AS INVESTIGAÇÕES PORTUGUESAS AOS PODEROSOS ANGOLANOS
Durante anos, o Ministério Público e a Polícia Judiciária andaram atrás do dinheiro suspeito de políticos, banqueiros e até do procurador-geral da República de Angola
António Vitorino e Manuel Dias Loureiro, dois dos mais influentes políticos portugueses, são apontados numa investigação da justiça espanhola como destinatários de pagamentos mal explicados. O dinheiro é oriundo da empresa pública de petróleo da Venezuela, com passagem pelas contas de empresas e da família do ex-embaixador espanhol em Lisboa. A SÁBADO conta-lhe tudo através dos documentos do processo, a que teve acesso integral.
Oprocesso judicial sobre um roubo milionário de 35 milhões à empresa petrolífera da Venezuela que chamusca dois velhos barões da política portuguesa é uma espécie de boneca russa. Quando se puxa o nome do histórico político e diplomata espanhol, Raúl Morodo, personagem principal da trama, fica à vista o do filho Alejo e da nora Ana Catarina Varandas Loureiro, filha do ex-ministro do PSD Dias Loureiro. Mas quando se tira a filha, aparece uma sociedade do pai, a DL-Gestão e Consultoria. Por fim, também lá está uma sociedade – a Emab-Consultores, do ex-ministro socialista António Vitorino e da mulher, Beatriz Carneiro. A investigação iniciada em 2017 e que colocou na linha de fogo dois dos mais influentes políticos portugueses, que há mais de três décadas movimentam o seu enorme poder nos bastidores do PS e PSD, tem todos os ingredientes de uma novela: poder, dinheiro, jet set e morte. Está tudo nos documentos do processo, a que a SÁBADO teve acesso integral.
O processo do “Juzgado Central de Instrucción” da Audiência Nacional, em Madrid, leva-nos numa viagem entre a capital espanhola, Caracas e Lisboa. Mas também por offshores no Panamá e contas bancárias na Suíça. No centro das suspeitas estão Raúl Morodo, antigo embaixador em Portugal e na Venezuela, e o filho, Alejo Morodo, casado com Ana Catarina Varandas Loureiro, filha do histórico dirigente do PSD. Os espanhóis suspeitam que pai e filho montaram uma estrutura empresarial fictícia, com dois sócios venezuelanos e envolvendo as mulheres de todos, de forma a justificar mais de quatro milhões de euros recebidos da PDVSA, a Petróleos de Venezuela. Os restantes 30 milhões foram para os sócios venezuelanos, que aplicaram grande parte do dinheiro na compra de prédios em Madrid, Málaga, Barcelona, Palma de Maiorca, entre outras cidades.
Casados em regime de separação de bens, Alejo e Catarina Loureiro
O QUADRO DA PDVSA SUICIDOU-SE APÓS TER PRESTADO DECLARAÇÕES NO PROCESSO ESPANHOL
foram sócios da empresa Aequitas, Abobados y Consultores Associados, uma sociedade com um amplo objeto social, que ia da compra e venda de propriedades à prestação de serviços de assessoria fiscal, laboral e jurídica. Constituída pelo casal em maio de 2007, a sociedade viria a registar uma alteração na estrutura, em maio de 2014, com Catarina Loureiro a vender ao marido a sua participação.
Para a inspeção tributária espanhola, porém, esta sociedade só foi criada com o objetivo de “simular” relações comerciais com a PDVSA, quando essas relações diziam respeito, única e exclusivamente, à “prestação de serviços pessoalíssimos” de Alejo Morodo. “Resulta claro para esta inspeção que não foi possível conhecer em concreto quais os serviços prestados”, refere a Agencia Tributaria.
Negócio familiar
É no contexto da relação entre Alejo Morodo e os venezuelanos – e as consequentes entradas de dinheiro na sua esfera pessoal – que surge um negócio com Manuel Dias Loureiro, indiciando-se uma eventual prática de branqueamento de capitais. O fisco espanhol interessou-se pela aquisição de um apartamento com 242 m2, numa das zonas mais caras de Madrid, por Alejo Morodo e Catarina Loureiro, a 19 de julho de 2017, à firma DL-Gestão e Consultoria SA, cujo administrador único é Manuel Joaquim Dias Loureiro, surgindo Catarina Loureiro como administradora suplente. De acordo com a escritura, o imóvel foi vendido por 350 mil euros, pago com várias transferências para uma conta no Banco Espírito Santo. Contudo, o valor do imóvel no ano seguinte era de 1.321.091 euros.
O negócio teve também contornos
específicos: Alejo Morodo ficou com 22% do apartamento – pelos quais entregou um cheque de 70 mil euros – e Ana Catarina com os restantes 78% - pelos quais fez uma transferência de 20 mil euros para uma conta do Novo Banco; passou um cheque ao portador de 50 mil euros; e emitiu um cheque bancário de 203 mil euros a favor da DL-Gestão e Consultoria.
