SÁBADO

A VIDA DO BEBÉ SEM ROSTO

Saiu do hospital sem esperança, com os dias contados. Mas o “bebé sem rosto” superou todas as expectativ­as dos médicos e está prestes a completar 4 meses. A madrinha, Tânia Contente, explica-nos como é o seu dia a dia.

- Por Vanda Marques

A madrinha, Tânia Contente, explica como têm sido os dias de Rodrigo e a luta dos pais

Bebe o biberão com a ajuda dos pais e já mal se engasga, apesar de só conseguir respirar pela boca. Consegue agarrar as mãos de quem lhe toca. Chora alto para se fazer ouvir quando tem fome e já sorri e palra. O bebé Rodrigo faz 4 meses no dia 7 de fevereiro e, contra todas as avaliações médicas, conseguiu sobreviver. Apesar das malformaçõ­es – nasceu sem nariz, sem olhos e sem parte do crânio – é um bebé-milagre. A evolução é diária, garante a madrinha Tânia Contente. Ela é a porta-voz da família e fez questão que Marlene e David se mudassem para a sua casa para dar todo o apoio ao casal e ao afilhado. A vida destes jovens, de 26 e 20 anos, respetivam­ente, mudou radicalmen­te quando Rodrigo nasceu sem nunca se imaginar que tinha problemas.

O médico obstetra que seguiu a gravidez nunca detetou malformaçõ­es. Suspenso até abril, Artur Carvalho acumula acusações de negligênci­a – são já 18 os casos que deram entrada no Conselho Disciplina­r Sul da Ordem dos Médicos –, mas nenhuma tão grave como a de

Rodrigo. Futuro? Tânia Contente diz que não desiste de responsabi­lizar o médico e que ninguém a “irá calar.” Quanto ao afilhado, conta: “Ele é teimoso como a madrinha.” E desabafa: “Temos de acreditar que talvez seja possível. Ninguém sabe.” A próxima avaliação médica – vai repetir todos os exames das especialid­ades: Neurologia, Neurocirur­gia, Oftalmolog­ia e Otorrinola­ringologia – será este mês. “Deixo os sonhos para a próxima avaliação.”

“ELE É TEIMOSO COMO A MADRINHA. TEMOS DE ACREDITAR QUE TALVEZ SEJA POSSÍVEL. NINGUÉM SABE”

O NASCIMENTO “Ninguém está preparado para uma situação destas”

h “O dia 7 de outubro é o aniversári­o da irmã da Marlene e tínhamos combinado um jantar. Às 10 da manhã rebentaram as águas da Marlene, por isso sabíamos que ele ia nascer no mesmo dia. [Para de falar] É tão mau voltar lá…

Estávamos nesse jantar e íamos recebendo notícias. O David estava a acompanhar o parto, no Hospital de Setúbal, e ia passando alguma informação… Acho que dói mais agora do que na altura. Não sabía

mos o que estava a acontecer. [A família] recebeu um telefonema do David, completame­nte alterado, que disse: “Sogra, eu já ligo, eu já ligo.” Ele estava a indicar que o Rodrigo tinha nascido, mas... o “já ligo”, não era mais do que a confusão que se gerou nos segundos seguintes ao verem as malformaçõ­es do Rodrigo. A mãe da Marlene, a Paula, reparou que o tom da chamada não era bom e fomos imediatame­nte para o hospital. Foram umas 30 pessoas. Quando lá cheguei, o David estava na porta das urgências num pranto, rodeado de amigos… Não falava, só chorava. Consigo ter sangue frio nestas alturas, puxei-o e disse: “Vais-te acalmar, está aqui a mãe da Marlene, diz-nos o que se passa.” E o David disse: “O meu filho não tem nariz, o meu filho não vai sobreviver.” Peguei na Paula e levei-a imediatame­nte para o bloco de partos. A partir daí foi o caos, subir ao bloco e descer, depois chegou a outra avó. O David estava em choque – desde o momento em que saiu do bloco não se lembra de nada. Ninguém está preparado para uma situação destas.

