Entrevista
Manuel Monteiro e o obscuro mundo do politicamente correto
Autor, revisor linguístico e formador, lançou um livro sobre o Politicamente Correcto: como o Estado (e não só) está a entrar na vida dos cidadãos em seu nome e como foi usado pelos populistas como um inimigo, uma forma de censura para quem vem “dizer umas verdades”.
Manuel Monteiro tem sido uma das vozes mais enérgicas contra o Acordo Ortográfico (AO). “Não conheço uma matéria tão consensual da esquerda à direita, da percepção popular a quem estudou fundamente o assunto, a linguistas, escritores, intelectuais, tradutores, revisores, jornalistas: o Acordo é uma merda. Falhou em todos os seus propósitos”, diz à SÁBADO,a quem pediu para que as suas respostas não respeitem o AO.
Manuel Monteiro tem novo livro, mas este é diferente: versa sobre o politicamente correto, aqui entendido como a forma correta de nomear e tratar certos grupos sociais (gordos, trabalhadores, velhos, negros, mulheres, etc.).
[Caso Bernardo Silva] “Os racistas agradecem. Cria-se a ilusão de que o racismo é combatido”
Começa por falar, não do politicamente correto, mas do incorreto, que surge agora associado à verdade e à coragem. A dizer as verdades. Porque é que isto aconteceu?
Certa direita, que pretende um livre-trânsito para uma agenda reaccionária, contribuiu muito para essa associação. Por outro lado, certa esquerda, com a verdade e a superioridade moral no bolso, não compreende que é possível ser crítico do politicamente correcto por se entender que não contribui um átomo para a melhoria dos grupos visados, e que os métodos usados são, não raro, retrógrados: a aniquilação do benefício da dúvida, a condescendência, a censura de palavras em livros, o cancelamento de exposições, palestras, a excomunhão de artistas e da sua arte por meras suspeitas de assédio sexual. O assunto é tão mal discutido em Portugal, tão tribalizado.
O politicamente incorreto é uma das armas dos populistas?
Trump, Marine Le Pen, Bolsonaro fizeram da luta contra o politicamente correcto uma bandeira. Mas a sua crítica ao politicamente correcto por ser uma forma de censura revela-se hipócrita quando defendem a censura para as ideias que não lhes são agradáveis. Muita esquerda age do mesmo modo: só defende a liberdade de expressão para as suas ideias. Estaline, Hitler, Mussolini concordariam com essa definição de liberdade de expressão.
A recente querela entre Joacine Katar Moreira e André Ventura é um confronto entre o politicamente correto e o incorreto?
Qualquer um pode discordar da proposta de Joacine, mas devolver pessoas por delito de opinião não é o mesmo que devolver património. Ponto. Joacine é portuguesa. Tão portuguesa como nós. Ponto. Dito isto, estou certo de que Ventura adoraria ser punido por tais declarações e que isso só lhe daria ainda mais força. Não o convertam em mártir da liberdade de expressão, por favor. Não lhe dêem argumentos para se apresentar como vítima do “sistema”, por favor. É aqui que começa a minha divergência com muita mentalidade politicamente correcta.
Até onde é que o politicamente correto pode ser bom?
Pode fazer-nos reparar no que assimilamos acriticamente. Quando deixa de ser uma sugestão para ser uma imposição, quando a linguagem inclusiva começa a excluir as pessoas que não a adoptam e até defendem os direitos dos mesmos grupos. Sucede que muitas propostas do politi
camente correcto não vêm sequer dos grupos oprimidos, mas de segmentos bem-pensantes que nunca mergulharam no quotidiano e nos reais problemas dos grupos oprimidos, limitando-se a analisá-los nos seus “laboratórios” como espécies exóticas.
Os “trabalhadores” agora são “colaboradores”. Dá a ideia de que ser “trabalhador” adquiriu uma carga negativa, uma coisa do passado. Mas não continua a haver patrões e trabalhadores?
Qualquer eufemismo para suavizar a condição do lado mais fraco é tratar os adultos como se estes ainda usassem chucha.
Vimos há uns dias uma conversa num programa entre Manuel Luís Goucha e Suzana Garcia. Ambos dizem preto em vez de negro. Goucha chega a dizer que prefere dizer preto. Estamos na presença de um racismo com o rabo de fora ou apenas de pessoas que não gostam da cosmética do politicamente correto?
