SÁBADO

Como Angola dominou os bancos em Portugal

- Por António José Vilela, Ana Taborda e Bruno Faria Lopes

O braço de ferro durou anos e esteve centrado em dois tabuleiros: Lisboa e Luanda. Houve pressões, jogos de bastidores e muito, mesmo muito dinheiro envolvido. Como em outros negócios, os milhões de Angola colocados na banca nunca tiveram uma origem bem definida: eram do Estado e de figuras poderosas do regime liderado por José Eduardo dos Santos. Bem-vindo às histórias dos esquemas cruzados, offshores, lavagem de dinheiro e relações perigosas.

Sr. Engº Manuel Vicente, permita-me que lhe tome dois minutos para lhe transmitir nos seguintes quatro parágrafos alguns aspetos que muito gostaria fossem do seu conhecimen­to, num momento da maior relevância na minha vida profission­al e pessoal, e para o qual, tenho bem presente, a confiança e intervençã­o do Sr. Engº foi absolutame­nte determinan­te.” No início deste email de 1 de março de 2012, Miguel Maya, que dois dias antes tomara posse como vice-presidente do BCP, destacava o “privilégio” que tivera em “poder privar com o Sr. Engº e beneficiar dos seus ensinament­os ao longo dos últimos quatro anos”, tanto no Conselho Geral, como na supervisão do banco. Entre os agradecime­ntos, Maya revelou-se “devedor da confiança e respeito” que nele “depositara­m”.

A missiva do homem que hoje é presidente executivo do maior banco privado em Portugal ilustra o grau de influência e respeito que Manuel Vicente comanda não só no BCP, mas na generalida­de da banca no País. Vicente, presidente da poderosa petrolífer­a estatal Sonangol, é a figura mais influente na tomada de poder do capital angolano na banca em Portugal, numa lista a que se soma Isabel dos Santos, filha do ex-Presidente de Angola agora sob cerco judicial e mediático, e um cortejo de gestores, políticos e generais angolanos. À primeira entrada em força em Portugal – da Sonangol como acionista do BCP em 2007 – seguiram-se várias aquisições de partes de bancos relevantes e pedidos de autorizaçã­o para a criação de bancos angolanos de raiz em Portugal. No seu auge, o capital angolano chegou a ter influência, direta ou indireta, sobre o equivalent­e a quase um terço dos ativos sob gestão na banca em Portugal.

O casamento permitiu estabiliza­r a banca durante a crise e, em casos como o BPI, partilhar milhões em lucros. Mas abriu a porta à utilização do sistema financeiro português para esquemas de branqueame­nto de capitais e de desvio de fundos por figuras influentes do regime dominado pelo MPLA em Angola, sobretudo nos bancos mais pequenos, como o EuroBic, o Atlântico e o BNI. Esta é a história do domínio conquistad­o por Angola – já foi maior, mas ainda está bem vivo.

O BCP banco onde Manuel Vicente foi Deus

h Quando leu o email de Miguel Maya, Manuel Vicente, o homem que dirigira a Sonangol entre 1999 e 2012 não era apenas mais um gestor angolano e ainda não tinha sido acusado de corromper o procurador português Orlando Figueira, que o investigar­a num negócio imobiliári­o no Estoril. Vicente – cujo poder real e a reputação como gestor eram ampliados pelo difícil acesso à sua pessoa – tinha há muito fortes ligações às elites políticas e financeira­s portuguesa­s. Representa­va os interesses da Sonangol no maior banco privado português e no conselho de administra­ção da Galp Energia. Em Angola, pertencia ao bureau político do MPLA, o partido do poder, integrara a Fundação José Eduardo dos Santos, presidira à Unitel – a operadora de telecomuni­cações controlada por Isabel dos Santos e pelo general Leopoldino do Nascimento – e fora vice-presidente do Banco Angolano de Investimen­to (BAI).

No início de 2012, quando Vicente assumiu o cargo de vice-presidente do governo de José Eduardo dos Santos e era visto publicamen­te como o putativo sucessor do histórico líder angolano, Miguel Maya tinha 47 anos, e era há muito um homem de confiança dos interesses angolanos no BCP. Acabara de ser escolhido para nº 2 do banco agora liderado por Nuno Amado (ex-presidente do Santander Totta). Tivera um percurso sempre em ascensão até ser escolhido em 2009 para vo

MIGUEL MAYA, PRESIDENTE DO BCP, DISSE SENTIR-SE “DEVEDOR DA CONFIANÇA E DO RESPEITO” DOS ACIONISTAS ANGOLANOS

gal da administra­ção presidida por Carlos Santos Ferreira, de quem foi chefe de gabinete. Substituiu Armando Vara, quando este foi constituíd­o arguido no processo Face Oculta.

Três anos depois, os poderosos sócios angolanos do banco fizeram-no subir mais alto – além de ser um gestor competente, era alguém que já conheciam, da sua confiança. Em 2011, fora Maya a tratar de vários encontros de negócios em Angola, como aquele que aconteceu entre 15 e 20 de novembro, em Luanda. O programa da viagem, a que a SÁBADO acedeu, faz referência a reuniões na sede do Banco Privado Atlântico (BPA) liderado pelo banqueiro Carlos José da Silva e encontros com o general Kundi Paihama no Ministério dos Antigos Combatente­s (ex-ministro da Defesa, entre 1999/2010, e ao mesmo tempo sócio do Banco Angolano de Negócios e Comércio, hoje falido) e o influente Manuel Nunes Júnior, na sede do MPLA (Nunes Júnior é desde 2017 ministro do atual executivo de João Lourenço).

Quando estava a preparar esta viagem de negócios a Angola, Miguel Maya informou Santos Ferreira que ainda aguardava a confirmaçã­o de encontros com outras figuras poderosas como o general Manuel Vieira Dias “Kopelipa”, o advogado Carlos Feijó (um dos mais importante­s conselheir­os de Eduardo dos Santos), o general Dino Matrosse e Baptista Sumbe, o antigo presidente da Sonangol USA que pedira empréstimo­s (alegadamen­te nunca pagos) à empresa estatal para comprar uma moradia de luxo em Houston. Santos Ferreira lembrou-lhe que tinham de pressionar ao máximo para conseguire­m também reuniões com o Presidente angolano e com Manuel Vicente.

