NUNO ROGEIRO
Trinta anos chegam para fazer a “história verdadeira”? Com o Muro da Vergonha caiu uma Grande Mentira, e não pode analisar aquele tempo quem tenha vergonha de mencionar os vencedores e os vencidos, os ilusionistas e os avençados. Todos foram, são e serão
Ao princípio foi a Grande Mentira: “queremos construir uma
fronteira estatal junto à Porta de Brandemburgo, mas não um muro”, dissera Walter Ulbricht, líder da RDA, um mês antes da edificação. Vinte e oito anos depois, a falsidade e a divisão artificial ruíram. E hoje não se pode escrever sobre a queda do Muro de Berlim sem falar em vencedores e vencidos.
Entre os que triunfaram, o povo alemão. A gente das ruas, dos campos e das fábricas, os filhos e netos de uma nação primeiro raptada por piratas, depois exterminadora, a seguir esmagada e ocupada.
Entre os escóis, não se pode ignorar Helmut Kohl e Ronald Reagan. O primeiro por ter sabido dar corpo ao anseio de união e justiça. O segundo por exigir a Gorbachev que derrubasse “a coisa”, e por não ter sentido medo – ao contrário de outros líderes “direitistas” – com a unidade alemã. Também triunfaram, além túmulo, 239 pessoas que morreram na tentativa de passar o Muro, de forma mais ou menos clandestina, e os 5 mil que conseguiram saltar. Ganharam ainda os que, na Europa e no mundo, apoiaram a causa de “Liberdade para Berlim e Unidade para a Alemanha”.
E ganharam os que, na sombra, contribuíram para minar o Muro da Vergonha.
O BAILE DOS MONSTROS
Foram derrotados os que acreditavam piamente na fábula do “socialismo científico” de Ulbricht: a de que na RDA germinara um “Homem Novo”, que já nada tinha a ver com a
Alemanha histórica, sendo por isso a unificação um absurdo.
Foram derrotados os partidos comunistas e socialistas, burgueses ou liberais, que viam na reunificação o regresso de Hitler de um “imperialismo voraz”. Foram derrotados os que policiaram, militarizaram, criaram estruturas de repressão e proibição, que perpetuaram o Muro. E os que, na comunicação social, nos hospitais psiquiátricos, na “cultura”, nas artes, nos sofás, justificaram aquela fronteira de cimento entre a liberdade e a ocupação.
O Muro, claro, nascera da Aliança entre monstros, pretéritos e futuros. Ernst Cassirer, um liberal judeu neokantiano, escreveu que o confronto entre Hitler e Estaline representara a guerra civil entre o ramo “direito” e a fação “esquerda” do hegelianismo.
Esta comunidade essencial pareceu mais nítida no pacto de agressão Molotov-Ribbentrop, e nos seus anexos secretos, que permitiram ao Reich invadir França, com matérias-primas fornecidas por Moscovo.
Sergei Eisenstein, letão soviético, de família hebraica convertida ao cristianismo ortodoxo, arquiteto e engenheiro inacabado, felizmente desaguado no cinema, foi uma vítima desse universo totalitário.
O seu Alexander Nevsky, com música de Prokofiev, admirável fresco que influenciou gente tão diferente como John Ford e Tolkien, era sobretudo uma parábola antinazi. Inicialmente aceite por Estaline, acabou por ser censurado e proibido pelo tirano, a seguir ao dito pacto. Depois deste, e até à estação Barbarossa, seria proibido ofender a caricatura teutónica figurada por Hitler.
EX-PEÕES E ESPIÕES
Berlim era ainda o espelho dos espiões. Lembro-me de almoçar com o oficial de ligação do MI6/SIS britânico, no então restaurante Espelho D’Água, em Belém, quando soubemos da suspensão de lançamento do livro Battleground Berlin. O sucessor do KGB demorara meses a rever o manuscrito, e Londres interessava-se pelos pormenores. Essencialmente o volume compilava as revelações de Sergei Aleksandrovich Kondrachev, ex-diretor do Departamento Alemanha do KGB, “berlinense adotivo”, durante muito tempo responsável pelo controlo dos traidores vindos de serviços ocidentais. A obra era coescrita por David Murphy, ex-chefe da base operacional da CIA em Berlim (BoB, em Foehrenweg, Dahlem).
No comando remoto da BoB tinha ainda estado Tennent “Pete” Harrington Bagley, eterno número dois do Departamento Soviético da CIA, outro veterano de Berlim. Pete, intelectual brilhante e um linguista de primeira água, também escreveu um livro de memórias (Spymaster) com Kondrachev, dado que havia sido, durante muito tempo, o seu inimigo direto e principal.
Desta amizade improvável resultou uma explosiva confissão, ainda por explorar totalmente.
É que Berlim tornara-se o centro de controlo do submundo de sobreviventes nazis, e das suas redes, pelo KGB e GRU soviéticos. Estes serviços prepararam manifestações antijudaicas e profanações de cemitérios hebraicos locais: a ideia era lançar a suspeita de que o governo de Bona (à beira de ingressar na NATO), e sobretudo as suas forças armadas e de segurança, eram ainda habitados por nostálgicos hitlerianos. Aleksandr Korotkov, chefe dos clandestinos do KGB, ex-futuro diretor do serviço em Berlim, tinha-se encarregado de “reconverter” ex-oficiais da Gestapo, como Heinrich Müller e Jakob Löllgen, proporcionar-lhes a vinda da Argentina e uma vida de sombras, a troco do ativismo “revivalista e revanchista” na RFA. Berlim foi também, claro, a sede do serviço externo de espionagem da RDA, o HVA de Markus “Misha” Wolf, e do seu chefe de desinformação, Rolf Wagenbreth. Wolf, cuja cara só foi identificada parcialmente em 1959 (e totalmente em 1978), contactava diariamente Ivan Agayants, diretor de “medidas ativas” do KGB, e competia na criação de notícias falsas, estatísticas adulteradas, fotomontagens e livros de editoras berlinenses fantasmas, como a J. Mader. Era crucial manter a Alemanha dividida ou unida mas neutral, sem forças militares credíveis e sem “amigo americano”. Urgia ainda travar “a onda subversiva”, que começara com os motins populares de junho de 1953, e criar a patética narrativa de um Muro “para proteger os berlinenses orientais da invasão e da agressão do imperialismo”.
A sede de todas as falsificações era o QG do KGB em Berlim-Karlshorst. A secção de contrafação, comandada por Pavel Gromochkin, tornou-se lendária.
Tudo desabou nesse
4 de novembro de 1989: na Alexanderplatz, Markus Wolf tentou juntar-se aos manifestantes antissoviéticos, afirmando “sou um de vós”, mas foi insultado e escorraçado. Consta que o amigo e protetor Kondrachev o viu à distância, não sem reprimir uma lágrima. Tudo estava consumado. E tudo estava consumido.