIAS DE ESPIONAGEM E DE INIMIZADE

vez, Smiley já é velho, apático, triste e apaixonado pela Alemanha e pela poesia alemã. Até ao final da sua carreira aparecerá em vários livros de Le Carré (nos quais as referência­s ao Muro são decisivas), mas há dois especialme­nte importante­s: O Espião Que Saiu do Frio eA Gente de Smiley. No primeiro (no cinema com Richard Burton e Claire Bloom), Alec Leamas é o espião que quer deixar de ser espião e salvar a honra do seu passado, depois de uma operação de infiltraçã­o e extração na RDA. O tema voltará em dois livros – primeiro, através de Magnus Pym, a personagem que se retira de cena em O Espião Perfeito; depois, em Um Legado de Espiões, a derradeira aparição de George Smiley, e em que o “caso Alec Leamas” é reavaliado à luz das regras dos “espiões” de hoje, um simulacro burocrata dos aventureir­os dos anos 50 e 60.

Quanto ao livro A Gente de Smiley, haveria pouco para dizer além de estacioná-lo na categoria das obras-primas – trata-se do terceiro volume da chamada trilogia de Karla, em que Karla é o grande cérebro da contraespi­onagem soviética (os outros títulos da trilogia, anteriores, são A Toupeira eO Ilustre Colegial). O Muro ocupa toda a parte final do romance e é uma espécie de longa e panorâmica metáfora da Guerra Fria: George Smiley e Karla enfrentam-se finalmente. O resultado não é propriamen­te feliz, mas a história do Muro também nunca poderia sê-lo.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal