Vitorino
As explicações que faltam
DOIS DOS ALVOS DO MP, EM 2012, FORAM AS IRMÃS ISABEL E TCHIZÉ DOS SANTOS, FILHAS DO PRESIDENTE DE ANGOLA
As autoridades portuguesas investigaram, entre 2010-14, dezenas de altas individualidades angolanas, recolheram um manancial de dados bancários, offshores e bens que hoje podem ser fundamentais por causa do Luanda Leaks. A suspeita principal? Lavagem de dinheiro. Mas Luanda protegeu sempre os alvos: o PGR de Angola intermediava em Portugal os honorários a pagar a advogados, dizia que os suspeitos eram seus amigos e pedia até conselhos de investimento a um banqueiro que era um dos alvos do Ministério Público.
As investigações do Ministério Público (MP) português a altas figuras do regime político angolano, devido a suspeitas da prática de crimes fiscais e de branqueamento de capitais, provocaram um verdadeiro terramoto judicial, político e mediático. Sobretudo entre 2012-2014, quando Portugal estava em graves dificuldades financeiras e sob a intervenção de um resgate financeiro internacional.
As relações diplomáticas entre os dois países chegaram a ser postas em causa por Angola. E esta crise ficou marcada por vários episódios rocambolescos como uma reunião de urgência ocorrida a 8 de janeiro de 2013 no gabinete da então procuradora-geral da República (PGR), no Palácio de Palmela, em Lisboa. Nessa tarde, a conversa entre Joana Marques Vidal, a diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Cândida Almeida, e os procuradores Rosário Teixeira e Paulo Gonçalves, teve um único tema: as investigações do MP a empresários e políticos angolanos.
Agastada, a PGR acusou os colegas subordinados de não a informarem do que se estava a passar nos mediáticos processos angolanos e até desabafou que, devido às investigações judiciais, os investimentos com origem em Angola estavam a fugir para Espanha. Pelo meio, garantiu que o embaixador português em Luanda estaria a sofrer retaliações e que não era sequer convidado para eventos oficiais. Quando acabou a reunião, os procuradores do DCIAP ficaram incumbidos de lhe mandar “uma relação completa dos casos (...) com informação do seu objeto, identificação de suspeitos e uma nota resumida do que fora feito e do estado atual dos mesmos”, conforme refere um documento do MP a que a SÁBADO acedeu.
No dia seguinte, Cândida Almeida enviou realmente a Joana Marques Vidal um relatório confidencial com os resumos dos casos, que incluía a identidade de angolanos que estavam a ser investigados pelo DCIAP.
Um dado tornou-se logo evidente: eram muitos os alvos angolanos (e portugueses) do MP e da Unidade de Informação Financeira (UIF) da Polícia Judiciária (PJ). A começar por Isabel e Welwitschia “Tchizé” dos Santos, filhas do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, cujos registos de património em Portugal (contas bancárias, ações de empresas e bens imóveis e móveis) tinham sido entretanto recolhidos pelos investigadores.
Só Isabel dos Santos já tinha investido em Portugal largos milhões de euros em bancos como o BIC e o BPI e em empresas como a Zon (atual NOS) e a Galp Energia. “As suspeitas de tráfico de dinheiro e de influências, de roubo organizado ao erário público angolano, de utilização de meios de todo o tipo em Portugal, conseguidos de forma ilícita e criminosa em Angola (…), assentam no facto de nenhum destes cidadãos angolanos ter qualquer legitimidade na manipulação de fundos do Estado angolano”, escreveu o angolano Adriano Parreira, um ano antes da polémica reunião na PGR. A denúncia foi enviada ao então PGR já em fim de mandato, Pinto Monteiro, a solicitar uma investigação aos negócios feitos por angolanos com “instituições portuguesas, nomeadamente entidades bancárias”. O caso abriu uma autêntica caixa de Pandora, mas não foi o único (ver infografia com os alvos angolanos).
O MP estava igualmente a seguir, nos últimos anos, inúmeras transferências bancárias suspeitas para Portugal e que usavam também o País como plataforma para outros destinos. Os alertas bancários, ocorridos a partir de 2010, deram origem a um número cada vez maior de averiguações preventivas e de processos administrativos (PA), tendo vários destes casos acabado por passar a processos-crime. Um deles visava movimentações de vários milhões de euros alegadamente recebidos, via offshores (paraísos fiscais), por altos quadros do grupo Sonangol, a principal empresa pública angolana responsável pela exploração de importantes reservas de petróleo.