O Manuel Luís Goucha tem toda a legitimidade para preferir dizer preto e expressá-lo publicamente. Isso não faz dele racista. Pareceu-me saudável a forma como tratou do tabu. Já conheci um poeta negro que se apresenta com o pseudónimo O’Camões Preto. Conheço negros que não vêem problema nenhum em preto, conheço outros que preferem negro, mas a maioria da minha amostra liga pouco ou nada a essa escolha.
Deve dizer-se preto, negro ou pessoa de cor?
Pessoa de cor… Não conheço nenhum que goste, apesar de ser esta a nomenclatura politicamente correcta actual nos EUA. O meu problema com o politicamente correcto é a excessiva concentração no exterior do copo e não no seu interior, isto é, nas raízes do pensamento. Concentremo-nos no essencial. A substância dos comentários de Suzana Garcia [no programa Você na TV], que foi bem posta em causa na entrevista que li nesta revista [SÁBADO, 15 de janeiro de 2020],
“Eufemismos para suavizar a condição do lado mais fraco é tratar adultos como se usassem chucha”
preocupa-me, porque influencia muitos e faz muito mais pela ascensão de uma direita pouco amiga da democracia do que o artigo de Fátima Bonifácio [Público, 6 julho de 2019]. Não deve ser calada, como alguns sugerem, mas confrontada com estudos, números, argumentos, como aconteceu na entrevista. Perante as mensagens que perpassa, pouco me importa se diz negro ou preto ou pessoa de cor.
Fala do caso do nigger nos EUA como uma palavra interdita, proibida. Há algum caso em Portugal?
De acordo com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), parece que “esganiçadas” é uma delas. Antecipo já as consequências do que estou a dizer: este Manuel Monteiro concorda com as declarações de Pedro Arroja [em 2015] sobre as deputadas do Bloco de Esquerda. Não! As declarações de Pedro Arroja dizem muito sobre ele e nada sobre as deputadas. Mas a queixa da CIG ao Ministério Público, no sentido de encontrar matéria criminal, com a procuradora responsável a dizer que poderá tratar-se de um crime com pena de prisão até cinco anos… Por uma vez na vida, concordei com Pedro Arroja: pensei que era uma brincadeira do dia 1 de Abril.
Podemos usar expressões como fazer judiarias, ou ciganice, ou um olho no burro e outro no cigano?
Se por podemos entendermos não ser multados por isso, direi que sim. Um olho no burro e outro no cigano perpetua um estigma? Sim. Todos aqueles que o disseram têm necessariamente algo contra os Ciganos? Não. Gosto da palavra mariconço? Não. Acho que Alberto Gonçalves deva ser suspenso do Facebook por a usar? Não. E foi.
Cita uma cartilha (Politicamente Correto e Direitos Humanos) lançada no Brasil no governo de Lula. É necessário ou um disparate?
É perigoso ter o Estado a definir o que pensar, o que dizer, o que calar. Porque quem define isso hoje não é quem define amanhã… E pode voltar-se contra os que criaram o precedente. Decretar que o uso de denegrir é racista, é simplesmente estúpido e dá força aos racistas, que podem dizer: “Estão a ver? Agora, é tudo racista! Vêem racismo em todo o lado!”
O caso Bernardo Silva e a sua piada sobre o Conguito é uma vitória do politicamente correto?
Os racistas agradecem episódios como esse. Cria-se a falsa ilusão de que o racismo é sobrevalorizado e fortemente combatido.
Caminhamos para uma sociedade onde a palavra gordo só pode ser usada para o leite?
Nos EUA, os exames de Literatura em Nova Iorque censuraram a palavra gordo e alteraram para pesado. Mesmo cá, cada vez há mais cuidado na linguagem publicada em não usar gordo. Lamento, mas pesado não é gordo. Veja-se um culturista. Uma linguagem excessivamente defensiva sugere que se está a esconder algo vergonhoso e isso não é olhar o outro como igual.
Nas escolas em Portugal o politicamente correto está instalado?
Preocupa-me que haja manuais escolares que perpetuem estereótipos de género e temos um longo caminho por percorrer nesta matéria, dada a cultura machista de que estamos imbuídos. Mas também me preocupa que haja um organismo tutelado pelo Estado [CIG] a conseguir suspender [2017] a venda de livros de uma grande editora. A intenção é boa, mas sou libertário a ponto de não querer o Estado a vigiar livros... Hoje, é o género, amanhã… Li na imprensa que produtos com o que for considerado excesso de açúcar, sal ou gordura não podem ser publicitados se a audiência for superior a 25% de jovens com menos de 16 anos. Onde é que isto pára?