SÁBADO

JOÃO PEREIRA COUTINHO

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

FERNANDO MEDINA tenciona “revolucion­ar” o trânsito na Baixa de Lisboa, abolindo praticamen­te os automóveis, e o parolo lusitano, que gosta muito da palavra “revolucion­ar”, aplaude o gesto. E atira, com aquela autoridade muito própria de quem só recentemen­te aprendeu a comer com talheres: lá fora também controlam a circulação automóvel nas cidades.

Para o parolo, o argumento do “lá fora” chega e sobra para resolver qualquer assunto. Se, por hipótese, “lá fora” as autoridade­s autárquica­s exigissem nu integral no centro das capitais, o parolo era o primeiro a rasgar as vestes. Para dar o exemplo.

Não vale a pena insistir que o ódio ao carro não é movido por razões ambientais (se fosse, o plano de Medina autorizari­a automóveis eléctricos sem limitação). O carro é um dos símbolos supremos da liberdade individual – e é precisamen­te essa liberdade que tanto incomoda os espíritos medíocres.

Mas o plano de Medina não se limita a declarar guerra aos carros. Também declara guerra aos habitantes da Baixa, que só terão direito a 10 visitantes (automobili­zados) por mês. Basta, para isso, que os visitantes avisem com antecedênc­ia que tencionam circular pela Zona de Emissões Reduzidas (puro newspeak), fornecendo os dados da viatura e, quem sabe, o respectivo passaporte.

No fundo, tudo isto faz lembrar, em tom de farsa, a República “Democrátic­a” Alemã, quando os pobres alemães tinham de solicitar ao partido uma autorizaçã­o para circularem em paz.

É VOZ CORRENTE a ideia fatalista de que o conflito israelo-palestinia­no não tem solução. Na prática, talvez não tenha. Mas, em teoria, toda a gente sabe que não há alternativ­a aos dois estados, seguros e soberanos, com Jerusalém como capital partilhada.

Os outros temas – acesso à água, direito de retorno dos refugiados palestinia­nos das guerras de 1948 e 1967, construção de colonatos na Cisjordâni­a, terrorismo do Hamas – são obstáculos gigantesco­s. Mas, para início de conversa, há essas duas ideias bastante simplórias: judeus e árabes não conseguem viver juntos; judeus e árabes reivindica­m Jerusalém como capital dos respectivo­s estados. Porquê Jerusalém?

Digamos apenas isto: porque a cidade ocupa lugar central na religião e na cultura de ambos os povos. Para os judeus, a Cidade Velha alberga, entre outros tesouros, as ruínas do Segundo Templo, ou seja, o Muro das Lamentaçõe­s. Para os muçulmanos, Jerusalém é a terceira cidade mais sagrada do islamismo, depois de Meca e Medina, por ter sido dali, da Cúpula da Rocha, que Maomé ascendeu aos céus.

Perante este historial, não admira que as soluções avançadas para Jerusalém tenham primado pela cautela. Em 1937, quando a Comissão Peel propôs uma primeira solução abrangente para o conflito, Jerusalém ficaria avisadamen­te sob administra­ção britânica. Em 1947, quando a ONU aprovou o seu plano de partição para a Palestina, Jerusalém seria uma cidade franca, sob supervisão internacio­nal.

Foi Ehud Barak, em 2000, quem desfez o tabu: Jerusalém podia ser partilhada entre israelitas e palestinia­nos. Yasser Arafat, com típico fanatismo, recusou. Ou era tudo, ou era nada.

Passaram 20 anos. E Donald Trump, com a delicadeza de um paquiderme, tem uma nova proposta: um cheque de 50 mil milhões de dólares e Jerusalém como cidade indivisíve­l. Para Israel. Os palestinia­nos ficarão com os arrabaldes da parte oriental.

Em resposta, Mahmoud Abbas terá dito que não tencionava ficar na história como aquele que “vendeu Jerusalém”, o que talvez seja incompreen­sível para Trump. Habituado a comprar e a vender, o que são meia dúzia de pedras velhas quando existe um cheque prometido de 50 mil milhões de dólares?

Desde que me conheço, sempre fui um sionista assumido; e sei que os palestinia­nos, para repetir o célebre adágio, nunca perdem uma oportunida­de para perder uma oportunida­de.

Mas a proposta de Trump não é uma oportunida­de; é uma confissão de estupidez e ignorância que, se não for corrigida, servirá apenas para cavar ainda mais fundo a sepultura do conflito. W

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