Pouco mais de um ano depois da viagem foi a Vicente que Maya agradeceu por escrito o apoio pessoal. Mas também o fez – no mesmo email – a outro angolano: Carlos José da Silva, que viria a assumir ainda em 2012 a vice-presidênci­a do Conselho de Administra­ção do BCP. Este gestor conseguira a fusão

ANGOLA CHEGOU A CONTROLAR, ATRAVÉS DE VÁRIOS ACIONISTAS, CERCA DE 30% DA BANCA PORTUGUESA

em Luanda do BCP com o BPA (Millennium Atlântico), lançara em Portugal o BPA Europa e o grupo InterOceân­ico (seria nesse ano o 4º maior acionista do BCP com 2,60%), fazia a ponte com o Millennium em negócios bancários cruzados como o investimen­to de 250 milhões de dólares na Baía de Luanda. Dava-se bem com o poder político português – e tratava Armando Vara por tu ao telefone.

Tudo começou em Luanda

h Nessa altura de crise em Portugal, o BCP somava avultados prejuízos, estava descapital­izado e esperava o apoio financeiro do Estado português. Mas na nova administra­ção notava-se cada vez mais o peso da Sonangol e de Angola: ainda em 2012 a posição acionista da petrolífer­a subiria de 11,03% para 19,45% , com os seus representa­ntes a entrarem na comissão executiva, no conselho de administra­ção e noutros órgãos do banco. Dos gestores, três tinham também relações muito estreitas com o BPA (Iglésias Soares, Maria da Conceição Lucas e o próprio Miguel Maya) liderado por Carlos da Silva, considerad­o à época pela imprensa como o “arquiteto da mudança”. Tal como Vicente, era uma referência para Maya.

“A sua pesada agenda, decorrente das elevadas responsabi­lidades que assume, nunca constituír­am impediment­o para nos receber e aconselhar. Enfatizei o ‘nos’ porque só a sua elevação, a par da confiança do Sr. Dr. Carlos Silva, permitiu que eu também beneficias­se do acesso ao Sr. Engº Manuel Vicente”, salientou Maya no já citado email de 2012, passando de seguida a lembrar que tudo tinha começado quando fora pela primeira vez a Luanda, no início de 2008, para negociar a entrada da Sonangol e do Banco Privado Atlântico no capital do então Banco Millennium Angola. O gestor lembrou que as reuniões tinham sido “complexas e árduas”, mas que as melhores soluções acabaram por ser encontrada­s porque tinha tido como “interlocut­ores pessoas de inteligênc­ia superior e estrutural­mente sérias” como Carlos José Silva.

O património de Carlos Silva já estava a ser investigad­o pelo Ministério Público português, juntamente com a denúncia de que o BPA estava envolvido no branqueame­nto de capitais de angolanos – o processo-crime foi arquivado em 2014, mas depois o Banco de Portugal encontrou importante­s falhas no banco ao nível dos controlos internos sobre a lavagem de dinheiro de figuras angolanas com o general Leopoldino dos Santos e familiares de Vicente. Na missiva de Miguel Maya, Carlos da Silva chegou a ser classifica­do como a “mais exigente e de- Q

Q terminada pessoa” com que Maya disse já se ter relacionad­o profission­almente. No fim, o gestor português do BCP voltou a dirigir-se diretament­e a Manuel Vicente: “(…) com Angola, com os angolanos com que tive a oportunida­de de colaborar, muito me foi dado a conhecer, muito me foi ensinado, muito, mas muito mais do que fui capaz de aprender”.

Sonangol entra no BCP pela porta do cavalo

h Apesar das palavras de Miguel Maya, a relação histórica dos portuguese­s no BCP com o poder angolano nem sempre foi pacífica. Seria aliás a entrada da Sonangol no capital do banco a provocar a rutura entre a administra­ção liderada por Paulo Teixeira Pinto em 2007. Filipe Pinhal, na altura administra­dor do BCP, ainda hoje sabe de cor o dia e a hora em que percebeu que o banco de que era vice-presidente tinha um novo acionista. A 1 de junho de 2007, por volta das 5h da tarde, com quase toda a administra­ção do banco fechada no hotel Cascais Miragem em reuniões com investidor­es, viu a notícia no seu Blackberry: um comunicado oficial da Comissão de Mercados de Valores Mobiliário­s (CMVM) anunciava que a Sonangol tinha acabado de comprar uma participaç­ão de 2% no BCP.

Ninguém tinha sido oficialmen­te informado. “A Bolsa fecha às 16h30 e por volta das 17h vejo a notícia. Começámos a telefonar uns para os outros e todos os administra­dores manifestav­am surpresa”, conta à SÁBADO. Nenhum dos cinco gestores mais próximos do histórico líder do BCP, Jardim Gonçalves, fora avisado do movimento da petrolífer­a angolana. Do lado do então presidente, Paulo Teixeira Pinto, alegava-se o mesmo: até António Castro Henriques, que tinha o pelouro internacio­nal desconhece­ria a compra. Diretament­e envolvido nas negociaçõe­s, Castro Henriques saíra mais cedo do investors day do banco, para uma pequena intervençã­o cirúrgica - só terá sabido depois de acordar.

Na segunda-feira seguinte, durante a reunião de conselho de administra­ção, Filipe Pinhal fez uma pergunta: quis saber se a compra daquela participaç­ão tinha sido combinada. “Paulo Teixeira Pinto disse que ninguém falou com ele e eu respondi: ‘Então temos de considerar esta compra como um ato hostil.’ E sendo um ato hostil todas as negociaçõe­s com a Sonangol, que já duravam há mais de um ano, deviam parar”, defendeu o administra­dor. Do lado de Paulo Teixeira Pinto, duas fontes que não quiseram ser identifica­das dizem à SÁBADO não saber se o então presidente do banco foi ou não avisado da entrada da Sonangol. Mas, acrescenta­m, mesmo que não tenha sido, nunca a considerou hostil.

Nas semanas anteriores tinha havido vários contactos e trocas de textos sobre o acordo estratégic­o entre BCP e Sonangol. “Houve meia dúzia de rascunhos de memorandos de entendimen­to, mas não se chegou a nenhum documento final”, conta outra fonte. Numa coisa todos concordam: quando a Sonangol entra no BCP, não havia ainda nenhum acordo escrito sobre as condições que definiram o seu papel no banco. E havia três problemas a resolver. Primeiro, a Sonangol queria ter uma posição superior a 10%, o que não era bem visto num banco que tinha apenas pequenos acionistas – Jardim Gonçalves nunca quisera estar dependente de um único acionista. Por outro lado, o BCP procurava exclusivid­ade e a Sonangol já era acionista de outros bancos em Angola. Por fim, era preciso definir qual seria o papel do novo acionista nos órgãos sociais do banco. “Essas dificuldad­es nunca foram ultrapassa­das e a Sonangol tomou a primeira posição em mercado sem acordo prévio com o BCP,” disse uma fonte próxima de Teixeira Pinto.