A Sonangol e os generais
Na altura, as autoridades portuguesas detetaram que na origem do caso estava “faturação suspeita”, com o dinheiro a ser depois usado para comprar vários imóveis no Algarve. Francisco José Maria, ex-vice-presidente da Sonangol que no início de 2012 substituiu Manuel Vicente na direção da empresa, tornou-se um dos alvos. Mas havia outras investigações em curso. Numa delas, iniciada também em 2012, estava em causa uma sociedade alegadamente detida por Maria Silva Feijó: uma parte do dinheiro considerado suspeito tinha sido transferido para uma conta bancária em Portugal, em que o titular seria o marido da empresária, Carlos Feijó, um angolano que se tinha doutorado, em 2011, na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, depois de passar pelo crivo de um júri universitário
integrado por, entre outros, Marcelo Rebelo de Sousa, Diogo Freitas do Amaral, e os constitucionalistas Jorge Bacelar Gouveia e Joaquim Gomes Canotilho. E que era um dos homens de maior confiança de José Eduardo dos Santos.
Os registos de movimentações financeiras suspeitas em Portugal incluíam ainda dois empresários e generais angolanos. Um deles era Bento dos Santos “Kangamba”, casado com uma sobrinha de Eduardo dos Santos. O outro era Manuel Vieira Dias “Kopelipa”, que era alvo há meses de vários casos suspeitos de branqueamento de capitais. Um outro suspeito tinha feito depósitos em dinheiro vivo na conta de um sobrinho, e de “terceiros conexos”, com o general Kundy Paihama, ex-ministro da Defesa de Angola (1999/2010) e então ministro dos Antigos Combatentes e da Pátria.
O gestor angolano Zandre Finda também já tinha sido identificado em alertas bancários em Portugal. Apresentado pelo site Maka Angola do jornalista Rafael Marques como administrador executivo da Nazaki Oil & Gas (uma petrolífera detida pelo então vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, e pelos generais Kopelipa e Leopoldino “Dino” do Nascimento), Finda era então vogal do Conselho de Administração do BES Angola presidido por Álvaro Sobrinho, outro dos alvos do MP. Licenciado na Universidade Lusíada, Finda era em Portugal sócio e administrador de várias empresas dos setores do imobiliário, comércio e turismo.
O DCIAP estava também a investigar um processo aberto em 2011 por suspeitas de crime de “corrupção internacional” que envolveria o pagamento de comissões ilegais a “oficiais e responsáveis políticos das forças de segurança” angolanas. Neste caso, o MP tinha detetado que as “luvas” pagas pelos “fornecimentos” de bens às polícias (por exemplo, de refeições) tinham passado pela Suíça e por Portugal.
Paulo Gonçalves, um experiente magistrado que integrara durante vários anos o Conselho Superior do MP, foi o principal procurador enporque carregado de investigar uma boa parte destes processos entre 2012-14, até optar por sair do DCIAP e já depois de ter sido sujeito a uma inspeção do MP, que selecionou para análise vários dos inquéritos intitulados como Universo Angola. O relatório final do inspetor não foi nada meigo com o trabalho do procurador, tendo até questionado
INSPETOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO CRITICOU O TRABALHO DO PROCURADOR QUE TINHA OS PROCESSOS DE ANGOLA
é que tinham sido abertas algumas investigações a partir de processos administrativos de transferências bancárias suspeitas ou de denúncias recebidas em Portugal.
“(…) Resulta que todo o enredo é de natureza muito ampla e muito difusa, baseado em suspeitas de eventos danosos e talvez de corruptela ocorridos em Angola (…), constitui tarefa muito ambiciosa dirigir e apurar factos desta natureza, a partir do estreito leque de poderes investigatórios sediados em Lisboa cometidos por angolanos – altas figuras do Estado – naquele país, enquanto sustentáculo de crime de branqueamento”, escreveu o inspetor.
A análise inspetiva ao trabalho do procurador, a que a SÁBADO acedeu, ficou igualmente marcada por outras críticas sobre uma denúncia apresentada ao MP classificada como “ao melhor estilo jornalístico”, referindo-se que não continha nada que “extravase do vulgarmente comentado na praça pública”. Já sobre a recolha de dados financeiros de Isabel e Tchizé dos Santos e de outros alvos do MP no círculo do Presidente angolano, o inspetor desabafou que a investigação era uma “tarefa inglória, gigantesca e sem resultados objetivos à vista.”
O PGR amigo dos suspeitos
Descrente, o inspetor chegou a dizer que os possíveis crimes denunciados estavam em Angola – “ao nível do próprio aparelho de Estado e seus personagens” – e que o país africano era, “para o bem e para o mal”, um Estado soberano, onde era “patente a falta de meios para levar a bom termo a investigação necessária para corporizar qualquer hipotético crime subjacente!”
