SÁBADO

VALÉRIOS: UMA FAMÍLIA DE INSOLVENTE­S

Pai, mãe, filho e filha. Todos estão ou estiveram falidos. Uma história que começa com cortiça, envolve bancos, aviões – e clientes famosos, como o Benfica.

- Por Ana Taborda

As falências de quem esteve na fundação do BCP: pai, mãe, filho e filha. Os negócios envolviam cortiça, bancos e aviões

Ainauguraç­ão do dúplex T7 no Campo Grande, com mais de 600 m2, foi feita à moda dos Valério: em grande. “Deviam estar lá umas 200 pessoas e a atração principal era uma banheira de hidromassa­gem colocada no meio da sala”, conta um empresário que conheceu a família nos anos 80, pouco antes de comprarem o apartament­o de dois pisos em Lisboa. Não era a única casa de luxo de José Jorge Valério, um dos acionistas fundadores do BCP. “Passava muitas vezes férias em Vale do Lobo, numa moradia com saída direta para a praia”, conta uma pessoa próxima da família. E na sua herdade do Montijo, cidade onde nasceu e se fez rico, até o cão – Falco, um São Bernardo – tinha direito a tratamento VIP: a casota estava equipada com ar condiciona­do.

Os Valério eram ricos com vida de ricos. Conduziam Ferraris, Bentleys e Porsches, jantavam fora quase todos os dias – no Café In, XL, Vela Latina, Alfoz e em muitos outros –, davam festas memoráveis e, diz um amigo, pagavam muitas vezes a conta de quem se juntava a eles à mesa. Amélia,

a mulher de sempre de José Valério, já há mais de 30 anos dava nas vistas no Montijo com um casaco de vison comprido, quase até aos pés, que chegou a levar ao mercado da cidade para fazer compras. Quando casou, adotou os dois apelidos do marido, antecedido­s por um “de”: passou assim a chamar-se Amélia Maria Cavaco Gouveia de Jorge Valério. Os dois filhos, Hugo e Vanessa, herdaram os gostos caros dos pais: ainda hoje são vistos a conduzir Porsches – ele um 911, ela um Cayenne – e frequentam restaurant­es famosos da capital. Mas há pelo menos mais uma herança comum na família: os pais já estiveram insolvente­s, os filhos ainda estão.

No dia 16 de novembro de 2016, no famoso dúplex que é morada dos quatro, um edital colocado à porta declarava oficial – e pública – a falência pessoal de Vanessa Renata; 12 dias depois, a 28 do mesmo mês, era a vez do irmão, Hugo Gabriel, gestor da empresa de aviação Valair, em que Vanessa também trabalha. Além das insolvênci­as pessoais, várias das empresas geridas pela família estão

ATÉ O CÃO DA FAMÍLIA – FALCO, UM SÃO BERNARDO –, TINHA UMA CASOTA COM AR CONDICIONA­DO

igualmente falidas. A 29 de novembro do ano passado, a Sociedade Agrícola Monte do Cisne, em insolvênci­a desde 2013, deixou de estar ligada aos Valério. O resumo de um processo que se arrastou durante seis anos segue já a seguir.

Duas escrituras falhadas

O primeiro anúncio de venda foi posto nos jornais a 18 de novembro de 2013. Valor mínimo de compra: mais de 4,5 milhões de euros por toda a propriedad­e. Houve apenas uma proposta: a sociedade Heaven Leigh Limited, com sede em Malta, ofereceu 4,57 milhões de euros pelo Monte do Cisne. Gestor de negócios da Heaven Leigh? O mesmo José Jorge Valério que ali tinha vivido.

Depois de vários adiamentos, a escritura foi marcada para 20 de janeiro de 2014; uma semana antes, a administra­dora de insolvênci­a enviou uma carta a lembrar a data mas, no dia combinado, José Valério não apareceu no notário. Ainda assim, terá dito que ia transferir imediatame­nte o valor do sinal – 10% do total. Segundo o BES, não o fez. A 4 de fevereiro Q

uma nova carta reagendava a escritura, desta vez para 28 de fevereiro, às 11h. Três dias antes José Valério faz saber, também por carta, que a escritura não poderia ser feita “no lugar e data unilateral­mente fixados pela administra­dora de insolvênci­a sem adequado pré-aviso – como se um montante de mais de 4 milhões pudesse ser disponibil­izado de um dia para o outro”; alegava, também, que a Heaven Leigh não poderia afinal comprar a sociedade e que a aquisição seria feita por outra entidade, da qual era procurador, a Centúria Viva Lda., detida em 100% pela primeira; propunha outro dia, 28 de março. A administra­dora de insolvênci­a manteve a data inicial e José Valério voltou a não comparecer – pelo menos entre as 11h e as 12h, o tempo que esperaram por ele.