Quando fui lá acima levar a Paula ao bloco de partos, fiquei cá fora. Nem sabia bem o que havia de fazer. Foi quando saiu uma equipa médica com uma incubadora tapada. Presumi que fosse o Rodrigo. O David disse que ele tinha sido levado para estudo e pensávamos que já não regressava. Saí do hospital às 4h da manhã. Quando acordámos, não sabia se o meu afilhado estaria vivo.

Nessa noite, quando o Rodrigo foi levado para estudo, a Marlene e o David foram afastados. Já de manhã, quando viram que ele estava na neonatolog­ia, foram vê-lo. A Marlene foi visitar o filho e não o largou mais. O que era para ser uma despedida, foi quase a apresentaç­ão.”

“AO FIM DE UMA SEMANA E MEIA, O RODRIGO DÁ COM ELE DENTRO DE UMA INCUBADORA, SEM ESTAR LIGADO A NADA”

O PRIMEIRO MÊS “Ele foi uma surpresa para os médicos que o seguiam”

h “O Rodrigo estava na incubadora, na Neonatolog­ia, com prognóstic­o reservado. A qualquer momento podia morrer. E nós apenas aguardávam­os. Levámos um padre lá e ele foi batizado. A pouco e pouco foram vendo como reagia. Sabiam que se houvesse uma complicaçã­o, iam deixar acontecer. Não se podia prolongar o sofrimento. Iam deixar a natureza...

Ele tinha uma sonda para comer e retiraram-na sem saber o que ia acontecer. Estranhame­nte, ele manteve-se vivo. Foi sendo uma surpresa para os médicos que o estavam a seguir. Sempre que retiravam qualquer coisa ao Rodrigo, ele correspond­ia. Ao fim de uma semana e meia, dá-se com ele dentro de uma incubadora, sem estar ligado a nada, e então decidem: vamos retirar a incubadora e ver o que acontece. Passou para um quarto normal,

Acho que dói mais agora do que na altura. Não sabíamos o que estava a acontecer

estranhame­nte ele reagiu bem. Ao fim de 3 semanas fechados num internamen­to no hospital, com o pai e a mãe 24 horas com ele, sem qualquer tipo de assistênci­a médica – nada ligado a ele – não havia necessidad­e de se manter ali. O Rodrigo comia sozinho, respirava sozinho, dormia tranquilam­ente.

Esse mês foi um misto de sensações para aqueles pais que, no momento do nascimento, não o queriam ver... Depois de digerirem a informação decidem ir vê-lo, para nunca mais o deixarem... Depois veio o medo e a vontade de se manterem no hospital com receio de que acontecess­e o pior... Eles achavam que não estavam preparados para estar em casa. Até que invertem este sentimento e dizem: estamos fortes o suficiente para saber que o nosso filho pode morrer nos nossos braços. Podemos ir para casa. Ninguém ia mandar o Rodrigo para casa se não fosse essa a vontade dos pais. Nisso tem de ser dado o justo valor ao Hospital de Setúbal, colocaram à disposição todos os meios, apoio psicológic­o aos pais e à família, nomeadamen­te à irmã do Rodrigo. Primeiro os pais e o Rodrigo começaram com saídas de dois dias e regressava­m ao hospital. Até que decidiram sair de vez.”

VOLTAR A CASA “Não queríamos deixar os pais sozinhos”

h “No dia 8 de novembro, o Rodrigo veio para a minha casa, até porque eu parti a casa da Marlene toda de propósito. [Tânia é empresária e tem uma empresa de construção] Disse que lhe ia fazer obras na casa e entretanto não a reconstruí. Pensava, eu e os médicos, todos pensávamos, que era uma questão de dias... Não os queríamos deixar sozinhos podendo perder o filho a qualquer altura. Na minha casa tinha mais gente para gritar e para a apoiar caso isso acontecess­e.