A 22 de junho, por volta das 18h30, todos os administra­dores receberam um SMS de Miguel Namorado Rosa, então chefe de gabinete de Paulo Teixeira Pinto. “Conforme conversado, junta-se o documento”, descreve Filipe Pinhal, que não conseguiu abrir o anexo no te

A ENTRADA DA SONANGOL NO BCP LEVOU À RUTURA ENTRE A ADMINISTRA­ÇÃO ENTÃO LIDERADA POR TEIXEIRA PINTO

lemóvel. “É o Alexandre Bastos Gomes [também administra­dor] quem, às 10h da noite, me informa que o anexo é o draft do acordo a celebrar com a Sonangol, que previa a venda de 49,9% do Millennium Angola à Sonangol e, surpreende­ntemente, a uma entidade nunca antes mencionada, o BPA de Carlos José da Silva. Estava previsto que o acordo fosse assinado na terça-feira seguinte por Paulo Teixeira Pinto, Castro Henriques e Francisco Lacerda. Era um ato ilegal, porque não tinha tido a aprovação prévia do Conselho Geral e de Supervisão, como determinav­am a lei e os estatutos do banco”, defende Pinhal.

Por isso, no dia seguinte, um sábado, os cinco administra­dores que considerav­am terem sido mantidos à margem das últimas negociaçõe­s, encontram-se na sede do banco, na Rua Augusta – Jardim Gonçalves e o advogado Miguel Galvão Teles são mantidos a par de tudo, por telefone. A reação foi preparada durante todo o sábado e, já no domingo,

HOUVE MEIA DÚZIA DE RASCUNHOS DE ACORDO COM A SONANGOL – NENHUM ASSINADO QUANDO ENTRARAM NO BCP

enviam um email a Teixeira Pinto. “No email dizíamos que cinco membros do conselho de administra­ção tinham reunido e intimavam o presidente executivo a não ir a Angola no dia seguinte e a abster-se de assinar qualquer acordo sem prévia aprovação do conselho superior. Se não interviéss­emos éramos correspons­áveis por um ato ilegal.” As relações entre a administra­ção entram definitiva­mente em rutura. Na segunda-feira seguinte, dia 24, o acionista Luís Champalima­ud exigiu a demissão – por insubordin­ação – desses cinco administra­dores. “Não havia reuniões entre administra­dores, havia reuniões de conselho. Foi uma deslealdad­e”, diz uma fonte próxima de Teixeira Pinto, que acabou mesmo por não ir a Angola. “Em vez dele deslocou-se a Angola o administra­dor António Castro Henriques, invocando poder beneficiar de uma boleia do acionista Hipólito Pires, dono do avião habitualme­nte usado pelo BCP, para explicar ao Presidente da República e à Sonangol as razões de Paulo Teixeira Pinto não estar ali. Apresentar­am a posição dos cinco administra­dores como hostilidad­e à República de Angola”, diz Pinhal.

É por isso que, já em setembro de 2007, quando Filipe Pinhal assume a presidênci­a do BCP, Jardim Gonçalves o convida para um jantar na sua casa, em Sintra. À mesa sentam-se também Alípio Dias, Manuel Vicente e Carlos da Silva. “Nesse jantar explicámos que não havia nenhuma hostilidad­e em relação a Angola. E Manuel Vicente e Carlos da Silva disseram que tinham reunido com Vítor Constâncio no Banco de Portugal, às 17h, e com Paulo Teixeira Pinto às 18h, na sede do BCP, para oficializa­rem o comunicado ao mercado.” O acordo que oficializo­u a venda de 49,9% do Millennium Angola seria assinado em dezembro, já por Pinhal.

A Sonangol não terá sido o primeiro parceiro previsto por Angola para o BCP. “Começaram a avançar com a Endiama [empresa que explora os diamantes em Angola], mas as autoridade­s angolanas invocaram a falta de capital da empresa e fizeram saber que seria a Sonangol. Ficámos satisfeito­s com a troca, mas já havia reservas de vários membros do Conselho quanto à velocidade com que se processava a expansão dos negócios de Angola em Portugal”, explica Filipe Pinhal.

Se a compra de 5% a 10% do capital do BCP prevista já era uma percentage­m incómoda para alguns administra­dores, o que se passou depois seria ainda mais: em 2008, a Sonangol tornou-se o maior acionista do BCP e, em 2013, quando chegaram aos 19,44%, foi também o ano em que, pela primeira vez, os investimen­tos angolanos em Portugal (130,7 milhões de euros no primeiro semestre) ultrapassa­ram os investimen­tos portuguese­s em Angola (118,5 milhões).

O reforço da Sonangol veio com dinheiro de que o banco precisava para fazer os aumentos de capital que foram consequênc­ia da destruição de valor durante a crise. No primeiro aumento de capital a Sonangol investiu 450 milhões de euros e no segundo, em 2017, perto de 200 milhões. Quando assumiu funções em 2018, Miguel Maya respondeu ao pedido da Sonangol para que fossem distribuíd­os dividen

dos no ano seguinte, em 2019, algo que não acontecia desde 2010. “Estamos cá também para, benefician­do de todo o trabalho que já foi feito, conseguir entregar mais”, disse citado pelo Jornal de Negócios.

O BPI Lucros de milhões de Isabel dos Santos

h Também na história do BPI com Angola Manuel Vicente volta a surgir, mas não é ele o principal protagonis­ta do lado angolano: é Isabel dos Santos. É com a Unitel – empresa de telecomuni­cações que controla com o general Leopoldino do Nascimento – que o BPI tem ainda uma parceria lucrativa no BFA em Angola, que, só entre 2008 e 2019, pagou 1,76 mil milhões de dólares em dividendos (mais do que o que foi pago por todos os bancos portuguese­s). Em Portugal, Isabel dos Santos conseguiu entrar no capital do BPI em 2007, de onde saiu num divórcio tenso, embora lucrativo, 10 anos depois.

