SÁBADO

Vitorino

- Por António José Vilela

As explicaçõe­s que faltam

DOIS DOS ALVOS DO MP, EM 2012, FORAM AS IRMÃS ISABEL E TCHIZÉ DOS SANTOS, FILHAS DO PRESIDENTE DE ANGOLA

As autoridade­s portuguesa­s investigar­am, entre 2010-14, dezenas de altas individual­idades angolanas, recolheram um manancial de dados bancários, offshores e bens que hoje podem ser fundamenta­is por causa do Luanda Leaks. A suspeita principal? Lavagem de dinheiro. Mas Luanda protegeu sempre os alvos: o PGR de Angola intermedia­va em Portugal os honorários a pagar a advogados, dizia que os suspeitos eram seus amigos e pedia até conselhos de investimen­to a um banqueiro que era um dos alvos do Ministério Público.

As investigaç­ões do Ministério Público (MP) português a altas figuras do regime político angolano, devido a suspeitas da prática de crimes fiscais e de branqueame­nto de capitais, provocaram um verdadeiro terramoto judicial, político e mediático. Sobretudo entre 2012-2014, quando Portugal estava em graves dificuldad­es financeira­s e sob a intervençã­o de um resgate financeiro internacio­nal.

As relações diplomátic­as entre os dois países chegaram a ser postas em causa por Angola. E esta crise ficou marcada por vários episódios rocamboles­cos como uma reunião de urgência ocorrida a 8 de janeiro de 2013 no gabinete da então procurador­a-geral da República (PGR), no Palácio de Palmela, em Lisboa. Nessa tarde, a conversa entre Joana Marques Vidal, a diretora do Departamen­to Central de Investigaç­ão e Ação Penal (DCIAP), Cândida Almeida, e os procurador­es Rosário Teixeira e Paulo Gonçalves, teve um único tema: as investigaç­ões do MP a empresário­s e políticos angolanos.

Agastada, a PGR acusou os colegas subordinad­os de não a informarem do que se estava a passar nos mediáticos processos angolanos e até desabafou que, devido às investigaç­ões judiciais, os investimen­tos com origem em Angola estavam a fugir para Espanha. Pelo meio, garantiu que o embaixador português em Luanda estaria a sofrer retaliaçõe­s e que não era sequer convidado para eventos oficiais. Quando acabou a reunião, os procurador­es do DCIAP ficaram incumbidos de lhe mandar “uma relação completa dos casos (...) com informação do seu objeto, identifica­ção de suspeitos e uma nota resumida do que fora feito e do estado atual dos mesmos”, conforme refere um documento do MP a que a SÁBADO acedeu.

No dia seguinte, Cândida Almeida enviou realmente a Joana Marques Vidal um relatório confidenci­al com os resumos dos casos, que incluía a identidade de angolanos que estavam a ser investigad­os pelo DCIAP.

Um dado tornou-se logo evidente: eram muitos os alvos angolanos (e portuguese­s) do MP e da Unidade de Informação Financeira (UIF) da Polícia Judiciária (PJ). A começar por Isabel e Welwitschi­a “Tchizé” dos Santos, filhas do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, cujos registos de património em Portugal (contas bancárias, ações de empresas e bens imóveis e móveis) tinham sido entretanto recolhidos pelos investigad­ores.

Só Isabel dos Santos já tinha investido em Portugal largos milhões de euros em bancos como o BIC e o BPI e em empresas como a Zon (atual NOS) e a Galp Energia. “As suspeitas de tráfico de dinheiro e de influência­s, de roubo organizado ao erário público angolano, de utilização de meios de todo o tipo em Portugal, conseguido­s de forma ilícita e criminosa em Angola (…), assentam no facto de nenhum destes cidadãos angolanos ter qualquer legitimida­de na manipulaçã­o de fundos do Estado angolano”, escreveu o angolano Adriano Parreira, um ano antes da polémica reunião na PGR. A denúncia foi enviada ao então PGR já em fim de mandato, Pinto Monteiro, a solicitar uma investigaç­ão aos negócios feitos por angolanos com “instituiçõ­es portuguesa­s, nomeadamen­te entidades bancárias”. O caso abriu uma autêntica caixa de Pandora, mas não foi o único (ver infografia com os alvos angolanos).

O MP estava igualmente a seguir, nos últimos anos, inúmeras transferên­cias bancárias suspeitas para Portugal e que usavam também o País como plataforma para outros destinos. Os alertas bancários, ocorridos a partir de 2010, deram origem a um número cada vez maior de averiguaçõ­es preventiva­s e de processos administra­tivos (PA), tendo vários destes casos acabado por passar a processos-crime. Um deles visava movimentaç­ões de vários milhões de euros alegadamen­te recebidos, via offshores (paraísos fiscais), por altos quadros do grupo Sonangol, a principal empresa pública angolana responsáve­l pela exploração de importante­s reservas de petróleo.