É uma montanha-russa. Depois de nascer não tínhamos esperança nenhuma, entretanto sobreviveu e passámos a ter alguma. Quando pedimos uma segunda opinião, os médicos disseram que não havia esperança.

“QUANDO ELE CHORA, A PRESSÃO NO CRÂNIO AUMENTA. PORTANTO, TAMBÉM NÃO PODE CHORAR. FAZEMOS-LHE AS VONTADES TODAS” A Marlene leva sempre o filho com ela, sabe que quer ser a última pessoa a ver o filho com vida

Mas com o tempo que passou é inevitável não ter esperança: ele esta cá, a reagir a estímulos, a comer. O Rodrigo, fora as suas limitações, é um bebé como os outros.

No início, as visitas dos cuidados paliativos eram diárias. As médicas verificava­m se a medicação estava a ser tomada, faziam medições à cabeça, verificava­m os estímulos dele. Além disso, existe um procedimen­to – que está em todos os telemóveis lá de casa – que são os números SOS, e uma medicação própria que está preparada para o caso de acontecer alguma coisa. Está lá a ordem e os pais foram treinados para que, quando o Rodrigo mostrasse sinais de sofrimento, por exemplo uma paragem cardíaca, soubessem usar um kit com medicação. Sabem que têm de fazer uma chamada telefónica. Todos lá em casa fomos preparados. Graças a Deus, não aconteceu.

Além dos problemas físicos, o Rodrigo tem malformaçõ­es cerebrais e hidrocefal­ia, ou seja, acumula liquido cefálico na cabeça, o que faz com que a cabeça esteja constantem­ente a aumentar. Sabendo que parte do crânio não tem osso, tem ali um ponto mais suscetível a ruturas. À medida que há mais líquido, a pele estica e o risco é que haja uma rutura. Que também não aconteceu até agora. Ele toma uma medicação própria que faz com que produza menos líquido. Aí ganhamos algum tempo e o sofrimento do Rodrigo também é menor, porque a pressão craniana é mais reduzida com a medicação. Existe medição para a dor, julgo que agora não é aplicada.

Os cuidados especiais? São com a bolsa de líquido: não convém mexer. Mudar a fralda ou dar banho é o normal. A comer é preciso mais atenção. Como ele não tem nariz – respira apenas pela boca – a posição do biberão é fundamenta­l. Os pais não têm qualquer dificuldad­e.

Confesso que me faz alguma aflição – apesar de ter um bebé de 1 ano que ainda usa biberão – dar de comer ao Rodrigo. Por uma razão: ele respira pela boca, por isso, enquanto bebe, tem de respirar. Caso contrário, ele opta sempre por respirar, não come e começa a chorar. Mas não convém que chore. Quando ele chora, a pressão no crânio aumenta e a bolsa do líquido fica mais dura. Portanto, também não pode chorar. Fazemos-lhe as vontades todas. Ainda bem que ele é pequenino. Se o pousarmos no ovo, na cama ou na espreguiça­deira, ele dá logo sinal.

Temos de dar mérito a estes pais. A Marlene e o David são dois vencedores. Posso testemunha­r isso todos os dias. O Rodrigo é carregado ao colo 24 horas por dia. Só tem duas exceções: os 10 minutos em que os pais tomam refeições – nessa altura, é colocado o ovo na mesa de jantar – ou quando o transporta­m de carro dentro do ovinho. A Marlene e David revezam-se e o Rodrigo dorme nos braços deles.

A Marlene dorme de luz acesa colada à cara dele, mas só a um dos lados da cara, porque o outro é suscetível a tocar na bolsa. Dorme com ele no braço e com o Rodrigo levantado. Estão nisto há 4 meses. A vida daqueles pais é isto, carregar um filho nos braços 24 horas por dia. A Marlene tem 26 anos, tem uma filha de 5 anos, que não está a ter a atenção que devia da mãe... O David tem 20 anos e é incansável. Tem toda a calma do mundo para cuidar do filho.”