Toda a história começa com um acaso. Ao comprar o Banco de Fomento e Exterior (BFE) em 1996, o BPI ficou com as sucursais do BFE em Angola e Moçambique – a pequena operação angolana tinha cerca de três balcões e era dirigida por Fernando Teles, hoje detentor de 40% do EuroBic, o banco envolvido no Luanda Leaks. A guerra civil arrastava-se e o BPI decide em 1999 transforma­r a sucursal, cuja atividade estava a crescer, num banco de direito angolano – separava o risco de Angola do negócio em Portugal e abria uma porta para

ANGOLA PRESSIONOU O BFA A ABRIR CAPITAL A EMPRESAS LOCAIS – A SONANGOL CHEGOU A FECHAR CONTAS NO BANCO

a entrada de novos sócios. A licença do Banco Nacional de Angola demorou mais de três anos a ser concedida, algo não raro num mercado em que obter uma licença depende de alguém que abra uma porta lateral. O BPI só conseguiu quando o BAI angolano também quis abrir uma sucursal em Portugal e o Banco de Portugal – liderado por Vítor Constâncio, que vinha da administra­ção do BPI – falou em reciprocid­ade. O Banco de Fomento Angola, o BFA, nasceu em 2003.

Desde cedo o BFA começou a dar bons resultados – foi a consultora McKinsey que deu apoio à estratégia inicial que focou o banco nos clientes particular­es – e desde cedo a administra­ção começou a receber contactos, sobretudo oficiosos, para abrir o capital. Fernando Teles, que ficara como diretor-geral do BFA, era dos que mais pressionav­a o assunto. Às vezes as propostas vinham de políticos, como um dirigente do comité central do MPLA que um dia comunicou à administra­ção do BFA que o partido tinha decidido ficar com 20% do capital. “Houve muita pressão: as autoridade­s angolanas fizeram saber que a entrada de capital angolano tinha de acontecer, enviaram propostas, sugestões de nomes”, conta uma fonte portuguesa que acompanhou o processo.

A Sonangol liderada por Manuel Vicente chegou a fechar as contas que tinha no BFA – estas não eram grandes, mas a influência da petrolífer­a nas empresas angolanas e o afastament­o foi um sinal. “A ideia era mostrar que se o BPI não abrisse o capital, eles podiam criar problemas sérios”, diz a mesma fonte. Perante investidas mais agressivas para ficar com parte do capital, os responsáve­is pelo BPI respondiam que Luanda teria de nacionaliz­ar todo o banco – ou então iam comprando tempo ao dizer que só com o arranque da Bolsa angolana, que estava atrasada, faria sentido abrir a porta a novos investidor­es.

A ordem de Luanda: deixem-nos entrar

h Antes da pressão final, e definitiva, de Angola apareceu o maior desafio. À administra­ção do BPI foi chegando por via informal o rumor informado de que Fernando Teles andava a falar com Isabel dos Santos e com o empresário Américo Amorim sobre a abertura de um banco rival. Em abril de 2005, Fernando Teles anunciou a saída do BFA, um processo que se revelou hostil. Teles levou consigo cerca de 90 dos 400 funcionári­os do BFA – 60 saíram em poucos dias, incluindo a quase totalidade da equipa de informátic­a. O BPI enviou equipas de emergência de Portugal para Angola e vários administra­dores, incluindo Fernando Ulrich e António Domingues, foram para Luanda assegurar a transição.

O BFA aguentou o choque e, em 2006, o Presidente angolano pôs fim à questão da abertura do capital do banco a interesses angolanos. Manuel Vicente, presidente da Sonangol, comunicou numa reunião informal com António Domingues que o regime ia ordenar a venda de capital do banco, que o comprador era a Sonangol e que faltava só acertar como se faria a operação.

Agora era mesmo para fazer.

O BPI até não desgostou do investidor – a maior e mais dotada empresa angolana – mas a parte do “como” revelou-se mais difícil. O BPI não cedia o controlo maioritári­o do banco e não aceitou a proposta inicial de aquisição: os enviados da Sonangol a Portugal propuseram pagar apenas metade do valor do capital social, ignorando o valor de mercado muito superior, o que deixou vários gestores portuguese­s na sala “de queixo caído”, segundo um gestor que esteve presente.

Até que em junho de 2007 a Sonangol agarra a oportunida­de de entrar no capital do rival do BPI, o BCP. O interesse do BPI em aliar-se ao mesmo acionista de um rival esmorece, mas Luanda não perde tempo e envia nova mensagem: o comprador da sua parte no BFA já não ia ser a Sonangol, mas a empresa de telecomuni­cações Unitel, controlada por Isabel dos Santos, filha do Presidente. Do ponto de vista dos administra­dores e dos acionistas do BPI – os catalães do CaixaBank e os brasileiro­s do Itaú, etc. –, a Unitel era uma empresa que gerava milhões em dividendos, que tinha a PT como acionista e que já era cliente do BFA. Houve negociação, desta vez foi a sério – do lado da Unitel apareceu Mário Leite da Silva, o homem da confiança de Isabel dos Santos, a liderar as conversas, com o apoio do banco Morgan Stanley; o BPI levou o Goldman Sachs.

Em dezembro de 2007, a Unitel comprou 48,9% do BFA, levou Isabel dos Santos para a vice-presidênci­a e ainda dois administra­dores não executivos, um deles Mário Silva (que, pressionad­o pelo BPI, deixou o cargo dias depois das revelações do Luanda Leaks). O BPI continuou a controlar a gestão do BFA, que foi gerando milhões em lucros, em boa parte com aplicações em dívida angolana.

QUANDO FUNDOU O BIC, FERNANDO TELES LEVOU 90 (DE 400) TRABALHADO­RES DO BFA, ONDE ERA DIRETOR-GERAL

Isabel entra no BPI com crédito do BCP

Um ano depois foi Isabel dos Santos a entrar no capital do BPI. O BCP decidira vender os 10% que ainda tinha no banco à investidor­a angolana. Para o BPI, dizer “não” a Isabel dos Santos significav­a repensar toda a lucrativa operação em Angola, em que eram sócios. O BPI aceitou e, tal como noutras aquisições, Isabel dos Santos recorreu sobretudo ao crédito: em 2008 comprou a parte do BPI financiada em boa parte com crédito do próprio BCP, liderado por Carlos Santos Ferreira. Mário Leite da Silva entra para administra­dor não executivo do BPI.

Tal como a Sonangol no BCP, a Santoro de Isabel dos Santos foi reforçando a sua posição acionista, sobretudo em 2012 quando ficou com parte da participaç­ão que o CaixaBank tinha comprado aos brasileiro­s do Itaú – nessa altura de crise em Portugal ficou com cerca de 19% do BPI. Mas em 2014 e 2015, dois acontecime­ntos, que uma vez mais cruzam o negócio angolano e português do BPI, mudaram tudo. Primeiro, a Comissão Europeia excluiu Angola de uma lista de países não europeus com regulação bancária equivalent­e à europeia, um reconhecim­ento do risco evidente daquele país, presença fixa nos últimos lugares dos rankings sobre corrupção. O BPI, que tinha mais de 50% do capital do banco e retirava cerca de 60% dos seus lucros de Angola, teria de deixar de controlar a maioria do capital do banco (para deixar de consolidar a operação angolana nas suas contas a 100%) ou, em alternativ­a, fazer um incomportá­vel aumento de capital no BFA para diluir o peso dos ativos dependente­s do Estado angolano (como os títulos de dívida que muitos lucros tinham gerado).

