A BOLHA DE BERLIM
Quando é conhecida a notícia da queda do Muro, a jornalista Mónica Bello parte para Berlim como enviada especial do semanário O Independente. Tempos de mudança registados em três reportagens
Série de três reportagens publicadas pela jornalista Mónica Bello no dias de mudança que se seguiram à queda do Muro
“Não confio neles. Ainda estão a tempo de carregar no botão e fazer-nos recuar duas semanas”, diz Christoph Singelnstein, dramaturgo e produtor de rádio na República Democrática Alemã (RDA) e dirigente do movimento Democracia Já. Eles são Egon Krenz, Presidente da RDA e do Partido da Unidade Socialista da Alemanha (SED), e Hans Modrow, o primeiro-ministro reformador, que, hoje, sexta-feira, apresenta aos deputados da Volkskammer, Câmara do Povo, o programa de reformas do governo. Do outro lado da Avenida Unter den Linden, das Tílias, entre o rio Spree e a catedral de Berlim, estará uma manifestação de estudantes. “Quem me dera ser neste momento alemão-ocidental.” Em Alexander Platz, no coração de Berlim oriental, à saída de um dos mais caros restaurantes da cidade, Mickael, um construtor civil soviético de Leninegrado, sonha com o dia, já não muito distante, em que poderá seguir o mesmo caminho para ocidente dos nove milhões de alemães-orientais que, desde há uma semana, já atravessaram as fronteiras “só para ver como se vive do outro lado”, beber uma cerveja no Joe’s Bierhaus em Kurfürstendamm, comprar uma revista pornográfica, um chapéu de chuva ou admirar, horas sem fim, as montras dos grandes armazéns. E os alemães-ocidentais confessam: “É a primeira vez, em 40 anos, que não temos medo de visitar a República Democrática Alemã.”
Depois do vaivém eufórico entre fronteiras do fim de semana passado, uma calma aparente regressou às duas cidades de Berlim. De um lado e do outro vive-se a semana de trabalho.
A ocidente instalou-se um novo passatempo nacional. Joga-se ao “quem é quem”. – “Este é polaco, aquele é alemão-oriental, o outro é estrangeiro, este é dos nossos.” Atravessar a fronteira é agora mais fácil para os alemães-orientais do que para os ocidentais. Em Friedrichstrasse, na estação de comboio, estrangeiros e alemães-federais ficam na fila dos passaportes e dos vistos. Continuam a ser filmados e mostram os documentos nas mesmas cabinas apertadas aos mesmos funcionários alemães-orientais de há uma semana. Estes, ainda mal refeitos de tanto movimento, perdem rapidamente a paciência e não gostam que os apressem na dosagem da burocracia dos carimbos. “O senhor não sabe ler? A sua fila não é aqui. Cidadãos da República Federal têm de se dirigir a outra cabina”, grita o soldado. Mas as metralhadoras desapareceram e a revista alfandegária é meramente simbólica. Calma e incerteza quanto ao futuro são agora as principais preocupações dos alemães dos dois lados da fronteira. A reunificação é, ao mesmo tempo, sonhada e proibida. “Não é essa a questão que agora importa e não se discute sequer essa hipótese”, vai explicando Ludwig Maier, cidadão reformado de Berlim oriental. Entre dois golos de cerveja e o saborear
do seu pão com salsicha, acrescenta: “Sabe, o meu maior sonho é ver Berlim de novo uma cidade unida. Mas agora o mais importante é não nos deixarmos levar pela emoção e não exercermos demasiada pressão nos nossos governantes. Eles são do Partido, mas merecem uma oportunidade. Agora que recuperámos a paz, é tempo de trabalharmos para o desenvolvimento económico do nosso país. Não podemos ter pressa. Ninguém nos diz que esta liberdade recém-adquirida não nos possa vir a ser roubada de novo, e em caso algum queremos que os acontecimentos da China, na Praça Tiananmen, se repitam numa das nossas cidades.” Os alemães-orientais não esquecem que o seu Presidente, Egon Krenz, apoiou o massacre de Tiananmen e a longínqua China é para eles um fantasma real. Habituados a obedecer sem questionar, falar livremente na rua e noutros locais públicos é um exercício novo para os alemães de leste. À hora do almoço formam-se filas nas ruas de Berlim à porta dos famosos Imbiss, uma espécie de “entre-e-coma-depressa-e-em-pé-e-em-silêncio”, onde se servem hambúrgueres, salsichas no pão, sopa e cerveja. “Há muito tempo que não podíamos exprimir a nossa opinião fora das paredes das nossas casas”, explica a senhor Maier. “Agora já não precisamos de olhar por cima do ombro, preocupados com alguém que nos possa ouvir, mas ainda não nos habituámos.” O casal Maier tem dois filhos que nunca pensaram seriamente em viver no ocidente. “Para quê? Aqui eles estão entre os melhores profissionais. Lá, do outro lado, nunca seriam nada entre tantos.” E é talvez esta a principal razão que justifica os resultados de uma sondagem efetuada esta semana na RDA: 87% da população diz que não sairá de casa nem abandonará os seus empregos.
