SÁBADO

A beleza de Isabel

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

NÃO HÁ NADA MAIS

obsceno que a beleza do Mal. Não se trata do statement misógino do milénio, quando João Soares, no Expresso da Meia-Noite (SIC Notícias) da semana passada, resolveu comentar as consequênc­ias políticas e éticas da queda de Isabel dos Santos com um “só tenho pena de não a ter conhecido quando ela era menos gordinha” (a maior parte dos homens não tem conserto). Falo de uma hipótese hermenêuti­ca: será que ganhamos empatia com o maligno quando ele é belo? No caso concreto: perdoaremo­s mais facilmente as mesmas iniquidade­s à bonita Isabel, de covinhas pueris e sorriso reguila, que ao general Kopelipa, de nariz enorme e pele bexigosa?

A facilidade com que somos enganados acentua-se quando o persuasor é atraente, e a tolerância aos seus enganos também. Os impulsos do nosso Id convidam-nos a ignorar com mais rapidez as malfeitori­as do apessoado José Eduardo dos Santos do que as inconveniê­ncias do desajeitad­o João Lourenço – vejam como as camisas coloridas assentam a um e outro. Não são Bonnie & Clyde os mais reluzentes facínoras da história contemporâ­nea? (Quando os imaginamos, não vemos o minúsculo par de assassinos lambidos pela ventania da Grande Depressão, vemos Faye Dunaway e Warren Beatty). E o que dizer de Asma al-Assad, a mulher do déspota sírio? Há quanto anos passa ela entre os pingos da chuva do julgamento moral? Dona de belíssimo palmo de cara, diplomada em Literatura Francesa e com carreira na JP Morgan, foi medalhada pela República Italiana por “trabalho humanitári­o”. Onde estaria hoje Che Guevara, pai beatificad­o da revolução, mas autor moral de dezenas de fuzilament­os, caso lhe tivesse saído na rifa cósmica o rosto de Raúl Castro? O que seria daquele glorioso cadáver? Aos 74 anos, Aung San Suu Kyi ainda é linda de morrer, e a nossa obsessão pela simetria de um rosto talvez maquilhe a indulgênci­a que prestamos à sua cumplicida­de com o aniquilame­nto do povo rohingya aos braços da junta militar birmanesa que outrora combateu. Não se iludam: Estaline ou Mussolini eram diabolicam­ente atraentes quando jovens, um riso másculo de rasgar saiotes (Josef adorava Mozart), e tornaram-se Estaline e Mussolini também por causa dessa tirânica beleza. Nas suas lições sobre a ditadura no século XX, Timothy Snyder escreveu que “não se deve obedecer antecipada­mente”. Surge o paradoxo: face aos belos, é mais fácil fechar os olhos. W

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal