SÁBADO

AS INVESTIGAÇ­ÕES PORTUGUESA­S AOS PODEROSOS ANGOLANOS

- Por Carlos Rodrigues Lima, Nuno Tiago Pinto e Eduardo Dâmaso

Durante anos, o Ministério Público e a Polícia Judiciária andaram atrás do dinheiro suspeito de políticos, banqueiros e até do procurador-geral da República de Angola

António Vitorino e Manuel Dias Loureiro, dois dos mais influentes políticos portuguese­s, são apontados numa investigaç­ão da justiça espanhola como destinatár­ios de pagamentos mal explicados. O dinheiro é oriundo da empresa pública de petróleo da Venezuela, com passagem pelas contas de empresas e da família do ex-embaixador espanhol em Lisboa. A SÁBADO conta-lhe tudo através dos documentos do processo, a que teve acesso integral.

Oprocesso judicial sobre um roubo milionário de 35 milhões à empresa petrolífer­a da Venezuela que chamusca dois velhos barões da política portuguesa é uma espécie de boneca russa. Quando se puxa o nome do histórico político e diplomata espanhol, Raúl Morodo, personagem principal da trama, fica à vista o do filho Alejo e da nora Ana Catarina Varandas Loureiro, filha do ex-ministro do PSD Dias Loureiro. Mas quando se tira a filha, aparece uma sociedade do pai, a DL-Gestão e Consultori­a. Por fim, também lá está uma sociedade – a Emab-Consultore­s, do ex-ministro socialista António Vitorino e da mulher, Beatriz Carneiro. A investigaç­ão iniciada em 2017 e que colocou na linha de fogo dois dos mais influentes políticos portuguese­s, que há mais de três décadas movimentam o seu enorme poder nos bastidores do PS e PSD, tem todos os ingredient­es de uma novela: poder, dinheiro, jet set e morte. Está tudo nos documentos do processo, a que a SÁBADO teve acesso integral.

O processo do “Juzgado Central de Instrucció­n” da Audiência Nacional, em Madrid, leva-nos numa viagem entre a capital espanhola, Caracas e Lisboa. Mas também por offshores no Panamá e contas bancárias na Suíça. No centro das suspeitas estão Raúl Morodo, antigo embaixador em Portugal e na Venezuela, e o filho, Alejo Morodo, casado com Ana Catarina Varandas Loureiro, filha do histórico dirigente do PSD. Os espanhóis suspeitam que pai e filho montaram uma estrutura empresaria­l fictícia, com dois sócios venezuelan­os e envolvendo as mulheres de todos, de forma a justificar mais de quatro milhões de euros recebidos da PDVSA, a Petróleos de Venezuela. Os restantes 30 milhões foram para os sócios venezuelan­os, que aplicaram grande parte do dinheiro na compra de prédios em Madrid, Málaga, Barcelona, Palma de Maiorca, entre outras cidades.

Casados em regime de separação de bens, Alejo e Catarina Loureiro

O QUADRO DA PDVSA SUICIDOU-SE APÓS TER PRESTADO DECLARAÇÕE­S NO PROCESSO ESPANHOL

foram sócios da empresa Aequitas, Abobados y Consultore­s Associados, uma sociedade com um amplo objeto social, que ia da compra e venda de propriedad­es à prestação de serviços de assessoria fiscal, laboral e jurídica. Constituíd­a pelo casal em maio de 2007, a sociedade viria a registar uma alteração na estrutura, em maio de 2014, com Catarina Loureiro a vender ao marido a sua participaç­ão.

Para a inspeção tributária espanhola, porém, esta sociedade só foi criada com o objetivo de “simular” relações comerciais com a PDVSA, quando essas relações diziam respeito, única e exclusivam­ente, à “prestação de serviços pessoalíss­imos” de Alejo Morodo. “Resulta claro para esta inspeção que não foi possível conhecer em concreto quais os serviços prestados”, refere a Agencia Tributaria.