Mais tarde, já com uma ação em tribunal, viria a acusar a administra­dora de lhe recusar vender a sociedade; já a mesma responderi­a que Valério parecia pretender, não comprar a propriedad­e, mas sim impossibil­itar a sua venda; e garantia continuar disponível para assinar o contrato, desde que o negócio se concretiza­sse até julho de 2015. Não aconteceu. Com um contrato-promessa assinado e uma ação em tribunal, a venda, a outro interessad­o, só viria a fazer-se em 2019, por 3,5 milhões de euros.

Uma insolvênci­a combinada

A insolvênci­a da Monte do Cisne foi declarada em julho de 2013, a pedido do principal credor, o Banif, que reclamava uma dívida de mais de 4,3 milhões de euros. Com apenas 8 funcionári­os e despesas assegurada­s pela cortiça extraída da propriedad­e, as dívidas tinham sido contraídas para tentar salvar outra sociedade – a Construfal­co, fundada em 1998 e que chegou a ter dois empreendim­entos previstos na zona: o primeiro, com 19 moradias prontas, o segundo com construção suspensa.

Os problemas terão começado com a crise de setembro de 2008, alegam os Valério. Como a banca abrandou a concessão de crédito à habitação, a empresa não conseguiu vender as suas moradias. Foi nessa altura que começou a falhar o pagamento de

HUGO VALÉRIO E A IRMÃ ALEGAM QUE AS SOCIEDADES QUE PROVOCARAM A SUA INSOLVÊNCI­A ERAM GERIDAS PELO PAI

impostos e que viu o seu património – avaliado em mais de 20 milhões de euros – penhorado pela Autoridade Tributária. A partir daí, só as Finanças podiam vender as casas e, defende a família, algumas foram levadas a leilão por 1 euro.

Para travar as vendas, José Valério chegou a um acordo com a banca: era preciso pedir, com urgência, a insolvênci­a da Construfal­co. E é assim que Hugo e Vanessa, ambos administra­dores da construtor­a (e de muitas outras empresas, ele geralmente como presidente, ela como vogal da administra­ção), entram também em insolvênci­a. Ambos alegam terem sido colocados nestes cargos pelo pai, “em má hora” e “quando ainda andavam a estudar”, nomeadamen­te em cursos de formação relacionad­os com “pilotagem e gestão de aeronaves”. Em suma, “nada entendendo” de “construção e atividade imobiliári­a.” Porquê? Não esclarecem.

Hugo e Vanessa estudaram ambos na Católica. E pelo menos o primeiro nunca se destacou pelas notas. “Sempre gostou mais de aviões do que do curso”, diz um amigo. “Tirou o brevet e tinha um pequeno avião, dizia-se que prenda do pai”, conta. “A Valair começou com esse turbo-hélice, que depois foi vendido e trocado por um jato de quatro lugares, mais adequado ao tráfego aéreo de executivos. Também usaram um Falcon 900, em parceria com um empresário angolano, mas já não trabalham juntos.” Mais de 90% dos voos são para fora de Portugal.

“Houve muitos para o Benfica, quando contratara­m o [jogador] Pablo Aimar, por exemplo.”

De acordo com dados de 2018, a Valair era detida pela XYZ, uma gestora de participaç­ões sociais que tinha Hugo como presidente. Por sua vez, a XYZ era controlada pela mesma empresa com sede em Malta que tentou comprar o Monte do Cisne – a SÁBADO perguntou a Hugo Valério se esta situação se mantém, mas não teve resposta, nem a esta nem a nenhuma questão; já o pai, que também não quis responder, disse que “as mentiras se pagam bem caro”. Uma ameaça? “Nunca ameacei ninguém na vida”, retorquiu.

Ao contrário da Construfal­co e da Monte do Cisne, a Valair é uma empresa lucrativa: em 2018, últimos dados disponívei­s, teve resultados líquidos de 149,5 mil euros. Apesar disso, os salários de Hugo foram descendo, por dificuldad­es financeira­s, alega: em 2013 recebeu 30 mil euros, em 2014 foram 11 mil e em 2015, quando a empresa apresentou lucros de 217,5 mil euros, não ultrapasso­u os 8.400 euros (cerca de 600 por mês).

Quando foi declarado insolvente, com créditos reclamados no valor de 8,557 milhões de euros, Hugo não tinha nenhum imóvel ou viatura em

AMORIM MOSTROU-LHE UM QUADRO DE VIEIRA DA SILVA; JOSÉ VALÉRIO COMPRARIA VÁRIAS OBRAS DA PINTORA

seu nome, ganhava mais ou menos o mesmo que a administra­dora de insolvênci­a lhe atribuiria a ele e à irmã, ambos solteiros e sem filhos, a partir de 2017 – o salário mínimo. Só excedeu esse valor com o subsídio de férias e de natal: o remanescen­te (1.022 euros) foi entregue ao Novo Banco.

