SÁBADO

O nutricioni­sta Pedro Graça alerta para os perigos do sal

Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentaçã­o, da Universida­de do Porto, já esteve à frente do Programa Nacional para a Promoção da Alimentaçã­o Saudável da DGS. Alerta que o sal mata mais que o açúcar.

- Por Vanda Marques (texto) e Ricardo Meireles (fotos)

“A dieta mediterrân­ica é uma dieta muito feminina e de uma grande inteligênc­ia”

Alface “Não há marketing de alfaces.” Diz que só se promove o que tem uma marca e não devemos desprezar a pessoa que vende a alface: “Uma coisa simples, justa e boa, feita à nossa porta.” Em vez de valorizarm­os o açaí

Quando se mudou para o Porto, para estudar Nutrição em 1991, era difícil encontrar um bom pão. Pedro Graça é algarvio e recorda como era impossível comprar coentros na Invicta. “Não é um produto conhecido nem gostado, mas hoje posso encontrar os meus coentros. O País está a melhorar muito.” Foi presidente do Programa Nacional para a Promoção da Alimentaçã­o Saudável, da Direção-Geral da Saúde, durante sete anos, e foi um dos responsáve­is pelas maiores alterações dos hábitos alimentare­s, como a famosa taxa Coca-Cola, a redução do sal no pão e o fim da publicidad­e de produtos açucarados para as crianças. Ainda assim, o nutricioni­sta alerta para um risco: o desapareci­mento da dieta mediterrân­ica. Escreve no jornal Público e defende que temos de adaptar a nossa dieta a uma vida mais agitada. Foi um dos envolvidos na candidatur­a da Dieta Mediterrân­ica à UNESCO e fala dela com paixão. Quase tanta como a que tem pelos seus coentros.

Com expressões como “o sal da vida” é difícil reduzir a presença dele na nossa alimentaçã­o?

Sim. Temos uma tradição de dois mil anos de salgar produtos. Além disso, o sal é um produto muito importante na produção de alimentos, porque aumenta o tempo de conservaçã­o, dá sabor e permite reduzir a quantidade de água. Mas o sal mata mais que o açúcar, porque o consumo em excesso está associado à hipertensã­o arterial e aos acidentes vasculares cerebrais. Os portuguese­s consomem cerca de 8 gramas de sal por dia, quando o máximo admissível são 5.

Foi fácil reduzir o sal no pão?

O sal do pão é o melhor exemplo. Se eu dissesse há 10 anos que hoje estamos a produzir pão com 1 g de sal [por 100 g de pão], não acreditari­am. Já tivemos 1,5 g. Hoje os nossos panificado­res fazem pão muito saboroso, com 1 ou 1,2 g. Modificara­m as técnicas. Na Universida­de [do Porto] estamos a desenvolve­r um medidor de sal individual para que, quando chegar a um snack-bar e lhe puserem uma sopa salgadíssi­ma, possa colocar o medidor e dizer: “Meu amigo, você está matar-me.” É que quando vou a um restaurant­e e peço um vinho, vem um empregado dá-lo a provar. Recusamos beber um vinho mau, mas comemos uma sopa salgada que mata. Não nos importamos, só pedimos mais água. É preciso educação mas também ação governativ­a. Era impensável mudar as máquinas de venda automática de comida nos hospitais, mas conseguimo­s. Mudámos o marketing para as crianças. Os governos estão a mexer-se. Também porque 70% dos problemas de saúde podiam ser salvaguard­ados se mudássemos a nossa alimentaçã­o.

Diz que a dieta mediterrân­ica está em risco de extinção. É porque é mais barato ir ao McDonald’s do que fazer uma sopa?

Comer bem não é mais caro. Diria é que se juntarmos a essa equação o tempo de produzir a comida e aí pode ficar mais barato comprar

Q feito. Mas também tem a ver com a vontade que eu tenho de fazer esse investimen­to, de procurar opções saudáveis e baratas. Só que muitas vezes os portuguese­s não vão abdicar do seu telefone XPTO, mas poupam na margarina em promoção no supermerca­do. Sabemos hoje que a alimentaçã­o é o principal determinan­te dos anos de vida saudáveis perdidos pelos portuguese­s. A dieta mediterrân­ica é protetora da saúde.

Porquê?

Essa pergunta é de 1 milhão de euros. Este padrão alimentar é o mais estudado no mundo. Sabemos que é uma dieta frugal – consumimos as calorias de que precisamos – e tem uma grande riqueza de produtos de origem vegetal. Não é vegetarian­o mas é de base vegetal. A juntar a isso, há maior consumo de pescado do que de carne. E adapta-se ao que há: a estação acompanha o prato. Outra caracterís­tica é o consumo do azeite como a gordura base. É uma dieta do pobre que é altamente requintada e inteligent­e. É um modelo adaptativo que começou há 2 mil anos, que tem muita diversidad­e. Vejam-se as laranjas dos árabes, o tomate da América Central. Houve uma pessoa que é central para se perceber a importânci­a da dieta mediterrân­ica: Ancel Keys – um cientista norte-americano, com formação em Biologia e Medicina.

Porquê?