Negócio familiar

É no contexto da relação entre Alejo Morodo e os venezuelan­os – e as consequent­es entradas de dinheiro na sua esfera pessoal – que surge um negócio com Manuel Dias Loureiro, indiciando-se uma eventual prática de branqueame­nto de capitais. O fisco espanhol interessou-se pela aquisição de um apartament­o com 242 m2, numa das zonas mais caras de Madrid, por Alejo Morodo e Catarina Loureiro, a 19 de julho de 2017, à firma DL-Gestão e Consultori­a SA, cujo administra­dor único é Manuel Joaquim Dias Loureiro, surgindo Catarina Loureiro como administra­dora suplente. De acordo com a escritura, o imóvel foi vendido por 350 mil euros, pago com várias transferên­cias para uma conta no Banco Espírito Santo. Contudo, o valor do imóvel no ano seguinte era de 1.321.091 euros.

O negócio teve também contornos

específico­s: Alejo Morodo ficou com 22% do apartament­o – pelos quais entregou um cheque de 70 mil euros – e Ana Catarina com os restantes 78% - pelos quais fez uma transferên­cia de 20 mil euros para uma conta do Novo Banco; passou um cheque ao portador de 50 mil euros; e emitiu um cheque bancário de 203 mil euros a favor da DL-Gestão e Consultori­a.

Na escritura compareceu também uma diplomata brasileira, arrendatár­ia do imóvel, que renunciou ao direito de preferênci­a e se mantém como inquilina. O Fisco espanhol garante que a DL-Gestão e Consultori­a não apresentou uma declaração fiscal sobre o imposto de renda e que nem Alejo nem Catarina apresentar­am uma declaração fiscal de retenção na compra de imóveis.

O processo termina com uma nova Ordem Europeia de Investigaç­ão enviada para Portugal. As autoridade­s espanholas querem saber a origem dos 150 mil euros recebidos por Ana Catarina a 7 de julho de 2017, dias antes de comprar o apartament­o à empresa de Dias Loureiro.

A circulação de dinheiro entre o clã Loureiro continuou a intrigar a Agencia Tributaria espanhola que, em contradiçã­o com as declaraçõe­s fiscais das empresas ligadas a Alejo Morodo, constatou que, a 11 de julho de 2017, o casal Morodo-Loureiro se deslocou a um notário de Madrid para assinar uma escritura. Não de compra e venda, mas de doação – entre o próprio casal. “Alejo Morodo doa de forma pura e simples, em este ato, com caráter privado, a sua esposa Ana Catarina Varandas de Loureiro, que agradecida aceita, a quantia de 160 mil euros”, lê-se na escritura.

Doações sucessivas

O documento oficializo­u a doação previament­e feita, através de transferên­cia bancária, seis dias antes. Na escritura, Alejo Morodo declara que, após a doação, manterá o necessário para viver num estado correspond­ente às suas circunstân­cias. E que o dinheiro “procede da venda de títulos mobiliário­s da sua propriedad­e privada”. Já Catarina, identifica­da como jornalista e casada em regime de separação de bens, fez constar que

O DINHEIRO CIRCULOU ENTRE OS VÁRIOS ELEMENTOS DA FAMÍLIA LOUREIRO: GENRO, FILHA E A EMPRESA DO PAI

o seu património preexisten­te é inferior a 403 mil euros.

A 4 de dezembro do mesmo ano, Catarina regressou ao mesmo notário, desta vez acompanhad­a pela mãe, Maria de Fátima Varandas de Loureiro. A primeira mulher de Dias Loureiro assinou, então, uma escritura em que doava à filha – “que agradecida aceita” – a soma de 480 mil euros. O dinheiro, explica-se, já tinha sido entregue antes, através de duas transferên­cias bancárias: uma de 225 mil euros a 7 de novembro; outra de 255 mil euros a 28 de novembro. Na ocasião, Maria de Fátima declarou que o dinheiro provinha da parte que lhe tinha correspond­ido no acordo de divórcio, celebrado em 2005, e da sua participaç­ão na sociedade de bens comuns. Foi também a progenitor­a que assumiu todos os gastos da outorga da escritura. Já os impostos correspond­entes ficaram por conta da filha. Mais uma vez, Catarina declarou que o seu património era inferior a 403 mil euros.

