JOÃO PEDRO GEORGE
ESTALOU MAIS UM ESCÂNDALO
de corrupção. Por mais surpreendente que possa parecer, a revelação das coisas sujas e sórdidas que um grupo de pessoas poderosas, associadas e coordenadas em segredo, planeou e levou a cabo para extrair dinheiro público, não colheu quase ninguém de surpresa, não supôs grande novidade.
O que não deixa de surpreender é o esforço dos jornalistas e dos comentadores para apresentarem o roubo, a mentira e o latrocínio como anomalias. É o empenho dos detentores do poder político em tentarem convencer-nos de que nunca entregaram os recursos do Estado a interesses obscuros que perseguem objectivos exclusivamente clientelares, que actuam apenas por motivos privados e pessoais (dinheiro, reputação, influência, sexo, etc.), sem nunca considerarem o bem comum. E, melhor ainda, em garantir-nos que não são marionetas manipuladas por essas entidades que dispõem de poderes muito mais amplos e difusos.
Toda a gente sabe que a corrupção e o roubo se tornaram constitutivos da sociedade portuguesa, que o compadrio, a gatunagem, o arranjismo e o nepotismo são a essência da própria estrutura social; que as autoridades e as instituições públicas mentem e não são de confiança; que os maiores criminosos estão nos grupos dirigentes e se misturam no próprio funcionamento do Estado; que os empresários, os banqueiros, os advogados, os consultores, as entidades reguladoras, os auditores envolvidos nestas tramas não passam de lacaios que limparam servilmente a pocilga e o urinol dos multimilionários angolanos, sem curar de saber a natureza e a origem do dinheiro; que os ministros portugueses e os políticos dos cargos de cúpula (incluindo do PCP, cujas relações privilegiadas com o MPLA mereciam ser investigadas) estão ou estiveram metidos na corrupção até ao pescoço, na roubalheira até ao pescoço, na merda até ao pescoço; que forças financeiras subterrâneas e secretas, misteriosas e remotas, sem contornos claros, cujas dimensões e ramificações se desconhecem, continuam a parasitar os recursos do Estado e são quem controla, verdadeiramente, os dispositivos do poder político; que a organização do Estado forma uma espiral, um sistema circular sem princípio nem fim, em que se tornou impossível saber exactamente quem trabalha por dedicação cívica e quem actua de modo a maximizar os interesses particulares desses grupos de pressão clandestinos e oportunistas, sacrificando o Estado e o dinheiro dos contribuintes; que as explicações oficiais e oficiosas não passam, tantas vezes, de campanhas de desinformação que visam lançar a incerteza sobre a nossa maneira de pensar e de colocar os problemas, e impor a crença na existência de uma realidade organizada, estruturada e coerente (quando a verdade é que a vida destes milionários e poderosos decorre sob o signo da desordem, do ilícito e do desprezo pelas regras que supostamente garantem a estabilidade e o bom funcionamento da realidade social e política).
Saber que a sociedade portuguesa assenta numa cultura de corrupção e pilhagem do erário público, que as conivências ocultas, as jogadas de bastidores, os arranjos de distribuição de lugares e as manigâncias de secretaria não constituem excepções, antes regularidades previsíveis cujo sentido já quase ninguém se interessa em decifrar, que entrar em esquemas e negociatas são pulsões fundamentais das famílias dirigentes, dos altos funcionários e dos grandes tecnocratas (quando, ou em que época, é que não foi assim?), saber tudo isto não provoca estranheza nem sobressaltos de maior, corresponde àquilo que já todos sabíamos, pressentíamos ou imaginávamos.
A tendência dos políticos, altos fun
cionários, tecnocratas, empresários e agentes de representação dos interesses económicos de alguns conselhos de administração para se coordenarem e concertarem de modo a conquistarem um poder quase absoluto sempre foi o princípio de funcionamento do nosso país. Por isso, ninguém duvida já que toda a sociedade está capturada por quadrilhas de ladrões cuja extensão ultrapassa o âmbito do território nacional e cujos tentáculos se estendem até ao coração dos próprios Estados, os quais se encontram – em parte ou totalmente – corrompidos. Ou, pelo menos, reduzidos à impotência.
As notícias dos crimes cometidos pelos membros das classes opulentas, aqueles que representam a ordem social, política e económica em vigor, tornaram-se banais e triviais, já não provocam estrondo, porque, de certo modo, está na sua própria natureza (e faz parte dos seus privilégios) transgredir as leis e o sistema de normas.
Toda a gente sabe que a princesa de Angola, de quem todos agora escarnecem, é apenas um bom exemplo dos diferentes estratos de criminosos que nunca serão responsabilizados, e que o seu nome simboliza, segundo o mecanismo da condensação, diversos aldrabões que mereciam ser presos por tempo indefinido, mas que nunca serão identificados e a quem nunca serão atribuídos quaisquer delitos. Tal como ela, de resto, nunca será condenada, pois basta-lhe mexer um dedo para fazer tremer todo o regime angolano, e o português…
Quantos de nós ainda acreditam que o Governo de António Costa irá actuar em consequência? Quem é que acredita que esta história vai obrigar a importantes alterações na legislação, de modo a facilitar o combate à corrupção? Quem é que acredita que a justiça sairá vencedora deste caso? Quem é que acredita que os comparsas portugueses de Isabel dos Santos serão julgados e castigados? Escrevam o que vos digo: não vai cair nada nem ninguém. Seremos sempre nós (e os angolanos, sobretudo) os únicos derrotados, necessariamente. Porque, no fim de contas, sabemos que estamos a ser manipulados e já não queremos saber.
A única vantagem destas revelações é demonstrarem, de uma vez por todas, que as realidades de superfície são parciais e ocultam estruturas profundas habitadas por personagens aparentemente respeitáveis, mas que, de facto, não passam de hordas de criminosos que sugam os recursos de todos e perpetuam a exploração, a pobreza e a exclusão social. É provarem, de modo conclusivo, que a conjura se encontra no próprio coração do Estado, que a conspiração é o próprio Estado, e que a ordem social repousa numa ilusão grosseira que esconde a violência política e económica dos donos do caroço. É mostrarem que tudo isto é um vómito e que todos estes indivíduos que se amesendaram confortavelmente e da maneira mais fácil, que saquearam fortunas incalculáveis para comprar casas, terrenos, empresas, carros, roupa, viajar, arrotar, peidar-se, ejacular, frequentar os salões e os círculos elegantes, enquanto as massas famélicas vivem na completa miséria, são grotescos e repugnantes. Uns porcos. W