Para os eventuais interessados em regressar à RDA, a Cruz Vermelha alemã-oriental montou campos de receção. Para já, podem receber 10 mil candidatos a filhos pródigos. Garantem-lhes habitação, emprego e, quando possível, a reinserção nas suas comunidades de origem. Uma iniciativa sem sucesso até agora. Os ex-alemães-orientais preferem esperar e ver para crer. “Daqueles que se foram embora, muitos escusam de voltar”, diz Singelstein, “alguns não tinham de facto outra alternativa, mas outros abandonaram o país por oportunismo. Não lhes perdoo”.
Do lado de cá, no ocidente, a invasão oriental nem sempre é recebida de braços abertos. O cidadão comum não quer mais “mercados polacos”, feiras da ladra onde os nacionais da
Polónia vendem por bom preço as suas pertenças pessoais, desde a escova de dentes à cafeteira. Alguns chegam mesmo a transformar os cabos de plástico em ganchos para o cabelo. É a caça ao marco ocidental. “Depois regressam ao seu país com os bolsos cheios de dinheiro”, queixa-se o motorista de táxi, “produto de uma venda ilegal, subvencionada pelo Estado. Por mim, sou a favor que deitem o muro abaixo, mas primeiro eles que resolvam os seus problemas económicos internos. Já viu se os alemães-orientais se lembram de fazer o mesmo? E depois nós é que temos de pagar os impostos”. Exalta-se, fala mais alto, passa o sinal amarelo, mas não se cala. “Isto assim não pode continuar.” Enquanto, em Bona, o Governo alemão-federal vai fazendo planos e contas para ajudar à reconstrução económica da RDA, para alguns alemães-ocidentais a solução parece simples: “Sabe o que vai acontecer? Vamos instalar-lhes umas fábricas do outro lado. E como eles são os alemães mais trabalhadores, sem dúvida nenhuma que dentro de alguns anos a sua situação económica estará resolvida. A única coisa de que eles precisam é que os deixem trabalhar em paz”, diz, confiante, Hermann Brock, comerciante berlinense. Tempo e paz é também a principal preocupação dos movimentos de oposição na RDA: tempo para se reestruturarem e organizarem a tempo de eleições.
De um lado e do outro da fronteira entre as duas Alemanhas vive-se o desenrolar dos acontecimentos com emoção. A leste e a oeste devoram-se jornais e notícias. Quanto ao futuro, ninguém quer arriscar grandes previsões. A prioridade não é a reunificação política das
Alemanhas, mas a reconstrução económica da RDA. Sem esta, a primeira não se põe. Os alemães não têm tanta pressa em “arrumar” a questão alemã como a Europa da Comunidade parece ter.
“Saí da prisão hoje de manhã”, conta Rolf, carpinteiro de profissão, um dos beneficiados pela lei da amnistia que, há três semanas, devolveu a liberdade aos alemães-orientais condenados por “tentativa de fuga à República”.
Dos três anos de prisão sentenciados, Rolf cumpriu um ano e meio numa cela de 15 metros quadrados que dividia com outros quatro presos. “Saí da cadeia com 600 marcos no bolso e sem emprego. Hoje não resisti e passei o muro. Amanhã, logo se vê. O melhor é ver se arranjo um emprego num café ou num restaurante. Sempre se ganha mais em gorjetas. Para já fico na RDA. Mas se isto não mudar, vou-me embora. Disso podem estar certos.”
Dos milhões de alemães-orientais que desde 9 de novembro já atravessaram a fronteira, são cerca de mil os que diariamente escolhem começar uma nova vida e pedir a cidadania na República Federal da Alemanha.
Nas escolas da RFA os estudantes orientais enfrentam os primeiros problemas: “Já contávamos com o atraso em algumas cadeiras, como Inglês, por exemplo, mas nas disciplinas de Matemática, Química e Física esperávamos que o nível de ensino fosse superior”, desabafa um professor bávaro. “Por outro lado, os sete anos obrigatórios de aprendizagem da língua russa parecem também não ter sido satisfatórios.” Em Berlim, os alemães-ocidentais queixam-se do lixo que fica nas ruas e da multidão que enche as lojas, enquanto do outro lado, os alemães-orientais já torcem o nariz a tanto “turista oportunista”, queixando-se de que “o país está em saldo”.
Os dois governos alemães prometem, entretanto, aumentar o controlo alfandegário já na próxima semana e evitar a saída do marco oriental. Os salários na RDA são baixos, mas ninguém passa fome. O problema é que não há onde gastar. Por um carro espera-se 15 anos, por um telefone entre sete a oito anos. E durante 40 anos, os alemães foram amealhando pilhas de marcos orientais. A Ocidente, os pés-de-meia orientais transformam-se agora em bananas, laranjas, gravadores, telefonias e legumes em conserva. “Nunca tinha visto uma coisa assim”, diz um berlinense da RDA, de olhos postos num telefone sem fios.