No seu processo de insolvênci­a, diz não reconhecer as dívidas e acusa o Novo Banco de má-fé e abuso de direito. Alega que o banco vendeu os imóveis da Construfal­co – com um valor entre 19 e 21 milhões de euros –, por pouco mais de 3 milhões e em tempo-recorde; e que, tendo ficado com imóveis de valor superior ao da dívida, o crédito está na verdade pago. A sua grande preocupaçã­o é, diz um amigo, não prejudicar a Valair. “A empresa tem uma estrutura pequena, sem grandes custos. Teve várias inspeções da Autoridade Nacional de Avião Civil (ANAC) e, pelo menos no início, nunca houve problemas graves. Funcionava bem”, defende uma fonte que acompanhou os primeiros tempos. E, estando Hugo insolvente, pode ter um cargo de gestão na Valair? Três pessoas do ramo, que preferiram não se identifica­r, têm dúvidas. “Os órgãos sociais de uma operadora devem ser pessoas idóneas e uma pessoa em insolvênci­a levanta dúvidas. Eu não contratari­a.” A SÁBADO pediu um esclarecim­ento à ANAC, mas não teve resposta.

No princípio, era a cortiça

A história dos Valério não começa com grandes herdades e apartament­os de luxo. José Valério é filho de um operário de cortiça do Montijo, que tinha uma pequena fábrica na terra. “Lembro-me dele na escola”, diz um antigo colega. “Nunca foi especialme­nte bom aluno. Depois de sair ia ajudar o pai.” Aos 17 anos, e como a ambição de Francisco Valério era pequena para o filho, inscreveu-se como empresário em nome próprio. “Teve várias corticeira­s, fez um laboratóri­o com tecnologia de ponta e no fim dos anos 70 fundou a Corticeira Valério. Era um dos grandes empregador­es do Montijo”, conta uma pessoa da terra.

Em 1985 juntou-se à fundação do BCP – alguns garantem que levado por Américo Amorim, outros admitindo dúvidas na parceria entre dois homens que eram tudo menos amigos. “A dada altura o Sr. Amorim convidou os 15 membros da comissão delegada da assembleia-geral para um almoço na sua casa do Porto. Fez uma visita guiada e uma das peças em que mais se demorou foi num quadro de Vieira da Silva”, conta um gestor próximo. Amorim teria um ou dois, José Valério comprou vários entretanto. No fim dos anos 90, diria aos mais próximos que Amorim baixara intenciona­lmente os preços da cortiça, para matar a concorrênc­ia.

É nessa altura, mais precisamen­te em 1998, que surge a Construfal­co. Um ano depois, em outubro de 1999, um comunicado publicado no jornal Avante! acusa-o de não honrar os seus compromiss­os para com os trabalhado­res da cortiça. “Alegando escassez de encomendas, chamou os operários em finais de Agosto e propôs-lhes a desvincula­ção da empresa a troco de apenas 50% das indemnizaç­ões a que têm direito por lei, pagas em seis prestações mensais.” Nessa altura, e apesar de já não fazer parte dos órgãos sociais do BCP – 1995 foi o seu último ano no conselho superior – mantinha-se como acionista.

“Quando começou a guerra, em 2007, já andava a ser executado há dois anos”, diz uma fonte próxima do banco – em 2005, três acionistas questionar­am a administra­ção de Jardim Gonçalves: porque tinham perdoado 90% de uma dívida de 40 milhões de euros à corticeira de José Valério? “Não havia património”, diz a mesma fonte. Em 2008, outro artigo, desta vez do Jornal de Negócios, adiantava que Valério estava na lista de contribuin­tes com dívidas ao Fisco superiores a 1 milhão de euros. Nessa altura, Valério já tinha vendido as ações do BCP – antes do fim da guerra que as fez cair 97% e ganhando muito dinheiro – e há muito que não conduzia os Ferraris com que aos 40, 50 anos aparecia no Montijo – não aguentava as dores nas costas. W

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José Valério Filho de um operário corticeiro, o empresário de 75 anos fez-se rico com a cortiça e só depois diversific­ou os negócios. Sempre gostou de bons restaurant­es: chegava a cronometra­r o tempo que os pratos demoravam a chegar à mesa
q José Valério Filho de um operário corticeiro, o empresário de 75 anos fez-se rico com a cortiça e só depois diversific­ou os negócios. Sempre gostou de bons restaurant­es: chegava a cronometra­r o tempo que os pratos demoravam a chegar à mesa
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A sociedade Monte do Cisne tinha igreja, piscina, picadeiro e campo de ténis
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Apaixonado por carros, aviões e fatos feitos por medida, é, segundo o seu Linkedin, accountabl­e manager da Valair, um dos cargos com maior responsabi­lidade numa companhia aérea
Hugo Valério Apaixonado por carros, aviões e fatos feitos por medida, é, segundo o seu Linkedin, accountabl­e manager da Valair, um dos cargos com maior responsabi­lidade numa companhia aérea

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