Na escritura compareceu também uma diplomata brasileira, arrendatária do imóvel, que renunciou ao direito de preferência e se mantém como inquilina. O Fisco espanhol garante que a DL-Gestão e Consultoria não apresentou uma declaração fiscal sobre o imposto de renda e que nem Alejo nem Catarina apresentaram uma declaração fiscal de retenção na compra de imóveis.
O processo termina com uma nova Ordem Europeia de Investigação enviada para Portugal. As autoridades espanholas querem saber a origem dos 150 mil euros recebidos por Ana Catarina a 7 de julho de 2017, dias antes de comprar o apartamento à empresa de Dias Loureiro.
A circulação de dinheiro entre o clã Loureiro continuou a intrigar a Agencia Tributaria espanhola que, em contradição com as declarações fiscais das empresas ligadas a Alejo Morodo, constatou que, a 11 de julho de 2017, o casal Morodo-Loureiro se deslocou a um notário de Madrid para assinar uma escritura. Não de compra e venda, mas de doação – entre o próprio casal. “Alejo Morodo doa de forma pura e simples, em este ato, com caráter privado, a sua esposa Ana Catarina Varandas de Loureiro, que agradecida aceita, a quantia de 160 mil euros”, lê-se na escritura.
Doações sucessivas
O documento oficializou a doação previamente feita, através de transferência bancária, seis dias antes. Na escritura, Alejo Morodo declara que, após a doação, manterá o necessário para viver num estado correspondente às suas circunstâncias. E que o dinheiro “procede da venda de títulos mobiliários da sua propriedade privada”. Já Catarina, identificada como jornalista e casada em regime de separação de bens, fez constar que
O DINHEIRO CIRCULOU ENTRE OS VÁRIOS ELEMENTOS DA FAMÍLIA LOUREIRO: GENRO, FILHA E A EMPRESA DO PAI
o seu património preexistente é inferior a 403 mil euros.
A 4 de dezembro do mesmo ano, Catarina regressou ao mesmo notário, desta vez acompanhada pela mãe, Maria de Fátima Varandas de Loureiro. A primeira mulher de Dias Loureiro assinou, então, uma escritura em que doava à filha – “que agradecida aceita” – a soma de 480 mil euros. O dinheiro, explica-se, já tinha sido entregue antes, através de duas transferências bancárias: uma de 225 mil euros a 7 de novembro; outra de 255 mil euros a 28 de novembro. Na ocasião, Maria de Fátima declarou que o dinheiro provinha da parte que lhe tinha correspondido no acordo de divórcio, celebrado em 2005, e da sua participação na sociedade de bens comuns. Foi também a progenitora que assumiu todos os gastos da outorga da escritura. Já os impostos correspondentes ficaram por conta da filha. Mais uma vez, Catarina declarou que o seu património era inferior a 403 mil euros.
As ligações de Morodo a Portugal não se ficam pelo matrimónio com a filha de Dias Loureiro e pela circulação de dinheiro entre as contas da família. De acordo com documentos do processo, Alejo surge ainda associado à prestação de
serviços à Galp, Caixa Geral de Depósitos e Cofaco Açores. Esta empresa pertenceu muitos tempo à família de Luís Tavares, amigo de Dias Loureiro, que mais tarde vendeu a histórica companhia dos Açores a Álvaro Sobrinho. Entretanto, em 2009, o próprio Luís Tavares afirmava publicamente querer entrar com mais força no mercado venezuelano.
Serviços por esclarecer
Mas se a circulação de dinheiro entre a família Loureiro aparenta ser, para a justiça espanhola, um mecanismo de branqueamento de capitais, os pagamentos feitos a uma sociedade de António Vitorino, atualmente diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e antigo ministro da Defesa, permanecem por esclarecer.
A empresa é de Vitorino e da mulher, Beatriz Carneiro. Com um capital social de 1.000 euros, a Emab-Consultores, recebeu 325 mil euros por, segundo os inspetores tributários espanhóis, mediar a conclusão de um negócio, em que a Galp se comprometia a construir quatro parques eólicos na Venezuela e a comprar petróleo bruto da petroleira PDVSA. Questionada pela SÁBADO, a Galp não respondeu até ao fecho desta edição. Já Vitorino, depois das primeiras notícias, emitiu um comunicado, garantindo que os valores recebidos se deveram à prestação de “serviços profissionais de consultoria em relações internacionais e assuntos europeus”.
Porém, a investigação espanhola mostra que a empresa recebeu 102 mil euros em 2012, 102 mil em 2014 e 51.200 mil em 2016 da Morodo Abogados y Asociados e uma outra verba de 70 mil euros (repartida por duas transferências entre 2011 e 2012) com origem na tal Aequitas Abogados y Consultores . Esta última, de 70 mil euros, aparentemente, a investigação espanhola considera
A FILHA E O GENRO DE DIAS LOUREIRO COMPRARAM POR 350 MIL IMÓVEL AVALIADO EM 1 MILHÃO
que António Vitorino a terá recebido a título pessoal. Não lhe encontra qualquer “lógica comercial”.