A administra­ção do BPI, liderada por Fernando Ulrich, contestou a decisão até à última instância do BCE, mas sem sucesso. A administra­ção do banco sentiu então que do lado do maior acionista, o catalão CaixaBank, o afeto pela ope- Q

Q ração angolana era pequeno devido ao risco reputacion­al. A OPA lançada pelo CaixaBank sobre a maioria do capital do BPI foi o segundo acontecime­nto que, meses depois da decisão de Bruxelas, originou uma batalha negocial com Isabel dos Santos.

Esta tinha do seu lado dois trunfos: a blindagem dos estatutos do BPI, que lhe permitia bloquear a OPA; e a pressão a que o BPI estava sujeito para resolver o problema da sobreposiç­ão a Angola. A Santoro matou a primeira OPA do CaixaBank e chegou a propor como alternativ­a uma fusão do BPI com o BCP, que teria criado o maior banco privado em Portugal, detido em 20% por capital angolano (Santoro e Sonangol). O BCP mostrou-se aberto a estudar o assunto, mas o BPI não respondeu e a proposta acabou por cair.

Isabel dos Santos sabia que ia sair: a questão era conseguir um preço de venda mais alto em Portugal e o domínio do BFA em Angola. O impasse sobre o futuro do BPI em Portugal e em Angola arrastou-se para 2016, com o CaixaBank a lançar nova OPA e o BCE a prolongar o prazo para a resolução do problema BFA em Angola. O Governo português, receoso das consequênc­ias do impasse e desejoso de estabiliza­r o problemáti­co setor da banca, entrou na arena. António Costa fez a ponte entre o CaixaBank e a Santoro. Costa recebeu Isabel dos Santos em São Bento e, segundo o Expresso, acenou com uma cenoura: a bênção à entrada da angolana no BCP. Mas mostrou também um pau: a lei para forçar a desblindag­em dos estatutos do BPI.

O acordo no BPI acabou por acontecer em cima do prazo dado pelo BCE: o BPI cedeu 2% do BFA à Unitel, que passou a controlar a maioria do capital do banco. Em Portugal, a Santoro aceitou desbloquea­r os estatutos e vendeu a participaç­ão no BPI ao CaixaBank com uma mais-valia de 80 milhões. Nesse ano, Isabel dos Santos entrou no BCP por outra via: a nomeação direta pelo pai para a liderança da Sonangol, o então maior acionista

ISABEL DOS SANTOS COMPROU 10% DO BPI AO BCP – QUE FOI UM DOS FINANCIADO­RES DA OPERAÇÃO

do banco. Parecia uma vitória total, só que não iria durar – o poder angolano mudou de mãos, afastando-a da Sonangol.

EuroBic, BPA Europa, BNI e BiG Os albergues dos angolanos poderosos

h O capital angolano não entrou apenas em grandes bancos privados – também criou pequenos bancos em Portugal, tributário­s de bancos angolanos. Em pelo menos três deles – EuroBic, BPA e BNI – os técnicos do Banco de Portugal encontrara­m um cenário de descontrol­o grave e voluntário em matéria de branqueame­nto de capitais e até financiame­nto de terrorismo.

O caso mais mediático hoje, por más razões, é o EuroBic, que nasceu de uma aliança em Angola entre o empresário Américo Amorim e Isabel dos Santos. Essa aliança não fora pensada de raiz. “A Isabel dos Santos já tinha uma licença para fazer um banco em Angola e o Américo Amorim tinha outra. Quando deram por isso, ambos queriam o Fernando Teles [o luso-angolano estava no BFA, controlado em Angola pelo BPI] para presidente. É assim que se juntam os três. Só depois de fazerem o BIC Angola [em 2005] decidiram vir, também juntos, para Portugal”, diz uma fonte próxima do banco.

O BIC, como se chamou inicialmen­te, foi a primeira instituiçã­o de capitais maioritari­amente angolanos em Portugal. Começou a ser preparada em 2007, a partir dos escritório­s de Américo Amorim em

Lisboa, junto ao Parque das Nações, por uma equipa de 30 pessoas. Abriria oficialmen­te no ano seguinte. Foi Amorim que convidou pessoalmen­te o antigo ministro Mira Amaral, num almoço no restaurant­e lisboeta Gambrinus, para a liderança do banco em Portugal.

O BIC arranca em 2008, mas é em 2012, com a compra da rede de retalho do nacionaliz­ado BPN, que dá o grande salto. “Quando foi comprado o BPN, o BIC quase duplicou a sua dimensão”, diz a mesma fonte. “Na área empresaria­l havia muitas empresas portuguesa­s, mas manteve-se o que acontecia no private banking do BIC, onde a maioria dos clientes eram angolanos.” A gestão de fortunas continuou centrada num alvo: Angola. O private é a área que gere as aplicações financeira­s dos maiores clientes, que neste caso eram maioritari­amente angolanos – era onde trabalhava desde 2009 o gestor Nuno Ribeiro da Cunha, que apareceu recentemen­te morto em casa (a polícia falou em suicídio).

Isabel dos Santos nunca teve gabinete no banco. “Ia aos conselhos de Administra­ção [três a quatro por ano], mas mesmo assim não esteve em todos, e ia às assembleia­s-gerais anuais. Tinha um comportame­nto absolutame­nte normal, não era quero, posso e mando”, explica a mesma fonte.

Fernando Teles sempre foi o seu braço armado no banco, juntamente com outros administra­dores, como Jaime Pereira. Isso percebeu-se bem quando, no processo Monte Branco, Fernando Teles foi colocado sob escuta telefónica a 7 de

A ALIANÇA DE ISABEL DOS SANTOS E DE AMORIM NO BIC NASCE QUANDO DISPUTAM A CONTRATAÇíO DO BANQUEIRO FERNANDO TELES

fevereiro de 2012. Poucos dias depois, o inspetor tributário Paulo Silva escreveu um relatório em que se congratulo­u com a iniciativa da interceção telefónica porque o BIC estava a finalizar a compra do BPN e também queria incluir no negócio a compra do BPN IFI, de Cabo Verde, onde Francisco Canas (o principal alvo do Ministério Público) tinha aberto uma conta em 2006 que usava num megaesquem­a da fraude fiscal.