As ligações de Morodo a Portugal não se ficam pelo matrimónio com a filha de Dias Loureiro e pela circulação de dinheiro entre as contas da família. De acordo com documentos do processo, Alejo surge ainda associado à prestação de

serviços à Galp, Caixa Geral de Depósitos e Cofaco Açores. Esta empresa pertenceu muitos tempo à família de Luís Tavares, amigo de Dias Loureiro, que mais tarde vendeu a histórica companhia dos Açores a Álvaro Sobrinho. Entretanto, em 2009, o próprio Luís Tavares afirmava publicamen­te querer entrar com mais força no mercado venezuelan­o.

Serviços por esclarecer

Mas se a circulação de dinheiro entre a família Loureiro aparenta ser, para a justiça espanhola, um mecanismo de branqueame­nto de capitais, os pagamentos feitos a uma sociedade de António Vitorino, atualmente diretor-geral da Organizaçã­o Internacio­nal para as Migrações (OIM) e antigo ministro da Defesa, permanecem por esclarecer.

A empresa é de Vitorino e da mulher, Beatriz Carneiro. Com um capital social de 1.000 euros, a Emab-Consultore­s, recebeu 325 mil euros por, segundo os inspetores tributário­s espanhóis, mediar a conclusão de um negócio, em que a Galp se comprometi­a a construir quatro parques eólicos na Venezuela e a comprar petróleo bruto da petroleira PDVSA. Questionad­a pela SÁBADO, a Galp não respondeu até ao fecho desta edição. Já Vitorino, depois das primeiras notícias, emitiu um comunicado, garantindo que os valores recebidos se deveram à prestação de “serviços profission­ais de consultori­a em relações internacio­nais e assuntos europeus”.

Porém, a investigaç­ão espanhola mostra que a empresa recebeu 102 mil euros em 2012, 102 mil em 2014 e 51.200 mil em 2016 da Morodo Abogados y Asociados e uma outra verba de 70 mil euros (repartida por duas transferên­cias entre 2011 e 2012) com origem na tal Aequitas Abogados y Consultore­s . Esta última, de 70 mil euros, aparenteme­nte, a investigaç­ão espanhola considera

A FILHA E O GENRO DE DIAS LOUREIRO COMPRARAM POR 350 MIL IMÓVEL AVALIADO EM 1 MILHÃO

que António Vitorino a terá recebido a título pessoal. Não lhe encontra qualquer “lógica comercial”.

O amigo socialista

Mas tudo começa em Raúl Morodo, nome incontorná­vel da transição espanhola entre a ditadura e a democracia. Morodo, hoje com 85 anos, era grande amigo de Mário Soares e sempre teve um invejável naipe de amizades, que vai do Rei Juan Carlos a Zapatero e José Bono, antigo barão do PSOE. Por cá, contam-se como amigos Jorge Sampaio, Ramalho Eanes, Ferro Rodrigues, Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa, Proença de Carvalho, Durão Barroso, Almeida Santos, Guilherme Oliveira Martins e Cavaco Silva, entre muitos outros.

O casamento do filho Alejo com Catarina, em 2001, juntou meio mundo na Quinta Patiño. Dias Loureiro fez questão de contratar uma banda de jazz vinda expressame­nte dos Estados Unidos e os dois compadres juntaram a elite da política e das letras nos jardins do velho condomínio de luxo. Dias Loureiro gozava a boa vida de banqueiro estabeleci­do no BPN, depois de vender a Plêiade a Oliveira Costa. Loureiro foi para a Plêiade em 1995, após a derrota do PSD nas eleições legislativ­as, por convite de José Roquette. Mais tarde, no despacho de arquivamen­to do processo relacionad­o com o BPN em que foi arguido, percebe-se que terá tido um lucro superior a 6,5 milhões de euros pela venda dos seus 15% da Plêiade.

Na sua casa no Estoril, Raúl Morodo estabeleci­a pontes e laços entre sensibilid­ades políticas muito diferentes, mesmo antagónica­s. Uma habilidade que lhe tinha ficado da

difícil transição. Começou no Partido Socialista do Interior, com o histórico alcaide de Madrid Tierno Galván, inventor da movida que Pedro Almodóvar viria a imortaliza­r nos seus filmes, integrou o governo de Adolfo Suárez, a direita liberal que o fascismo moribundo, mas ainda muito poderoso, tolerava. Acabou a navegar nas águas do PSOE.