A CAMINHO DOS 4 MESES “O Rodrigo corre o risco de adormecer e não acordar mais”

h “Ele sai frequentem­ente. A Marlene costuma dizer: ‘O meu filho, enquanto cá estiver, vai ter todo o amor e carinho. Não quero saber se tem nariz ou não tem nariz, se não tem olhos, o que for preciso fazer nós fazemos. Se tiver de sair por algum motivo – tomar um café porque faz falta, dar alguma assistênci­a à filha mais velha – saio.’ Claro que se estiver a chover, ou muito frio, não vão. Para não haver o risco de ele se constipar ou de apanhar alguma doença. Caso contrário, a Marlene vai e leva o filho e não quer saber o que pensam ou deixam de pensar. Ela sabe melhor do que ninguém o que tem de fazer no caso de haver alguma complicaçã­o, mas também sabe que quer ser a última pessoa a ver o filho com vida.

No outro dia teve de ir à Segurança Social – repare: a mãe está de licença e o pai não trabalha – e levou o Rodrigo no ovinho. Quando ele chorou, ela pegou nele. Quem estava à volta olhou. Houve pessoas mais sensíveis, que se souberam comportar. Outras não. Mas não deixaremos de fazer o que for necessário, em

“A MARLENE E O DAVID SÃO DOIS VENCEDORES. A VIDA DAQUELES PAIS É CARREGAR UM FILHO NOS BRAÇOS”

prol do que os outros vão dizer.

O Rodrigo é mais pequeno do que os outros bebés. No mês passado, tinha cerca de 56 cm. Não cresce à velocidade das outras crianças, exceto na cabeça, que tem um volume acima da média por causa do líquido. Para já não é possível extrair o líquido. Os problemas mais graves são na cabeça: ambos os hemisfério­s cerebrais estão malformado­s, mas um deles está ainda mais malformado. Não conseguimo­s saber o impacto disso. Temos de aguardar que o Rodrigo tenha reações, como andar, correr, sentar, falar, e só nessa altura saberemos se consegue ou não fazer essas coisas. O Rodrigo não tem os olhinhos, uma pálpebra ainda abre, mas está vazia. A outra está fechada mesmo. É cego.

Pelas avaliações que foram feitas no Hospital Dona Estefânia, concluiu-se que seria surdo, os canais auditivos não estariam desenvolvi­dos. Hoje, com quase quatro meses, posso dizer que ele muitas vezes reage aos barulhos da casa. Estremece. A meu ver, pode ser a minha vontade de que ele melhore, acho que ouve. Tenho dois filhos pequenos – um de 4 anos e outro de 1 – e ele reage às crianças, palra mais.

E já sorri. Quando o fez para mim foi uma felicidade gigante. Também se aninha e palra. Aperta as nossas mãos e nota-se que reage. Tem um peluche que o acompanha desde que nasceu, a girafa. Também tem uns brinquedos que vibram, mas fica incomodado. Agora os cuidados paliativos só vão duas vezes por semana lá a casa. Até hoje não houve sustos. Engasgou-se duas ou três vezes. Mas o Rodrigo corre o risco de adormecer e não acordar mais. O alívio que deve ser para os pais sempre que ele acorda. É ele que lhes dá força. Cada vez se engasga menos, cada vez bebe melhor o biberão, chora melhor, pega mais nas nossas mãos... Todos os dias se supera. Os nossos problemas não são nada. Tudo aquilo que achamos realmente importante, não é. Algo tão simples como ter um filho vivo nos braços a respirar e chegar ao dia seguinte, é maravilhos­o. Para eles chega, o resto é o resto.” W

O Rodrigo já sorri. Quando o fez para mim foi uma felicidade gigante

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 ??  ?? Tânia Contente com o peluche que acompanha Rodrigo desde que ele nasceu, a 7 de outubro, às 22h54
Tânia Contente com o peluche que acompanha Rodrigo desde que ele nasceu, a 7 de outubro, às 22h54
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