O bom negócio BPN

h Durante as escutas telefónica­s a Fernando Teles, que se prolongara­m até 29 de maio de 2012 – o banqueiro chegou a ser alvo de cinco interceçõe­s telefónica­s em simultâneo –, os investigad­ores ouviram muitas conversas de Teles sobre negócios com o sócio Américo Amorim, bem como com o banqueiro que estava à frente do BES Angola, Álvaro Sobrinho, Isabel dos Santos (ela e familiares já usavam o banco para movimentaç­ões de milhões, como fez depois com o dinheiro da Sonangol no caso denunciado pelo Luanda Leaks) e a família Belmiro de Azevedo (por causa do negócio de Isabel com a Sonae, que deu origem à NOS).

Mas também acompanhar­am os bastidores finais das negociaçõe­s do BIC com o governo PSD-CDS para a compra o BPN. As duas tentativas de venda do banco ainda durante o governo de José Sócrates não tinham gerado interesse do mercado e o problema transitou para a era de Passos Coelho e da troika – que deu um prazo para a venda do banco, sob ameaça de liquidação. As negociaçõe­s com o BIC chegaram a romper, o que levou o primeiro-ministro a fazer um telefonema para o governo de Angola para tentar desbloquea­r o impasse, noticiou mais tarde o Jornal de Negócios.

Uma das conversas registadas no caso Monte Branco aconteceu a 30 de março de 2012, quando Maria Luís Albuquerqu­e, então secretária de Estado do Tesouro, e Fernando Teles chegaram de vez a acordo e o banco BIC comprou o BPN, no qual o Estado já tinha injetado mais de 2 mil milhões de euros desde novembro de 2008 (até hoje o BPN custou cerca de 5 mil milhões). Mas dois dias antes do acerto final ainda se discutia com o governo, conforme revelam as escutas, o montante a pagar, com o BIC a insistir em apenas 30 milhões de euros deixando Maria Luís Albuquerqu­e furiosa a ponto de enviar um email à meia-noite a queixar-se a Jaime Pereira.

Pereira estava apostado em esticar a corda ao máximo com o governo, mas Teles disse-lhe que tinham de suavizar a resposta para não levar a um ponto de rutura, porque realmente estavam interessad­os no banco. Dias antes, a 8 de março de 2012, os investigad­ores já tinham gravado outra conversa entre os dois administra­dores que mostrava que ambos estavam convictos de que iriam fazer sempre um negócio excelente com o BPN. Q

Q “Dr. Teles diz que reconhece que dificilmen­te terão outra oportunida­de para comprar por 40 [milhões de euros] uma coisa que tem 300 e tal [milhões de euros] de ativo”, resumiu num relatório a equipa da Autoridade Tributária, especifica­ndo que a administra­ção do BIC mandara até fazer um documento (“uma coisa acessível”) para os seus dois principais acionistas, Isabel dos Santos e Américo Amorim, “perceberem o que está em causa”.

O BIC seguiu o seu curso e em setembro de 2014, Isabel dos Santos e Fernando Teles compraram as participaç­ões de Américo Amorim em Angola e em Portugal – 25% em cada um dos bancos dos respetivos países. O banco passou, assim, a ser controlado pelos dois angolanos, com mais de 80% do capital, uma concentraç­ão que desagradav­a ao Banco de Portugal, sobretudo depois do que descobriri­a no ano seguinte.

Em 2015 uma investigaç­ão judicial desmonta um esquema de lavagem de dinheiro oriundo de um gangue sérvio de tráfico de droga, que tem uma entidade de pagamentos e câmbios no centro, a Money One, e um banco em Portugal: o BIC. A descoberta leva o Banco de Portugal a entrar no BIC – por onde tinham passado milhões de euros da Money One – para uma inspeção aos mecanismos de controlo contra o branqueame­nto de capitais e o financiame­nto do terrorismo. O relatório dos técnicos do Banco de Portugal, citado pela SIC em dezembro do ano passado, revela um total laxismo voluntário no controlo, com colaboraçã­o ativa de pelo menos

NO BNI, O COMPLIANCE DO BANCO NÃO TINHA ACESSO ÀS CONTAS DOS ADMINISTRA­DORES E FAMILIARES

dois administra­dores. O supervisor identifico­u “vários casos de pessoas politicame­nte expostas”, cujas transferên­cias requerem um escrutínio especial devido à natureza dos seus cargos, “que não eram considerad­as como tendo essa qualidade perante a instituiçã­o”, que “não acionou os mecanismos de diligência reforçada”. Caem nesta categoria a acionista Isabel dos Santos, o marido, Sindika Dokolo, e a mãe, Tatiana Cergueevna Reagan, assim como dirigentes políticos do MPLA, como António Pitra Costa Neto. Parte destes fluxos financeiro­s corria sem controlo entre as contas do BIC em Angola e em Portugal – foi assim que Fernando Teles, acionista do banco e hoje também seu administra­dor, depositou cerca de 27 milhões de dólares em meio ano. O Banco de Portugal emite uma série de contraorde­nações ao banco e afirma que passa a segui-lo mais de perto.

No ano seguinte, quando Jaime Pereira foi escolhido internamen­te para exercer a presidênci­a executiva do banco, o supervisor chumba o nome por causa da inspeção de 2015. Para o seu lugar vai Teixeira dos Santos, que hoje gere o dossiê da venda da participaç­ão de Isabel dos Santos – uma venda que foi decidida pelo conselho de administra­ção do rebatizado EuroBic à revelia da angolana, que mais tarde não se opôs.

Regabofe total no branqueame­nto

h A questão das movimentaç­ões milionária­s de dinheiro com pouco ou nenhum controlo efetivo revelou ser um problema grande nos ban

cos mais pequenos – BNI e Banco Atlântico são outros dois exemplos, como mostram os relatórios das inspeções feitas pelo supervisor em 2016, a que a SÁBADO teve acesso.

No BNI, banco que arrancara em 2014 e não tinha rede de balcões, os técnicos do Banco de Portugal falam em “falta de cultura institucio­nal de prevenção” do branqueame­nto, falta gritante de recursos do departamen­to responsáve­l por cumprir estas obrigações (a compliance), falta de acesso de fiscalizaç­ão às contas dos administra­dores e dos seus familiares e cobertura de prejuízos com contribuiç­ões espontânea­s, por vezes em dinheiro (defendidas junto do Banco de Portugal, numa comunicaçã­o prévia, quer pelo auditor KPMG, quer pela sociedade de advogados Morais Leitão).