Quando saiu do posto em Lisboa, onde esteve de 1995 a 1999, a despedida foi inesquecív­el. A 8 de Janeiro de 1999, Jorge Sampaio condecorou-o a título excecional com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, uma distinção limitada a chefes de Estado e de governo. Na ocasião, Sampaio foi expressivo: “Raúl Morodo é, de facto, um velho amigo, de todos os que aqui estão reunidos e de Portugal; uma personalid­ade notável que todos conhecemos de antigos combates democrátic­os comuns; um intelectua­l vivo, irrequieto e inquieto, um homem atento ao que se passa no mundo, que gosta de ouvir e de intervir, que procura encontrar respostas para as grandes questões que a todos preocupam.”

Raúl Morodo era, portanto, um homem de grande influência junto dos governos ibéricos, não importando de que partido ou coligação fossem. Quando Zapatero chega ao poder, em 2004, é nomeado para Caracas, na qualidade daquilo que sempre foi, um “embaixador político”. Nunca esteve na carreira diplomátic­a. Em Lisboa ou em Caracas, foi sempre um homem da quota privada dos governos.

A reconcilia­ção

Na Venezuela, levava a tarefa de refazer os laços políticos com Hugo Chávez, desfeitos depois de Aznar apoiar um golpe de Estado contra o chavismo. E foi muito rápido a conseguir resultados. Uma investigaç­ão do jornalista venezuelan­o Nelson Bocaranda, com uma longa carreira na televisão e na rádio, aponta o verão de 2004 como o tempo da reconcilia­ção de Espanha com Chávez. E isso aconteceu através da sólida amizade que logo se estabelece­u entre Raúl Morodo e o ditador. Terá sido numa viagem a Havana, em que Chávez levou Morodo para conhecer Fidel Castro, que se forjou a relação entre os dois. Detalhe importante: na viagem a Cuba foi também o todo-poderoso ministro da Energia e presidente da PDVSA, Rafael Ramírez. Estará aí a origem da relação rentável que o clã veio a estabelece­r com a empresa petrolífer­a, mas, também, de todos os seus problemas atuais. A investigaç­ão tem vindo a demolir a credibilid­ade e a fortuna do velho senador galego, nascido em Ferrol como Franco.

De acordo com a justiça espanhola, os Morodo e os sócios começaram a sacar dinheiro da Venezuela em 2008, através de um contrato inicial entre a PDVA e a Aequitas Abogados. Juan Carlos Márquez, alto quadro da petrolífer­a, assinava contratos de assessoria com Alejo e autoriza os pagamentos, que o seu sócio Carlos Prada branqueava na Suíça e no Panamá.

Sobre os Morodo a investigaç­ão é taxativa. O mandado de buscas a casa do antigo embaixador assinala: “Raúl Morodo Leoncio e o seu filho, Alejo Morodo Cañeque, e empresas vinculadas, ao menos durante os anos de 2011 a 2015, receberam fundos provenient­es da empresa pública Petróleos de Venezuela SA, no valor de 4.527.70 euros, que carecem, até agora, de uma justificaç­ão real e lógica comercial.” W

O GENRO DE DIAS LOUREIRO TAMBÉM TRABALHOU PARA EMPRESAS DA GALP, CGD E PARA A COFACO DOS AÇORES

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Tchizé dos Santos Álvaro Sobrinho João Maria de Sousa Zandre Finda Sindika Dokolo
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Hugo Chávez, antigo Presidente da Venezuela, impulsiono­u a internacio­nalização da PDVSA 1
1 Hugo Chávez, antigo Presidente da Venezuela, impulsiono­u a internacio­nalização da PDVSA 1
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Nicolás Maduro sucedeu a Hugo Chávez na Presidênci­a da Venezuela, mantendo forte controlo sobre a petrolífer­a estatal 2
2 Nicolás Maduro sucedeu a Hugo Chávez na Presidênci­a da Venezuela, mantendo forte controlo sobre a petrolífer­a estatal 2
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Raúl Morodo foi embaixador em Portugal, tendo sido condecorad­o pelo ex-Presidente Jorge Sampaio
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Dias Loureiro foi gestor da Sociedade Lusa de Negócios; ao lado, a filha Catarina
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António Vitorino foi ministro da Defesa no primeiro governo de António Guterres
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h António Vitorino terá estado envolvido num negócio com a Galp

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