O amigo socialista
Mas tudo começa em Raúl Morodo, nome incontornável da transição espanhola entre a ditadura e a democracia. Morodo, hoje com 85 anos, era grande amigo de Mário Soares e sempre teve um invejável naipe de amizades, que vai do Rei Juan Carlos a Zapatero e José Bono, antigo barão do PSOE. Por cá, contam-se como amigos Jorge Sampaio, Ramalho Eanes, Ferro Rodrigues, Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa, Proença de Carvalho, Durão Barroso, Almeida Santos, Guilherme Oliveira Martins e Cavaco Silva, entre muitos outros.
O casamento do filho Alejo com Catarina, em 2001, juntou meio mundo na Quinta Patiño. Dias Loureiro fez questão de contratar uma banda de jazz vinda expressamente dos Estados Unidos e os dois compadres juntaram a elite da política e das letras nos jardins do velho condomínio de luxo. Dias Loureiro gozava a boa vida de banqueiro estabelecido no BPN, depois de vender a Plêiade a Oliveira Costa. Loureiro foi para a Plêiade em 1995, após a derrota do PSD nas eleições legislativas, por convite de José Roquette. Mais tarde, no despacho de arquivamento do processo relacionado com o BPN em que foi arguido, percebe-se que terá tido um lucro superior a 6,5 milhões de euros pela venda dos seus 15% da Plêiade.
Na sua casa no Estoril, Raúl Morodo estabelecia pontes e laços entre sensibilidades políticas muito diferentes, mesmo antagónicas. Uma habilidade que lhe tinha ficado da
difícil transição. Começou no Partido Socialista do Interior, com o histórico alcaide de Madrid Tierno Galván, inventor da movida que Pedro Almodóvar viria a imortalizar nos seus filmes, integrou o governo de Adolfo Suárez, a direita liberal que o fascismo moribundo, mas ainda muito poderoso, tolerava. Acabou a navegar nas águas do PSOE.
Quando saiu do posto em Lisboa, onde esteve de 1995 a 1999, a despedida foi inesquecível. A 8 de Janeiro de 1999, Jorge Sampaio condecorou-o a título excecional com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, uma distinção limitada a chefes de Estado e de governo. Na ocasião, Sampaio foi expressivo: “Raúl Morodo é, de facto, um velho amigo, de todos os que aqui estão reunidos e de Portugal; uma personalidade notável que todos conhecemos de antigos combates democráticos comuns; um intelectual vivo, irrequieto e inquieto, um homem atento ao que se passa no mundo, que gosta de ouvir e de intervir, que procura encontrar respostas para as grandes questões que a todos preocupam.”
Raúl Morodo era, portanto, um homem de grande influência junto dos governos ibéricos, não importando de que partido ou coligação fossem. Quando Zapatero chega ao poder, em 2004, é nomeado para Caracas, na qualidade daquilo que sempre foi, um “embaixador político”. Nunca esteve na carreira diplomática. Em Lisboa ou em Caracas, foi sempre um homem da quota privada dos governos.
A reconciliação
Na Venezuela, levava a tarefa de refazer os laços políticos com Hugo Chávez, desfeitos depois de Aznar apoiar um golpe de Estado contra o chavismo. E foi muito rápido a conseguir resultados. Uma investigação do jornalista venezuelano Nelson Bocaranda, com uma longa carreira na televisão e na rádio, aponta o verão de 2004 como o tempo da reconciliação de Espanha com Chávez. E isso aconteceu através da sólida amizade que logo se estabeleceu entre Raúl Morodo e o ditador. Terá sido numa viagem a Havana, em que Chávez levou Morodo para conhecer Fidel Castro, que se forjou a relação entre os dois. Detalhe importante: na viagem a Cuba foi também o todo-poderoso ministro da Energia e presidente da PDVSA, Rafael Ramírez. Estará aí a origem da relação rentável que o clã veio a estabelecer com a empresa petrolífera, mas, também, de todos os seus problemas atuais. A investigação tem vindo a demolir a credibilidade e a fortuna do velho senador galego, nascido em Ferrol como Franco.
De acordo com a justiça espanhola, os Morodo e os sócios começaram a sacar dinheiro da Venezuela em 2008, através de um contrato inicial entre a PDVA e a Aequitas Abogados. Juan Carlos Márquez, alto quadro da petrolífera, assinava contratos de assessoria com Alejo e autoriza os pagamentos, que o seu sócio Carlos Prada branqueava na Suíça e no Panamá.
Sobre os Morodo a investigação é taxativa. O mandado de buscas a casa do antigo embaixador assinala: “Raúl Morodo Leoncio e o seu filho, Alejo Morodo Cañeque, e empresas vinculadas, ao menos durante os anos de 2011 a 2015, receberam fundos provenientes da empresa pública Petróleos de Venezuela SA, no valor de 4.527.70 euros, que carecem, até agora, de uma justificação real e lógica comercial.” W
O GENRO DE DIAS LOUREIRO TAMBÉM TRABALHOU PARA EMPRESAS DA GALP, CGD E PARA A COFACO DOS AÇORES