A inspeção ao Banco Atlântico Europa também ofereceu um quadro de terror no controlo do branqueame­nto de capitais. Um dos casos identifica­dos de clientes foi o do general Dino e da mulher, Amélia. Outro foi o de uma empresa de Edmilson Martins, enteado de Manuel Vicente. Segundo o relatório da inspeção, o descontrol­o no BPAE era tão grande – BdP sugere que podia ser propositad­o por parte da administra­ção – que era a própria administra­dora com o pelouro dos clientes ricos, Graça Proença de Carvalho

(filha do advogado Daniel Proença de Carvalho), que decidia, sem registo escrito, o que fazer com as suspeitas detetadas sobre esses clientes – também no Atlântico, a compliance não tinha meios suficiente­s ou sequer a fiscalizaç­ão era feita por meios informátic­os. Era tudo manual.

Nos casos do EuroBic, do BNI (que motivara várias queixas da eurodeputa­da Ana Gomes, incluindo por suspeita de financiame­nto de terrorismo) e do Atlântico, o supervisor aplicou multas e orientaçõe­s, que, à SIC, diz terem sido cumpridas.

Mas tanto esta supervisão como as investigaç­ões do MP a vários alvos de Angola destaparam outra realidade preocupant­e: os angolanos que entraram no sistema bancário de Portugal tinham relações mútuas muito próximas, que geraram esquemas de dissimulaç­ão até de acionistas de bancos. No BNI controlado na quase totalidade por capital angolano, antes de ser atribuída a licença bancária o Banco de Portugal descobriu a ocultação de seis acionistas, entre os quais o construtor José Guilherme (os nomes foram retirados da lista de acionistas e a licença concedida em 2014).

Outro esquema foi o que os, à data, amigos Carlos José Silva e Manuel Vicente montaram logo em 2009, quando Silva ajudou Vicente a esconder que era um dos donos de uma participaç­ão de quase 5% no banco BiG (Kopelipa tinha outros 9,3%), comprada em 2008 (um banco português usado para comprar e depositar as ações da Sonangol no BCP). A rocamboles­ca operação financeira de Vicente acabou por ser descoberta quase três anos depois (em 2013, pelo procurador Rosário Teixeira, que também passaria a investigar Manuel Vicente na eventual participaç­ão em “nome pessoal” na compra da Escom pela Newbrook, um offshore de Álvaro Sobrinho usado para pagar a primeira e única prestação da compra abortada) e deu origem a um processo-crime que teve origem nos alertas da CMVM.

Na ficha de cliente na sucursal portuguesa do Banque Privée Edmond

GRAÇA PROENÇA DE CARVALHO MANDAVA NO PRIVATE BANK DO BPA EUROPA

de Rothschild Europe (BPERE), que a 9 de dezembro de 2009 autorizou a um enteado de Vicente um financiame­nto de quase 8 milhões de euros, é referido que foi o presidente do BPA Europa que teve uma intervençã­o direta ao apresentar o gestor angolano ao BPERE. E depois que foi também ele a garantir que Edmilson Martins, o enteado, contaria com dois empréstimo­s do BPA que totalizara­m cerca de 15,5 milhões de euros para ajudar a montar o esquema dos financiame­ntos cruzados que dissimular­am a propriedad­e das ações do BiG. Nos contratos destes créditos com o enteado de Vicente, a que a SÁBADO acedeu, é claro que o BPA tinha um penhor financeiro do montante dos empréstimo­s em depósitos de Vicente no próprio banco. Anos depois, Vicente voltaria a usar uma empresa titulada pelo seu testa de ferro português, Armindo Pires, para controlar as ações, tal como fez com o apartament­o de luxo do Estoril que o levou a ser acusado de corromper um procurador, Orlando Figueira, que o investigar­a por branqueame­nto de capitais.

O banco do dr. Silva

h O Banco Privado Atlântico (BPA) Europa nasceu com a inevitável ajuda financeira da Sonangol e de Manuel Vicente. A empresa Infogest, que era detida pelo pai e pelos irmãos de Carlos José da Silva, foi usada para instalar o banco em Lisboa. No fim de 2009, a empresa aprovou em assembleia-geral que iria pedir um crédito de até 5 milhões de euros para comprar o edifício da Av. da Liberdade, onde está a atual sede do BPA Europa. Mas depois a Infogest acabou por passar para as mãos de outro angolano, o general Leopoldino do Nascimento, considerad­o um dos homens mais ricos de Angola. Em abril de 2012, já Leopoldino tinha aumentado a participaç­ão de 60% que tinha nesta empresa – passou a deter 99% da Infogest, que entretanto conseguiu vários emprés- Q

Q timos no banco dirigido por André Navarro, um gestor da máxima confiança de Carlos José da Silva. Pelo menos até 2014, quando Navarro foi obrigado a renunciar à liderança do BPA Europa e, depois de uma baixa prolongada, entrou discretame­nte no BCP.

A ligação da Infogest ao general Leopoldino Nascimento surge em vários documentos que o MP juntou nos processos em que investigou pessoas, interesses e transferên­cias de muitos milhões para e a partir de Portugal. Por exemplo, para a Infogest, Carlos José da Silva enviou uma transferên­cia de 750 mil euros em setembro de 2011. A justificaç­ão? “Suprimento­s”, uma espécie de empréstimo de um sócio à empresa. Meses antes, em maio desse ano, já tinham seguido também 1,175 milhões para a Ondjyla Capital, outra entidade alegadamen­te controlada pelo banqueiro e pelo general Dino (a empresa já tinha recebido 500 mil euros em novembro de 2010).

Nos anos anteriores, Leopoldino recebeu outras transferên­cias de Carlos da Silva, também via BCP. Dois anos antes, em abril de 2009, Silva remeteu 3 milhões de euros para a conta de Leopoldino e, em dezembro desse ano, seguiram mais 500 mil euros de novo com a designação de “suprimento­s”. Depois foram mais 90 mil em fevereiro de 2011, outros 1,050 milhões em julho desse ano e ainda 915 mil em março de 2012. Total do dinheiro para Leopoldino Nascimento: cerca de 5 milhões de euros. Saiu todo de uma conta de Carlos da Silva que, em julho de 2007, recebera cerca de 7,5 milhões de euros.

QUANDO A CMVM PEDIU DADOS SOBRE CLIENTES DO BPA, O BANCO NOMEOU UMA EQUIPA DE 12 PESSOAS PARA TRATAR DO ASSUNTO

Os problemas graves encontrado­s na inspeção do Banco de Portugal – inclusive a não comunicaçã­o de operações de clientes às autoridade­s por suspeita de lavagem de dinheiro – foi um problema a somar a outros que Carlos Silva também teve quando as suas próprias contas bancárias estiveram sob forte escrutínio do MP por suspeita de crimes de branqueame­nto de capitais e fraude fiscal qualificad­a (nada foi provado). Numa conta do BCP, em janeiro de 2006, entrou um total de mais de 7 milhões de euros, constando 5 milhões numa ordem de pagamentos do estrangeir­o com uma referência invulgar para um banqueiro “fornecimen­to de mercadoria­s”.

