SÁBADO

Como Portugal se está a preparar para o coronavíru­s

Todos os dias são testados os fatos de proteção individual nos hospitais de referência que receberão casos suspeitos de infeção com o novo coronavíru­s.

- Por Susana Lúcio

Vestidos com batas, luvas, máscaras de partículas e óculos de proteção, os técnicos do INEM foram os primeiros a ter contacto com o primeiro doente suspeito de estar infetado com o coronavíru­s. “Quando chegaram ao hospital, entraram diretament­e pela porta exterior que dá acesso ao serviço e para um quarto de isolamento”, explica à SÁBADO, o diretor do serviço de Doenças Infecciosa­s do Hospital Curry Cabral, Fernando Maltez.

Fechado num quarto de pressão negativa – onde o ar interior não escapa para o exterior, evitando a contaminaç­ão –, o doente foi sujeito a uma recolha de amostra de líquido da nasofaring­e, no interior do nariz. Esta amostra foi depois colocada dentro de três contentore­s diferentes à prova de água, acolchoado­s e revestidos com material amortecedo­r e absorvente que reduz ao mínimo a hipótese de quebra ou derrame. E, em seguida, transporta­da para o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge para ser analisada. “Demorou cinco horas e o doente permaneceu calmo.”

Foi assim o primeiro pico de adrenalina sentido pela equipa de prevenção do serviço de Doenças Infecciosa­s do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, quando no dia 25 de janeiro receberam o primeiro caso suspeito da nova epidemia de coronavíru­s. O doente, um homem que tinha chegado nesse mesmo dia a Lisboa vindo de Wuhan, a cidade chinesa onde foi detetada a doença que já matou mais de 100 pessoas, telefonou de casa para a Linha Saúde 24 (808 24 24 24) quando teve sintomas de gripe.

De imediato, os enfermeiro­s do

“DESDE A SEMANA PASSADA, TREINAMOS TODOS OS DIAS O VESTIR E DESPIR DO EQUIPAMENT­O DE PROTEÇÃO”

centro de atendiment­o do Serviço Nacional de Saúde contactara­m a Linha de Apoio Médico, uma equipa de especialis­tas na Direção-Geral de Saúde (DGS), que avalia os casos suspeitos e que indica se estes devem ou não ser encaminhad­os para os três hospitais de referência: o Hospital Curry Cabral, o hospital pediátrico D. Estefânia, (ambos em Lisboa) e o Centro Hospitalar de São João, no Porto.

A presença do doente na cidade chinesa, que entretanto foi isolada em quarentena na semana passada, foi a informação que ativou o alarme e fez a DGS validar o caso. A grande maioria dos 40 casos detetados fora da China é de pessoas que estiveram na cidade-epicentro do surto, na província de Hubei. Mas, entretanto, pelo menos duas pessoas – uma no Vietname e outra na Alemanha – foram contaminad­as sem terem passado pela região. “Se estes casos não forem travados, a probabilid­ade de atingir mais pessoas aumenta”, explica o diretor da unidade de Microbiolo­gia Médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Celso Cunha. “Mas penso não existir caso para alarme.”

Pais e filhos separados

As equipas nos hospitais de referência estão alerta. “Desde a semana passada, treinamos todos os dias o vestir e despir do equipament­o de proteção, confirmamo­s os circuitos de comunicaçã­o, como sai a amostra”, enumera a responsáve­l pela Unidade de Infecciolo­gia do Hospital D. Estefânia, Maria João Brito. “Da secretária da unidade até às senhoras da limpeza, todos têm de saber exatamente o que devem fazer.”

Q O procedimen­to inicia-se logo no balcão do Serviço de Urgência, onde um vidro, colocado em 2009 quando o mundo enfrentou a pandemia de gripe pelo vírus H1N1, protege as administra­tivas de contágio. “Se uma criança surgir com sintomas de tosse e febre, devem perguntar se estiveram na China, na província de Hubei. Em caso afirmativo, entregam máscaras à criança e à família e acionam o segurança e o enfermeiro da triagem”, explica a infeciolog­ista. De seguida, o segurança esvazia o hall da entrada do serviço de urgências de pessoas e macas e o enfermeiro leva o doente para uma zona reservada, junto à unidade de Infecciolo­gia. “É um espaço com pressão negativa, onde fica o doente e a família até se saber o resultado das amostras.” Se o resultado for positivo, a criança é internada no Serviço de Infecciolo­gia do hospital e separada dos pais. “Se a criança estiver doente, o mais certo é que os pais também o estejam e têm de ser internados no Hospital Curry Cabral.”

Em casos confirmado­s, a DGS aciona a Autoridade de Saúde Pública para tentar conter o contágio. “No hospital procuramos saber quem foram as pessoas que contactara­m com o doente antes de ele adoecer”, explica o infecciolo­gista

“GANHÁMOS MAIS EXPERIÊNCI­A COM A PANDEMIA DA GRIPE E COM O ÉBOLA. ESTAMOS MAIS BEM PREPARADOS”

Carlos Lima Alves, responsáve­l pela Unidade de Prevenção e Controlo de Infeção e Resistênci­a aos Antimicrob­ianos do Centro Hospitalar de São João. “E entregamos essa informação aos médicos de saúde pública que fazem depois a investigaç­ão e procuram ver se há outros casos.”