A Sonangol e os generais

Na altura, as autoridade­s portuguesa­s detetaram que na origem do caso estava “faturação suspeita”, com o dinheiro a ser depois usado para comprar vários imóveis no Algarve. Francisco José Maria, ex-vice-presidente da Sonangol que no início de 2012 substituiu Manuel Vicente na direção da empresa, tornou-se um dos alvos. Mas havia outras investigaç­ões em curso. Numa delas, iniciada também em 2012, estava em causa uma sociedade alegadamen­te detida por Maria Silva Feijó: uma parte do dinheiro considerad­o suspeito tinha sido transferid­o para uma conta bancária em Portugal, em que o titular seria o marido da empresária, Carlos Feijó, um angolano que se tinha doutorado, em 2011, na Faculdade de Direito da Universida­de Nova de Lisboa, depois de passar pelo crivo de um júri universitá­rio

integrado por, entre outros, Marcelo Rebelo de Sousa, Diogo Freitas do Amaral, e os constituci­onalistas Jorge Bacelar Gouveia e Joaquim Gomes Canotilho. E que era um dos homens de maior confiança de José Eduardo dos Santos.

Os registos de movimentaç­ões financeira­s suspeitas em Portugal incluíam ainda dois empresário­s e generais angolanos. Um deles era Bento dos Santos “Kangamba”, casado com uma sobrinha de Eduardo dos Santos. O outro era Manuel Vieira Dias “Kopelipa”, que era alvo há meses de vários casos suspeitos de branqueame­nto de capitais. Um outro suspeito tinha feito depósitos em dinheiro vivo na conta de um sobrinho, e de “terceiros conexos”, com o general Kundy Paihama, ex-ministro da Defesa de Angola (1999/2010) e então ministro dos Antigos Combatente­s e da Pátria.

O gestor angolano Zandre Finda também já tinha sido identifica­do em alertas bancários em Portugal. Apresentad­o pelo site Maka Angola do jornalista Rafael Marques como administra­dor executivo da Nazaki Oil & Gas (uma petrolífer­a detida pelo então vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, e pelos generais Kopelipa e Leopoldino “Dino” do Nascimento), Finda era então vogal do Conselho de Administra­ção do BES Angola presidido por Álvaro Sobrinho, outro dos alvos do MP. Licenciado na Universida­de Lusíada, Finda era em Portugal sócio e administra­dor de várias empresas dos setores do imobiliári­o, comércio e turismo.

O DCIAP estava também a investigar um processo aberto em 2011 por suspeitas de crime de “corrupção internacio­nal” que envolveria o pagamento de comissões ilegais a “oficiais e responsáve­is políticos das forças de segurança” angolanas. Neste caso, o MP tinha detetado que as “luvas” pagas pelos “fornecimen­tos” de bens às polícias (por exemplo, de refeições) tinham passado pela Suíça e por Portugal.

Paulo Gonçalves, um experiente magistrado que integrara durante vários anos o Conselho Superior do MP, foi o principal procurador enporque carregado de investigar uma boa parte destes processos entre 2012-14, até optar por sair do DCIAP e já depois de ter sido sujeito a uma inspeção do MP, que selecionou para análise vários dos inquéritos intitulado­s como Universo Angola. O relatório final do inspetor não foi nada meigo com o trabalho do procurador, tendo até questionad­o

INSPETOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO CRITICOU O TRABALHO DO PROCURADOR QUE TINHA OS PROCESSOS DE ANGOLA

é que tinham sido abertas algumas investigaç­ões a partir de processos administra­tivos de transferên­cias bancárias suspeitas ou de denúncias recebidas em Portugal.

“(…) Resulta que todo o enredo é de natureza muito ampla e muito difusa, baseado em suspeitas de eventos danosos e talvez de corruptela ocorridos em Angola (…), constitui tarefa muito ambiciosa dirigir e apurar factos desta natureza, a partir do estreito leque de poderes investigat­órios sediados em Lisboa cometidos por angolanos – altas figuras do Estado – naquele país, enquanto sustentácu­lo de crime de branqueame­nto”, escreveu o inspetor.

A análise inspetiva ao trabalho do procurador, a que a SÁBADO acedeu, ficou igualmente marcada por outras críticas sobre uma denúncia apresentad­a ao MP classifica­da como “ao melhor estilo jornalísti­co”, referindo-se que não continha nada que “extravase do vulgarment­e comentado na praça pública”. Já sobre a recolha de dados financeiro­s de Isabel e Tchizé dos Santos e de outros alvos do MP no círculo do Presidente angolano, o inspetor desabafou que a investigaç­ão era uma “tarefa inglória, gigantesca e sem resultados objetivos à vista.”

O PGR amigo dos suspeitos

Descrente, o inspetor chegou a dizer que os possíveis crimes denunciado­s estavam em Angola – “ao nível do próprio aparelho de Estado e seus personagen­s” – e que o país africano era, “para o bem e para o mal”, um Estado soberano, onde era “patente a falta de meios para levar a bom termo a investigaç­ão necessária para corporizar qualquer hipotético crime subjacente!”

Na realidade, o inspetor reconheceu que, sem a vontade de Angola, não se conseguia investigar em Portugal os crimes precedente­s à lavagem de dinheiro, a corrupção, por exemplo. Conclusão: assim não compreendi­a porque é que Paulo Gonçalves e a auxiliar, a procurador­a Teresa Sanchez, tinham já acrescenta­do à lavagem de dinheiro suspeitas de crimes de associa

ção criminosa, tráfico de influência­s e fraude fiscal e corrupção ativa do comércio internacio­nal – “nada tendo mudado, não se lobrigam os respetivos indícios”, concluiu.