Na RDA, os preços são fortemente subvencionados pelo Estado. O pão tem o mesmo preço há 40 anos, o leite também, o bilhete do metropolitano, o jornal, os sapatos. “Trabalhamos seis a sete horas por dia e não temos o menor gosto naquilo que fazemos”, diz Hans, taxista, que sempre que transporta um cliente ocidental aproveita para propor um câmbio de divisas. “Espere um bocadinho, deixe-me apagar a luz, pode estar aí algum polícia, e eu não quero problemas… nas lojas do
outro lado, os empregados tratam-nos bem, dão bom-dia, boa-tarde, aqui não. Se vender, vendeu, se não vender, melhor. Não teve tanto trabalho.” Às sete da tarde são horas de fechar a porta, sem dó nem piedade de quem espera ordeiramente na fila para ser atendido.
Para grande parte dos alemães-orientais, a sociedade ocidental mete medo. O mercado livre não se dá bem com o Estado-Providência e, na RDA, há 40 anos que os alemães não têm se de preocupar com a saúde, as escolas, a reforma e o emprego. O Estado resolve-lhes a vida desde que nascem até que morrem, mesmo que não queiram. Concorrência e competitividade são palavras novas, que amedrontam. Lentamente, outras opiniões chegam também à RDA. Os 39 jornais diários – 12 milhões de exemplares – mudaram de linguagem. “Finalmente podemos voltar a ler jornais e a ver os nossos canais de televisão”, diz o pescador que, em frente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, tenta a sua sorte às percas no rio Spree. “Há duas semanas, ninguém sonhava que isto pudesse vir a acontecer”, conta. Diz que confia em Modrow, sabe quem é Egon Krenz, mas pouco mais. Espantados com a repentina atenção por parte da imprensa estrangeira, os políticos da RDA ainda não têm o hábito dos seus congéneres do ocidente: não se esquivam a perguntas. Pelo contrário. É com prazer que respondem a todas as perguntas, ao mesmo tempo que gozam a liberdade de opinião, expressão recém-adquirida. “Sabe, eu ainda há duas semanas era um simples advogado e hoje há momentos em que ainda me é difícil manter os pés assentes na terra”, confidencia Lothar de Maizière, o novo responsável do Governo para as questões religiosas. Os pés bem assentes na terra também ainda não têm os outros alemães-orientais. “Enquanto todos os alemães-orientais não tiverem dado o seu salto ao outro lado do muro, o ambiente não vai acalmar.” Um ambiente de grande à-vontade que o mais frio dos alemães não consegue conter. “É um prazer poder falar sem medo com qualquer desconhecido no meio da rua.” E falam. E contam. E dão opinião. E perguntam como se vive do outro lado. Os alemães-orientais querem saber tudo sobre o “outro mundo”. Até se, “em Portugal, há muitos ricos e muitos pobres”.
Amanhã, dia 23 de dezembro, quando Leonard Bernstein atacar a 9ª Sinfonia de Beethoven em Berlim Ocidental, à frente da Orquestra Sinfónica da Rádio Baviera, do outro lado da porta de Brandemburgo, o tenor Peter Schreier, a nata dos cantores alemães-orientais, abrirá o concerto de Natal, dirigindo a orquestra de câmara Carl Philipp Emanuel Bach. Os bilhetes há muito que esgotaram a ocidente e oriente da mesma cidade. Mas 1989 traz duas novidades: pouco antes do início dos dois concertos, vestidos a rigor, os melómanos alemães cruzar-se-ão nas múltiplas passagens abertas no muro. E no dia de Natal, de batuta e instrumentos de música na mão, Bernstein e a orquestra sinfónica atravessarão o muro para oferecer Beethoven aos outros berlinenses. Os ventos democráticos que sopram a leste deitaram por terra os medos mais fundos, e cada dia que passa aumenta o número dos ocidentais, alemães e outros de passagem que não resistem a pôr o pé do outro lado do muro. Uma visita que, nos últimos 40 anos, só os turistas mais afoitos se ousavam permitir. Dá-se o “salto” de carro, a pé ou de comboio, mas seja como for, o visto diário que a RDA concede na fronteira só deixa visitar a outra metade de Berlim até à meia-noite, vedando o acesso ao restante território da RDA. Friedrichstrasse é a primeira estação de comboio alemã-oriental: onde se mostra o passaporte e se recebe o visto, onde a RDA obriga o estrangeiro a trocar 25 DM por 25 M (o “dinheiro de plástico”, como lhe chamam na RFA, notas de pequeno formato e moedas de alumínio que ao português fazem lembrar os tostões “marcelinos”). Findas as formalidades, pode-se finalmente sair da porta da estação e respirar o mais recente ar livre a Leste. “Desculpe, mas só os bolos da