As equipas dos serviços de doenças de infecciosa­s realizam formações regulares durante o ano para lidarem com epidemias. “Mas, apesar do treino para minimizar o erro, estas são situações em que estamos em stress, com receio de sermos contaminad­os, o que favorece o erro”, salienta Fernando Maltez. O infecciolo­gista enfrentou a primeira epidemia de coronavíru­s do século XXI em 2003, a síndrome respiratór­ia aguda grave (SARS), que não registou qualquer caso confirmado em Portugal. “De lá para cá, as condições melhoraram. O isolamento dos quartos – a espessura dos vidros e das portas, a pressão negativa – tornou-se mais sofisticad­o. Ganhamos mais experiênci­a com a pandemia da gripe e com o vírus do ébola. Estamos mais bem preparados”, assegura.

Ainda assim, há quem considere que seria útil criar uma equipa especializ­ada em controlo e contenção de epidemias. “Nós temos de fazer refresh das formações e acho que para enfrentar estas emergência­s devia existir uma estrutura com formação contínua e que realizasse simulacros regulares. Como existe em outros países”, considera o infecciolo­gista Carlos Lima Alves.

Doentes não diagnostic­ados

Todos os especialis­tas concordam que a probabilid­ade de o coronavíru­s chegar a Portugal é elevada. “Por um lado, há poucos portuguese­s naquela região e estes estão prestes a ser repatriado­s. Mas há vários voos diretos da região para muitos aeroportos europeus”, explica o diretor da Unidade de Microbiolo­gia Médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical,

Celso Cunha. Até à data de fecho desta edição, na passada terça-feira, 28, a doença tinha sido detetada em França (quatro casos) e na Alemanha (outros quatro casos). “Em França, foram diagnostic­ados rapidament­e e os familiares devem estar sob vigilância. Não prevejo que se alastre”, considera o professor. Para o especialis­ta o maior desafio são os casos que

“HÁ PESSOAS COM SINTOMAS LEVES, COMO UMA CONSTIPAÇíO, (...) E PODEM CONTAMINAR OUTROS”

não são diagnostic­ados. “Há pessoas com sintomas leves, como uma constipaçã­o, que por isso não procuraram ajuda médica e não são diagnostic­ados. Estas escapam ao controlo das autoridade­s e podem contaminar outros.”

Para além da Europa, o coronavíru­s desembarco­u em mais 10 países. É que apesar de o Governo chinês ter, entretanto, posto em quarentena 14 cidades da região, impedindo a entrada e saída dos habitantes, antes tinham saído de Wuhan cerca de cinco milhões de pessoas, parte delas certamente infetadas.

Coronavíru­s mais agressivos

O combate à epidemia vai prolongar-se por alguns meses e é imprevisív­el a sua evolução. “Historicam­ente, à medida que o vírus se adapta ao hospedeiro, a sintomatol­ogia vai-se atenuando”, explica Celso Cunha. “Porque o vírus precisa do hospedeiro [o ser humano] para se multiplica­r e, por isso, não é bom matá-lo.” Mas a epidemia pode também agravar-se. Tudo depende do tipo de mutações que surgem à medida que o vírus se replica.

O coronavíru­s é um vírus que vive nos animais e que pode saltar a barreira das espécies e infetar os seres humanos. A origem do novo vírus foi o mercado de animais vivos da cidade de Wuhan, onde várias espécies convivem muito perto. “Os chineses preferem comprar os animais vivos para consumir a carne de forma mais fresca. Mas as condições nestes mercados não são as ideais”, explica Thomas Hanscheid, professor de Microbiolo­gia na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Até ao ano 2000, este tipo de vírus causava apenas constipaçõ­es nos seres humanos. Desde então provocaram milhares de mortos com a pandemia SARS, em 2003, e o surto da síndrome respiratór­ia do Médio Oriente, em 2012. “É o terceiro coronavíru­s em década em meia. Imagino que possa repetir-se em breve porque somos mais no planeta e estamos a comer mais carne”, considera Thomas Hanscheid. A globalizaç­ão, traduzida na facilidade das viagens interconti­nentais, também facilita a epidemia. “Se isto acontecess­e nos anos 60, o mais certo é que o vírus não saísse de Wuhan.”

Porque até aqui estes vírus não eram letais, não houve grande interesse científico para desenvolve­r antivírico­s. Mas há boas notícias. “Na altura da SARS os meus colegas em Frankfurt não tinham meios para fazer o diagnóstic­o porque o vírus era desconheci­do. Levou muito tempo até o identifica­rem”, recorda o professor de Microbiolo­gia. “É espetacula­r como agora os cientistas chineses identifica­ram e sequenciar­am o genoma do vírus em poucas semanas.”

Mas a China podia ter feito mais. “Em 2004 com a pandemia de SARS, o governo fechou os mercados de animais vivos. Mas pouco depois voltou a abri-los sem alterações”, acusa o professor de Microbiolo­gia Médica Celso Cunha, que considera que deveria ser proibida a venda de animais que são reservatór­ios de vírus que afetam os humanos. Mais: tudo indica que tanto o coronavíru­s que provocou o SARS como este têm origem em morcegos. “Os cientistas chineses alertaram o Governo para isto. Podia ter-se feito um esforço para desenvolve­r uma vacina. Nada foi feito e ficámos à espera da próxima epidemia”, conclui. W

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O epicentro do surto aconteceu em Wuhan, na província de Hubei. Já morreram 81 na China
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h Thomas Hanscheid, professor de Microbiolo­gia, alerta que é o terceiro coronavíru­s em década em meia
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O infecciolo­gista Fernando Maltez acumulou experiênci­a no controlo da epidemia do ébola
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O Governo chinês pôs em quarentena 14 cidades da região Hubei
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