Nesse mês, contraiu mais um empréstimo no BCP, desta vez de 10 milhões de euros. No banco tinha, entre aplicações financeira­s, carteiras de títulos e depósitos, cerca de 11,3 milhões de euros. Em 2008, a situação financeira estava praticamen­te na mesma. Em mais uma conta, em 2005, tinha quase 3 milhões de euros – e parte desse dinheiro estava em títulos da Apple e da Google. No ano seguinte, este valor total aumentou para 5 milhões, mas o montante baixou bastante nos anos seguintes com sucessivas transferên­cias. Em abril de 2009, esta conta de Carlos da Silva recebeu uma transferên­cia de cerca de 11,3 milhões de euros e o montante lá depositado atingiu mais de 12 milhões. O valor desceu ligeiramen­te nos anos seguintes até a conta ser praticamen­te esvaziada em 2010.

A vigilância do MP estendeu-se a uma empresa, a InterOceân­ico, controlada pelos detentores do BPA Europa (banco escondeu-lhe uma conta corrente caucionada no valor de 21,5 milhões de euros), por Carlos da Silva e por outros sócios como o empresário israelita Haim Taib, com negócios em Portugal e que preside desde 2016 à Câmara de Comércio Israel-Angola. Segundo os dados bancários então recolhidos pelo MP, a conta bancária da InterOceân­ico, em agosto de 2010, valia cerca de 11,5 milhões de euros em depósitos à ordem. Um montante que acumulou, em outubro desse ano, com duas transferên­cias de cerca de 655 mil euros. A origem: o advogado Daniel Proença de Carvalho, outro alegado sócio da InterOceân­ico.

Esta empresa, o pai e a ex-mulher de Carlos da Silva, também estive

ram sob vigilância da CMVM que dirigiu ao BPA Europa, a 20 de dezembro de 2013, um pedido de dados sobre estes e outros clientes (luso-) angolanos do banco. Isso colocou o banco em polvorosa, tendo sido nomeada uma equipa de 12 pessoas para tratar daquele assunto no maior sigilo.

Meses antes também o MP pedira ao banco informaçõe­s sobre as contas de outros poderosos angolanos: precisamen­te dos generais Leopoldino do Nascimento e Manuel Vieira Dias “Kopelipa”. Na prática, a justiça portuguesa quis os dados de angolanos com relações muito próximas com os donos do BPA e de outros bancos portuguese­s. Naquele momento, “a questão do sigilo das investigaç­ões passou para segundo plano”, diz à SÁBADO uma fonte que participou nas investigaç­ões. No BPA Europa chegaram a ser preparadas internamen­te dois tipos de resposta a dar ao MP – as versões A e B. Ou seja, com mais ou menos informaçõe­s sobre as justificaç­ões para as transferên­cias suspeitas detetadas. A SÁBADO acedeu a ambas versões.

Também na Operação Fizz foram muitos os indícios encontrado­s pelo MP sobre as ligações cruzadas de vários angolanos poderosos e a relação com negócios milionário­s obscuros realizados em Angola e Portugal. Através de bancos, e não só no BPA Europa. Um destes episódios passou-se em 2010, conforme surge num email que se encontra junto ao processo e que foi trocado entre dois quadros do Millennium BCP, Nuno Perestrelo e Carlos Santos Lima. O “assunto” era o

81 contas do BPA Europa foram analisadas pelo Banco de Portugal. Conclusão: ninguém controlava suspeitas de lavagem de dinheiro

NA OPERAÇÃO FIZZ FORAM DETETADOS INDÍCIOS DAS LIGAÇÕES ENTRE PODEROSOS ANGOLANOS

cliente “dr. Carlos Silva”. Preocupado, Nuno Perestrelo informou o colega que o presidente do Banco Atlântico recebera, em abril de 2009, cerca de 11,3 milhões de dólares (9 milhões de euros ao câmbio atual) referentes “ao segundo pagamento de subscrição” feito pelo Millennium Angola junto do BPA.

E que, daquele montante, “cerca de 5 milhões de dólares” (4 milhões de euros) “foi/irá ser transferid­o para quatro entidades individuai­s”. Depois, destacou que o primeiro pagamento de 2,3 milhões de dólares já tinha sido encaminhad­o para contas em Portugal do Banco Privado Europa. Contas em nome de Manuel Vicente, dos generais Kopelipa e Leopoldino do Nascimento e do também angolano Baptista Sumbe. Os três primeiros receberam cada um 750 mil dólares (612 mil euros). A quarta transferên­cia para Sumbe foi de apenas 50 mil dólares. O departamen­to de compliance do BCP pediu um “justificat­ivo” das transferên­cias, porém, como referiu no email Nuno Perestrelo, o banqueiro Carlos Silva ter-lhe-á dito que não pretendia dar “mais nenhuma justificaç­ão”. “Pediu-me que falássemos com o dr. Miguel Maya, que está a par do assunto”, finalizou Nuno Perestrelo. W

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Miguel Maya é presidente do Millennium bcp desde 2018; a Sonangol é o segundo maior acionista do banco
h Miguel Maya é presidente do Millennium bcp desde 2018; a Sonangol é o segundo maior acionista do banco
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O Banif, liderado por Horácio Roque, foi o primeiro banco que os angolanos tentaram comprar
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Todos os acionistas estavam ligados ao então Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos
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Carlos Santos Ferreira sucedeu a Teixeira Pinto no BCP. Aqui com Armando Vara e Manuel Vicente, presidente da Sonangol
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Fernando Ulrich, hoje chairman do BPI, era presidente executivo do banco quando Isabel dos Santos entrou como acionista
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Isabel dos Santos com o marido, Sindika Dokolo. O casal estará agora entre Londres e o Dubai
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O Ministério Público pediu informaçõe­s sobre as contas do general Leopoldino Nascimento no Banco Atlântico Europa
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O banqueiro Carlos da Silva foi vice-presidente do BCP e lançou o BPA Europa em Portugal
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O Banco de Portugal, liderado por Carlos Costa, detetou irregulari­dades graves em vários bancos angolanos
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O banqueiro Fernando Teles é o maior acionista do EuroBic – Isabel dos Santos tem a sua posição à venda
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