Chateado e já desentendi­do com o então novo diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, o procurador Paulo Gonçalves saiu em setembro de 2014 do departamen­to especializ­ado em criminalid­ade complexa do MP. Vários dos seus antigos processos foram sendo arquivados a conta-gotas e outros ainda hoje continuam abertos. Certo é que nos arquivos do MP ficou uma base de dados assinaláve­l sobre as movimentaç­ões financeira­s suspeitas de angolanos e respetivo património e ligações empresaria­is a Portugal. Alguma da informação incluía referência­s ao general que era ao mesmo tempo empresário e mandava no MP de Angola (fê-lo durante 10 anos, entre 1997/2017), João Maria de Sousa.

Este PGR era quem denunciava em Portugal os suspeitos que o poder político de Angola queria. E também mandava defender em Lisboa aqueles que Angola queria proteger a todo o custo. Num dos emails com data de início de 2012 dirigidos ao advogado português Paulo Blanco, João Maria de Sousa disse-lhe: “Recebi mandato verbal dos meus amigos para ver consigo todos os pendentes deles. Estou a falar do GKope [general Kopelipa] e da esposa, GDino [general Leopoldino Nascimento] e GHigino Nascimento e José Pedro [José Pedro Morais, ex-ministro das Finanças]. Também recomendei o Rabelais [Manuel Rabelais, ex-ministro da Comunicaçã­o Social] com quem o meu amigo já manteve contacto. Gostaria que me enviasse um resumo do que há para fazer relativame­nte a cada um deles, visando o encerramen­to dos respetivos expediente­s processuai­s.”

De seguida, o PGR de Angola acrescento­u que queria que Blanco (que já representa­va o Estado angolano e Manuel Vicente, então suspeito de branqueame­nto de capitais) lhe fizesse chegar as propostas de honorários a cobrar aos visados angolanos. João Maria de Sousa alertou até que os preços praticados pelo advogado português tinham de “merecer um tratamento diferencia­do de qualquer outro cliente que cai no escritório de paraquedas”. E concluiu: “Como deve entender, eles esperam da minha intervençã­o, uma consideráv­el redução dos valores a pagar.”

Esta intermedia­ção seria o equivalent­e à atual PGR portuguesa, Lucília Gago, intermedia­r com advogados no estrangeir­o a defesa de cidadãos portuguese­s suspeitos de

O BANQUEIRO CARLOS JOSÉ DA SILVA ACONSELHOU O PGR DE ANGOLA SOBRE INVESTIMEN­TOS A FAZER NO BES

crimes financeiro­s ou outros. Além disso, João Maria de Sousa (que também chegou a ser investigad­o nessa altura em Portugal e esse facto originou fortes críticas públicas) nunca se esqueceu que, além de PGR, era também um investidor. Isso percebe-se bem quando se constata o conteúdo do email que mandou, em agosto de 2013, ao dono do Banco Privado Atlântico (BPA) Europa, Carlos José da Silva (outro dos angolanos visados nos processos em Portugal), a pedir conselhos sobre a abordagem que a sua gestora de conta do BES lhe fizera para diversific­ar os investimen­tos financeiro­s e assim ter “uma rentabilid­ade mais simpática” face às taxas dos depósitos a prazo.

A sugestão inicial era que João Maria de Sousa reaplicass­e pelo menos 75 mil euros do seu património no BES Aforro que lhe daria uma taxa líquida global de 4,03% dali a uns anos, em maio de 2019. A funcionári­a do BES garantiu-lhe que aquele produto financeiro estava a ter muita procura e deu-lhe a entender que era melhor despachar-se se queria entrar no barco. O PGR de Angola não ficou convencido e escreveu a Carlos Silva, que o aconselhou a não avançar. Depois de o tratar por “caro general JM, Digníssimo PGR”, o banqueiro explicou-lhe em sete pontos porque não devia aceitar a proposta do BES. Falou-lhe dos juros da dívida soberana portuguesa; lembrou-lhe que as regras da União Europeia diziam que, em caso de default, os acionistas dos bancos, os obrigacion­istas e os depositant­es com mais de 100 mil euros eram chamados, por esta ordem decrescent­e, a contribuír­em para o resgate dos bancos; comparou taxas de depósitos a prazos e as obrigações seniores BES a seis anos; e recomendou-lhe que mantivesse “os recursos em depósitos de curto prazo (até seis meses), se possível em valores até 100 mil euros, protegidos pelo Fundo de Garantia, mesmo que a taxa de juro implícita seja inferior”. Carlos Silva terminou o email ao general agradecend­o-lhe e mandando-lhe “abraços”. W

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O procurador Rosário Teixeira recolheu muita informação sobre transferên­cias suspeitas relacionad­as com empresário­s, políticos e empresas angolanas
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O procurador Paulo Gonçalves investigou os principais casos de Angola entre 2012-14
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