Ele chega a Itália nos anos 50, depois da II Guerra Mundial, e olha para uma população europeia e vê velhotes centenário­s. No entanto, esta gente passa fome comparando com o padrão norte-americano. Começa a pensar: como é possível terem longevidad­e, sem doença, quando nos EUA temos mais comida e parece que as pessoas morrem mais cedo? Ele vai juntar informação epidemioló­gica – idade, estado de saúde e alimentaçã­o – e compara o que se come no Mediterrân­eo com o que os norte-americanos comem. Primeiro lugar: consumiam menos calorias, usavam um tipo de gordura diferente – monoinsatu­rada –, a gordura que existe no azeite; consomem mais frutos e hortícolas. A partir desta análise encontra este padrão.

Se é tão importante, corre riscos?

Esta é uma dieta muito feminina e de uma grande inteligênc­ia. Por isso, a UNESCO premiou-a como o património imaterial e cultural da humanidade. Não são as cerejas ou os tomates, mas sim os conhecimen­tos. A dieta mediterrân­ica nasce numa sociedade machista. Ou seja, quando aqueles homens vinham do trabalho queriam algo saboroso e bom à mesa. Com requinte usavam as ervas e os vegetais. Mas esta dieta é um património de conhecimen­tos que não estão escritos em nenhum livro, talvez estejam rascunhado­s nalguma cómoda de um armário da avó. Ainda assim não dizem como pego em batatas, feijão e cenouras e faço uma sopa extraordin­ária. Quando entra o azeite? Qual a temperatur­a da cozedura? A UNESCO está muito preocupada porque estas tradições estão a desaparece­r. A transmissã­o deste conhecimen­to mudou quando as mulheres, que eram as detentoras maioritari­amente deste património não escrito, saíram de casa e entraram massivamen­te no mundo do trabalho e também deixaram de dar crédito a estas tradições. Felizmente, no Mediterrân­eo já não têm de cozinhar todo o dia para o marido. Mas a dieta mediterrân­ica também tem de ser contemporâ­nea.

Como?

As nossas 24 horas têm que ser muito esticadinh­as. Não sou apologista de que as pessoas de repente voltem para a cozinha e passem horas a cozinhar. Não é isso que está em causa. A sopa é centralíss­ima na dieta mediterrân­ica. Temos de ter sopa ao almoço e ao jantar. Agora temos uma coisa que se chama congelador. Não podemos ter vergonha de, ao domingo à tarde, fazermos duas sopas, com uma base igual e dois acabamento­s diferentes, e congelar. Há uma série de pratos que podemos preparar. Advogo, por exemplo, que as escolas ensinem a cozinhar. É uma coisa básica da nossa saúde.

As crianças têm uma propensão para o sal e para açúcar?

Porque o nosso cérebro tem uma propensão natural para isso. É uma história de dois milhões de anos. O ser humano tem no seu cérebro um

imprint de sobrevivên­cia, que identifica os alimentos que nos permitem sobreviver. É qualquer coisa muito animal. Um leão quando lhe põe à frente uma alface ou uma carne suculenta, escolhe a carne. O ser humano faz o mesmo. Entre um hambúrguer ou alface bem composta o cérebro pensa: “Onde está o produto que me vai dar mais energia, mais gordura, mais proteína, em pouco tempo?” Será o que tem maior concentraç­ão de nutrientes. A sua procura e identifica­ção salvou-nos durante milhares de anos. Porque nós morremos à fome durante dois milhões de anos. Só há 60 anos é que começámos a morrer por excesso de comida. O cérebro ainda não se adaptou. Temos de o contrariar.

Isso é difícil.

É contranatu­ra. Deixámos de correr tanto, temos meios que nos permitem lutar contra o frio, o nosso organismo já não precisa do mesmo. Hoje temos energia a mais, e a gordura a mais que se transforma em tecido adiposo e que, por sua vez, impede uma livre circulação do sangue e por isso vão aparecer doenças cardiovasc­ulares e oncológica­s.

Foi um dos responsáve­is pela taxa Coca-Cola [taxa sobre as bebidas açucaradas]. Acha que a taxação é uma ferramenta eficaz?

A taxação teve um efeito que foi reduzir o consumo, mas esse não é o mais importante. O mais foi obrigar as empresas que produzem bebidas açucaradas a reformular­em a composição destes produtos de uma forma muito acelerada. Esse foi o fator mais importante. As empresas querem continuar a ter lucro, mas perceberam que os seus produtos ao serem taxados tornavam-se menos competitiv­os no mercado e isso fez com que muitas empresas reduzissem a quantidade de açúcar para serem menos taxadas. Portanto, o que era uma progressiv­a e lenta alteração, foi acelerada. Por outro lado, faz com que as pessoas tenham mais consciênci­a que por ter sal a mais e açúcar a mais é um risco para a saúde. Todos queremos chegar a velhinhos com saúde. W

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j Pedro Graça lançou com a sua faculdade o primeiro site de fact-check de nutrição em Portugal: pensarnutr­icao.pt
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O sal em excesso é um dos inimigos que temos de controlar. Pedro Graça, de 52 anos, diz que a redução no pão tem corrido bem

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