Na realidade, o inspetor reconheceu que, sem a vontade de Angola, não se conseguia investigar em Portugal os crimes precedentes à lavagem de dinheiro, a corrupção, por exemplo. Conclusão: assim não compreendia porque é que Paulo Gonçalves e a auxiliar, a procuradora Teresa Sanchez, tinham já acrescentado à lavagem de dinheiro suspeitas de crimes de associa
ção criminosa, tráfico de influências e fraude fiscal e corrupção ativa do comércio internacional – “nada tendo mudado, não se lobrigam os respetivos indícios”, concluiu.
Chateado e já desentendido com o então novo diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, o procurador Paulo Gonçalves saiu em setembro de 2014 do departamento especializado em criminalidade complexa do MP. Vários dos seus antigos processos foram sendo arquivados a conta-gotas e outros ainda hoje continuam abertos. Certo é que nos arquivos do MP ficou uma base de dados assinalável sobre as movimentações financeiras suspeitas de angolanos e respetivo património e ligações empresariais a Portugal. Alguma da informação incluía referências ao general que era ao mesmo tempo empresário e mandava no MP de Angola (fê-lo durante 10 anos, entre 1997/2017), João Maria de Sousa.
Este PGR era quem denunciava em Portugal os suspeitos que o poder político de Angola queria. E também mandava defender em Lisboa aqueles que Angola queria proteger a todo o custo. Num dos emails com data de início de 2012 dirigidos ao advogado português Paulo Blanco, João Maria de Sousa disse-lhe: “Recebi mandato verbal dos meus amigos para ver consigo todos os pendentes deles. Estou a falar do GKope [general Kopelipa] e da esposa, GDino [general Leopoldino Nascimento] e GHigino Nascimento e José Pedro [José Pedro Morais, ex-ministro das Finanças]. Também recomendei o Rabelais [Manuel Rabelais, ex-ministro da Comunicação Social] com quem o meu amigo já manteve contacto. Gostaria que me enviasse um resumo do que há para fazer relativamente a cada um deles, visando o encerramento dos respetivos expedientes processuais.”
De seguida, o PGR de Angola acrescentou que queria que Blanco (que já representava o Estado angolano e Manuel Vicente, então suspeito de branqueamento de capitais) lhe fizesse chegar as propostas de honorários a cobrar aos visados angolanos. João Maria de Sousa alertou até que os preços praticados pelo advogado português tinham de “merecer um tratamento diferenciado de qualquer outro cliente que cai no escritório de paraquedas”. E concluiu: “Como deve entender, eles esperam da minha intervenção, uma considerável redução dos valores a pagar.”
Esta intermediação seria o equivalente à atual PGR portuguesa, Lucília Gago, intermediar com advogados no estrangeiro a defesa de cidadãos portugueses suspeitos de
O BANQUEIRO CARLOS JOSÉ DA SILVA ACONSELHOU O PGR DE ANGOLA SOBRE INVESTIMENTOS A FAZER NO BES
crimes financeiros ou outros. Além disso, João Maria de Sousa (que também chegou a ser investigado nessa altura em Portugal e esse facto originou fortes críticas públicas) nunca se esqueceu que, além de PGR, era também um investidor. Isso percebe-se bem quando se constata o conteúdo do email que mandou, em agosto de 2013, ao dono do Banco Privado Atlântico (BPA) Europa, Carlos José da Silva (outro dos angolanos visados nos processos em Portugal), a pedir conselhos sobre a abordagem que a sua gestora de conta do BES lhe fizera para diversificar os investimentos financeiros e assim ter “uma rentabilidade mais simpática” face às taxas dos depósitos a prazo.
A sugestão inicial era que João Maria de Sousa reaplicasse pelo menos 75 mil euros do seu património no BES Aforro que lhe daria uma taxa líquida global de 4,03% dali a uns anos, em maio de 2019. A funcionária do BES garantiu-lhe que aquele produto financeiro estava a ter muita procura e deu-lhe a entender que era melhor despachar-se se queria entrar no barco. O PGR de Angola não ficou convencido e escreveu a Carlos Silva, que o aconselhou a não avançar. Depois de o tratar por “caro general JM, Digníssimo PGR”, o banqueiro explicou-lhe em sete pontos porque não devia aceitar a proposta do BES. Falou-lhe dos juros da dívida soberana portuguesa; lembrou-lhe que as regras da União Europeia diziam que, em caso de default, os acionistas dos bancos, os obrigacionistas e os depositantes com mais de 100 mil euros eram chamados, por esta ordem decrescente, a contribuírem para o resgate dos bancos; comparou taxas de depósitos a prazos e as obrigações seniores BES a seis anos; e recomendou-lhe que mantivesse “os recursos em depósitos de curto prazo (até seis meses), se possível em valores até 100 mil euros, protegidos pelo Fundo de Garantia, mesmo que a taxa de juro implícita seja inferior”. Carlos Silva terminou o email ao general agradecendo-lhe e mandando-lhe “abraços”. W